O presente artigo objetiva problematizar a marca da segregação social como eixo estruturante da história do ensino superior no Brasil. Lançar luzes sobre tal temática permite desdobrar perspectivas da educação como um direito humano básico e como potencial solução para redução de desigualdades. Este trabalho revisita detalhes da implementação e dos ciclos de expansão do sistema de ensino superior no país, aproximando-se da Teoria Crítica dos Direitos Humanos. A partir de revisão bibliográfica, buscamos mostrar como o acesso à formação superior revela estreitas relações com os direitos ao conhecimento, à informação e à educação. Tratamos a desigualdade educacional pela ótica de suas causas, como a falta de transparência e a meritocracia; de suas consequências, como os desafios de ingresso e permanência no ensino superior; e de possíveis soluções, como oferta de uma educação de base de qualidade. Indicamos ainda que, num país caracterizado pela naturalização de violências e discriminações, como o Brasil, a dimensão da luta popular permanente é fundamental para sinalizar caminhos para a redução de disparidades e a materialização de garantias legais. Nesse caráter combativo, concluímos que o papel do próprio ensino superior é central para a promoção da cidadania e dos direitos humanos.
Sumário
Introdução
Tardio, elitista e estratificado. Esse é o perfil histórico do ensino superior no Brasil. Como em uma cadência de passos à frente, passos atrás, a promoção do ingresso e da permanência em instituições de nível superior reverbera progressos e contradições estruturais brasileiros. Num panorama de, ao menos, três séculos, a luta pela igualdade educacional no país insiste em tentar abrir espaço para uma massa de excluídos que disputam a vida à margem do sistema.
Basta lembrar que o caráter inicial da educação no país foi a catequização católica, voltada para a evangelização de nativos, escravos e colonos, associada à instrução dos costumes europeus (Bernardo, 2022). Até a implantação da República, em 1889, a educação profissional permaneceu rudimentar e focada na nova aristocracia ocupacional. Medicina, Direito e Engenharia monopolizavam a oferta das ditas “carreiras imperiais”, em instituições concentradas em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Num típico monopólio de controle exclusivo do Estado sobre a educação, também conhecido como “modelo napoleônico” e acessível a uma burguesia aristocrata extremamente restrita, de acordo com Schwartzman (2014). Apenas com o marco de criação da Universidade de São Paulo, em 1934, é que o sistema de ensino superior (baseado no tripé ensino, pesquisa e extensão) passaria, de fato, a se consolidar no Brasil (Senkevics, 2021).
Mas, apesar de reformas estruturais marcarem, a partir da década de 1960, aquele que seria o primeiro ciclo de expansão da educação superior no país, foi somente no período entre 1991 e 2019, caracterizado como segundo ciclo de expansão, que o Brasil conseguiu, efetivamente, migrar de um sistema considerado “de elite” para um sistema “de massas” (Gomes; Moraes, 2012). Processo esse assinalado por aspectos como: democratização do acesso; instituição de ações afirmativas; desequilíbrio público-privado; ampliação do ensino à distância; e estratificação horizontal, de acordo com Senkevics (2021).
Evidencia-se, assim, que superar a pobreza política que tanto fragiliza os pilares do regime democrático, num contexto de relações líquidas (Bauman, 2004) e de desordem informacional (Bastos; Siqueira, 2020), passa, invariavelmente, pelos exercícios de pensar e de oportunizar o acesso ao conhecimento, à informação e à educação como políticas públicas de Estado. Conforme Piketty pontua (2020, p. 18), “a desigualdade não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política”. Por isso, faz-se também necessário refletir sobre a desigualdade educacional sob perspectiva de suas causas, como a falta de transparência e a meritocracia; consequências, como os desafios de ingresso e permanência no ensino superior do indivíduo menos favorecido socioeconomicamente; e possíveis soluções, como oferta de uma educação de base de qualidade. A seguir, trataremos desse tema por meio de três tópicos: 1) sociedade desigual – segregação social como eixo estruturante da história do ensino superior no Brasil; 2) educação como um direito humano básico – a perspectiva da Teoria Crítica dos Direitos Humanos; 3) óticas da desigualdade educacional no Brasil – causas, consequências e possíveis soluções.
Tomando, portanto, o ensino superior brasileiro como objeto de pesquisa, esta revisão bibliográfica lança-se ao diálogo com conceitos e autores que problematizam as noções de direitos humanos e cidadania, a partir de críticas aos sistemas capitalista, patriarcal e colonialista que mantêm, à base da violência e da opressão, seu modus operandi de hierarquizar aquilo que Krenak (2020) distingue como “humanidade” e “sub-humanidade”.
Assim, todo referencial que conduz as reflexões propostas neste trabalho subsidia-se pela ótica emancipatória da Teoria Crítica dos Direitos Humanos, considerando as lutas sociais envolvidas na resistência e na busca pela consolidação prática do direito à instrução como prerrogativa preconizada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Sociedade Desigual
Pensar a educação é pensar para além dela. Haja vista o pressuposto de que a educação seja capaz de dotar o indivíduo de condições necessárias para que tenha qualidade de vida, considerando alimentação, saúde, trabalho e lazer, e também condições para exercer sua cidadania, questionando as bases que fundamentam a comunidade política em que vive.
Por isso, antes de falar em desigualdade no sistema educacional, é interessante conceituar o regime desigualitário de forma mais ampla. O economista Piketty (2020, p. 13) define este como “um conjunto de discursos e dispositivos institucionais que visam justificar e estruturar as desigualdades econômicas, sociais e políticas de uma determinada sociedade”. O que evidencia a desigualdade como condição engendrada propositalmente em nossa sociedade. “Ser pobre não é somente não ter, mas ser coibido de ter. Pobreza é, em sua essência, repressão, ou seja, resultado da discriminação sobre o terreno das vantagens e oportunidades sociais”, reforça Demo (2006, p. 6).
No futebol, espécie de metáfora maior da nacionalidade brasileira, aguardamos sempre que “algo aconteça” e resolva a partida. A vontade é de torcer para que algum elemento mágico e imprevisto caia dos céus (suspendendo o mal-estar e solucionando problemas), em vez de ser a de planejar mudanças substantivas e duradouras (Schwarcz; Starling, 2015, p. 16).
Ainda nesse aspecto, Senkevics (2021) alerta para a permanência da cisão classe/raça/gênero diante do fenômeno da estratificação horizontal do sistema de educação superior. Ou seja, brancos e negros, ricos e pobres, homens e mulheres seguem com significativa distinção de instituições, graus, cursos e modalidades de ensino que ocupam, com reflexo posterior direto na colocação profissional no mercado de trabalho. Todos percorrendo jornadas universitárias, entretanto, transitando por caminhos díspares de formação.
É aí que o princípio da interseccionalidade se faz necessário para entender a complexidade do cruzamento de opressões de raça, classe, gênero, idade, etnia, sexualidade, também no que diz respeito ao acesso à educação e à permanência nos cursos. São avenidas identitárias que não agem separadamente nos padrões de exclusão. Ou seja, compõem uma multiplicidade de fatores que geram situações de exclusão dentro deste sistema patriarcal, colonialista e capitalista que cria, estrutura e hierarquiza posições sociais (Akotirene, 2019). Assim, pensar em políticas públicas para a promoção do ingresso e da permanência no ensino superior, tendo a interseccionalidade como lente teórica, metodológica e epistemológica para enxergar e analisar a realidade (Collins; Bilge, 2021), é um dos caminhos nesta tentativa de desarticulação dos sustentáculos das ideologias de dominação e de apagamento de grupos historicamente vulnerabilizados e invisibilizados na sociedade (Gonzales; Hasenbalg, 2022).
Mantendo, portanto, a perspectiva dos embates estruturais que, assim como em outras áreas, também permeiam toda essa trajetória de ingresso na educação superior no Brasil, vale destacar a dimensão que o movimento O Direito Achado na Rua propaga de que:
Trata-se, portanto, de não perder de vista que há despolitização dos direitos humanos se eles restam apenas justificados em procedimentos interpretados por técnicos e especialistas, eliminando-se, assim, a sua dimensão combativa, libertadora e de luta instituinte popular, própria dos movimentos sociais que exercitam poderes soberanos de luta por direitos em face de contextos de dominação, exploração e discriminação (Escrivão Filho; Sousa Jr., 2016, p. 27).
Nessa perspectiva, a luta encabeçada por movimentos sociais organizados segue pressionando a elaboração de políticas públicas que foquem na promoção da equidade dentro da multiplicidade de populações marginalizadas. Tendo como pressuposto que as pessoas não são iguais e que, portanto, cabe ao Estado pensar e providenciar maneiras de protegê-las e de superar as matrizes de opressão no Brasil.
Educação como um Direito Humano Básico
Num encadeamento lógico crescente, cabe dizer que acessar o ensino superior é uma disputa diretamente associada aos direitos ao conhecimento, à informação e à educação. Ora, basta lembrar a consolidada noção de que “conhecimento é poder”. E, como tal, ferramenta contra as mais diversas arbitrariedades que tentem hierarquizar cadeias de privilégios e sujeições de indivíduos a dominações plurais.
Não à toa, nos primórdios da colônia, os portugueses resistiram à possibilidade de criar universidades no Brasil e tampouco permitiram o funcionamento da imprensa. A mesma lógica seguiu permeando a lentidão do Estado nas implementações de investimentos e de políticas públicas, visando a consolidação da educação acadêmica nas primeiras décadas da República. É possível ainda dizer que tal método continua em curso, com a aparente imagem de democratização do ensino, enquanto, na essência, mantém-se o cabresto da ignorância forjado por meio de ofertas de baixa qualidade e centradas em tecnicismos, ao invés de se fomentar o pensamento crítico e autônomo dos estudantes. Simples: para que dar voz e empoderamento a quem se quer manter marginalizado e explorado como massa de manobra? Além do mais, como bem frisou Demo (2006, p. 17), “o sistema […] teme um pobre que sabe pensar”.
Negar o acesso ao conhecimento é, antes de mais nada, o pressuposto da desordem informacional, na medida em que compromete a capacidade de as pessoas duvidarem do que está dado e, por conseguinte, questionarem. Mergulhados em um ambiente digital caótico e complexo, marcado pela economia psíquica dos algoritmos1, por guerrilhas narrativas2, por desinformações de diferentes tipos3 e pela contradição4 entre o excesso e a escassez de dados, “a compreensão humana não consegue apreender de forma organizada os fenômenos, tornando-se necessário acreditar neles” (Bastos; Siqueira, 2020, p. 4). E, uma vez desprovidas de faculdade crítica para submeter os conteúdos a que têm acesso ao crivo das evidências empíricas e do contraditório, “as pessoas simplesmente acreditam […], especialmente quando a dimensão do afeto está envolvida” (ibidem).
O lado mais interessante da politicidade é este: a gestação de sujeitos críticos e criativos, capazes de construir cidadanias organizadas e influentes, de elaborar contra-ideologias efetivas, de oferecer alternativas com base na arte de bem argumentar. Na história conhecida, a conquista crescente da autonomia coincide com os avanços do conhecimento em geral, da ciência e da tecnologia, por meio das quais todos os limites foram afrontados e, de modo geral, superados (Demo, 2006, p. 17).
E se, em tempos de fluidez pós-moderna, prevalece a supremacia do “eu”, individualizações fragilizam os vínculos sociais, bem como as noções de estabilidade e de ordem das instituições (Bauman, 2008). Nessa volatilidade das relações, as estruturas podem colapsar a qualquer momento. É aí que demagogias oportunistas e autoritárias se utilizam de brechas, muitas vezes dentro do próprio sistema político, para tentar colocar em xeque valores democráticos, em nome de interesses golpistas e/ou pessoais (Levitsky; Ziblatt, 2018).
Se, séculos atrás, atravessando os amplos processos do Renascimento, da Reforma Protestante e da Revolução Industrial, as universidades se transformaram em centros de referência para a consolidação e o fortalecimento dos Estados nacionais modernos, como resgata Schwartzman (2014), neste novo contexto de desmantelamento de marcos e de liquefação de padrões (Bauman, 2008), os desafios são outros. Mas tão complexos a ponto de exigirem que a lógica de educação superior em si seja repensada e que busque novas identidades.
Diante desse cenário, atravessado pela violação de diferentes direitos, que aprofunda desigualdades, cabe-nos perguntar qual o papel das universidades? É parte da função social das instituições de ensino superior garantir que a educação esteja a serviço da formação e transformação do indivíduo, pelo desenvolvimento de competências técnicas e também de pensamento crítico e valores humanísticos para atuação na sociedade. A universidade oferece um bem público. Sendo assim, podemos evidenciar a estreita relação da universidade com a promoção da cidadania e dos direitos humanos (Moura; Nogueira, 2021, p. 28).
Nesse aspecto, ainda, cabe a vertente reformista (e não o caráter revolucionário) das universidades. Ou seja, a face que busca preservar e ampliar os repertórios filosóficos, técnicos e científicos, por meio da educação, da capacitação e da certificação de pessoas, ao invés de tentar romper com a ordem e o poder estabelecidos (Schwartzman, 2014). Assim, muito mais do que mecanismo de mobilidade social e econômica, o conhecimento revela-se engrenagem para uma autonomia cidadã, capaz de promover qualidade política e efetivação de sociedades mais igualitárias, conforme preconiza Pedro Demo (2006).
Assim, as universidades vêm reiterando seu compromisso com a sociedade. Diante de uma crise com múltiplas dimensões (sanitária, econômica e política), que deve impor novos desafios e mudanças estruturais à sociedade brasileira e global, não resta dúvida de que os conhecimentos e práticas sociais produzidos nas universidades serão centrais na busca de respostas adaptativas. Essas respostas devem ser orientadas pela defesa do bem-comum, o que significa fortalecer o compromisso da cidadania com a coletividade. Deve impulsionar também a defesa das instituições públicas responsáveis pela promoção do acesso a direitos fundamentais e, dentre elas, a universidade pública, para que essa seja cada vez mais inclusiva, de excelência e democrática (Moura; Nogueira, 2021, p. 30).
E, ao trazer também Paulo Freire (1999) para este debate, reforça-se a relação direta entre a prática educativa-crítica e a materialização dos direitos humanos. O educador considera que a formação ética é o que permite a construção da autonomia cidadã dos sujeitos. Haja vista que o domínio da historicidade do conhecimento, a abertura a novos aprendizados e a produção de conhecimentos ainda não existentes afetam diretamente as maneiras de ocupar e de intervir no mundo. A partir da conjunção entre saberes socialmente construídos na prática comunitária e saberes curriculares, é possível que as pessoas operem por si mesmas, fomentem a inquietação indagadora e aproximem-se da cidadania que liberta.
Óticas da Desigualdade Educacional no Brasil
A sociedade é estruturada ideologicamente e essa ideologia atua por meio de estruturas educacionais, políticas, econômicas, etc. que delineiam sua organização e seus indivíduos, de modo que haja uma determinada dinâmica social que possa favorecer determinados grupos, ideias, conceitos e, por outro lado, apagar ou diminuir a importância de outros atores.
Dessa forma, o conceito de pobreza política, que tratamos anteriormente, tem relação direta com a desigualdade educacional. Enquanto tem-se uma classe política e abastada que possui acesso a instituições de ensino privadas e públicas de qualidade, a classe menos privilegiada tem acesso a uma educação pública que se sustenta a duras penas, em escolas que não possuem estrutura física e materiais adequados, com profissionais sugados pelo sistema e cansados física e mentalmente, e ambientes absorvidos pela situação local, que muitas vezes é de violência e pobreza. A escola, neste caso, não consegue dar conta de toda a problemática que o discente vivencia fora do horário de aula e tem-se, dessa forma, uma educação de protocolo, mais conteudista do que de aprendizado. Isso sem mencionar as disparidades tecnológicas que existem entre estudantes das diversas classes sociais. Enquanto em uma escola privada de qualidade existem recursos tecnológicos à disposição do(a) professor(a), como tablets, computadores, aulas de robótica e programação, em algumas escolas públicas faltam recursos básicos, analógicos.
Nesse contexto mencionado, não é de se esperar que haja a formação de uma sociedade em que o cidadão é educado para sua autonomia política e cidadã, mas sim tem-se um indivíduo condicionado a viver de acordo com as suas precárias possibilidades, nas quais há uma maior preocupação em conseguir sua manutenção física, com alimentação, moradia e trabalho, do que com outras questões mais amplas, que envolvem mudanças sociais e políticas. Fazendo um paralelo com a situação política do Brasil, é interessante verificar como a preservação deste ciclo vicioso compromete o exercício da cidadania. A sociedade brasileira não possui uma participação política ativa, a não ser em grupos organizados, como movimentos sociais. Dessa forma, a desigualdade educacional, que no regime capitalista só encontra soluções paliativas, é voltada para a construção de escalas sociais de conhecimento, na qual a escala mais baixa vive em uma situação de alienação constante.
Piketty salienta a importância da transparência de gastos e investimentos no sistema educacional para que seja possível a construção de normas aceitáveis de justiça educacional. Esse é um tema de grande relevância não somente em termos de educação, mas para uma democracia saudável. É importante que o cidadão esteja a par do que acontece com seus impostos para que estes sejam cada vez mais bem empregados.
Entretanto, cai-se em um círculo vicioso, considerando que, para o indivíduo fiscalizar e cobrar a boa administração dos recursos públicos, ele necessita de certo arcabouço educacional, o qual a maioria dos brasileiros não possui. Muitas vezes os recursos são transparentes, mas há uma dificuldade tão abissal em termos de compreensão das informações públicas que, mesmo que haja algum desperdício, ele não é identificado com rapidez. Há uma linguagem burocrática que envolve a administração pública e que distancia cada vez mais o cidadão comum das decisões e ações públicas.
Além da apresentação de dados pouco transparentes sobre investimentos, custeios e fragilidade das nossas estruturas educacionais, há que se considerar também a deficiência de clareza e acessibilidade de editais, links e canais institucionais que, em tese, deveriam direcionar e canalizar as oportunidades de ingresso e de acesso a políticas públicas que favorecem a permanência dos estudantes. Mas, pelo contrário, boa parte desses documentos e processos são herméticos, de difícil compreensão e já representam, em si, barreiras extraoficiais de seleção entre candidatos e discentes com mais privilégios e que possam contar com apoios de cursinhos, familiares e professores para lhes indicar os caminhos burocráticos de inscrições, recursos e solicitações durante a etapa do vestibular, por exemplo.
Senkevics (2021), por sua vez, ressalta outro aspecto que está relacionado à meritocracia do ingresso. Entrar no ensino superior é um evento que demanda do candidato a superação de algumas barreiras para além da simples barreira normativa da conclusão da educação básica. Primeiramente, esse candidato deve competir nos vestibulares, competitividade essa que é tanto mais acirrada quanto mais o curso é prestigiado. Já o segundo diz respeito à superação dos desafios socioeconômicos de custear as mensalidades no setor privado, mesmo em sua faceta massificada e de relativo baixo custo. Sem subsídio público, uma parte considerável da juventude brasileira encontra-se impossibilitada de frequentar universidades particulares de prestígio, e mesmo as faculdades de massa são bancadas com árduo esforço.
O autor também cita os custos com a migração para as universidades, e permanência nestas, de estudantes provenientes de regiões interioranas. Ou seja, a condição socioeconômica do candidato a um curso superior é fundamental para que este permaneça e conclua o curso, não bastando apenas seu esforço acadêmico para ser aprovado no vestibular, o que, por si só, já se sustenta como um grande desafio. O que se tem no Brasil dos dias de hoje mais acentuadamente é uma educação que persiste na reprodução de mecanismos de disparidades sociais. São as consequências de uma educação fundada, desde o princípio, para controlar seus estudantes, e não para libertá-los.
Quando se fala em avanços no ensino superior, maior inclusão de estudantes em vulnerabilidade, instituição de políticas de cotas, entre outras ações afirmativas, não se verifica, em um primeiro momento, se esses estudantes estão acessando cursos mais prestigiados e que possuem acirrada concorrência ou se estão conseguindo ocupar vagas em instituições de ensino superior de grande prestígio. A questão é que a inclusão acontece, mas nem sempre esses estudantes inclusos conseguem alcançar o mesmo patamar que outros estudantes já afeitos ao sistema, inclusive após sua graduação, quando do ingresso na carreira propriamente dita.
A solução das desigualdades passa pela oferta de uma educação de base de qualidade. É necessário, desde a educação básica, promover igualdade de oportunidades para os diversos grupos que compõem o sistema. É imperioso que o Estado identifique os diversos problemas educacionais em distintas regiões, com distintas pessoas, em distintas séries e em distintas classes sociais. É fundamental levar em conta as diferenças que perfazem os discentes para que se deem, de forma real, oportunidades para que estes indivíduos possam se desenvolver plenamente. A grande questão é que essa radicalidade de atuação no sistema educacional não traz resultados em curto prazo. Podem-se levar anos, décadas, para que os primeiros louros sejam colhidos. Por outro lado, a classe política, que é sustentada pela sociedade brasileira, não parece interessada em resultados a longo prazo, porque ações como essa exigem um trabalho contínuo entre governos sucessivos, o que não acontece na prática. Mudam-se os governos, mudam-se as ações e políticas educacionais. Além disso, ações de longo prazo não ganham eleições.
Conclusão
Ao revisitar o pensamento de autores heterogêneos e cruzar conceitos teóricos, a principal contribuição deste trabalho está em situar a educação superior (na condição de objeto de pesquisa) dentro do campo dos direitos humanos. Caminhar no sentido da compreensão das complexidades que permeiam contextos de lutas mais abrangentes, evidencia as artimanhas para concentração simbólica do poder e do capital sob a tutela de poucos. Permite, ainda, enxergar a pobreza política como projeto neoliberal de Estado.
Acessar o ensino superior, bem como o conhecimento, a informação e educação são movimentos que conduzem à autonomia cidadã. E, ao opressor, não interessa dotar a massa de ferramentas intelectuais para questionar a si e ao mundo. Por isso, resistir à reprodução das desigualdades e mazelas da sociedade como um todo deve se constituir em meta e desafio permanentes. É preciso reconhecer e incorporar a lógica segundo a qual qualquer avanço em sentido à igualdade e equidade advirá da luta organizada dos próprios excluídos. Conforme Santos e Martins (2019, p. 15):
Imaginar os direitos humanos como parte de um encontro de linguagens de dignidade implicaria partir de um profundo conhecimento das vozes (gritos e murmúrios), das lutas (resistências e levantes), das memórias (traumáticas e exaltantes), e dos corpos (feridos e insubmissos) daqueles e daquelas que foram subalternizados pelas hierarquias modernas baseadas no capitalismo, no colonialismo e no patriarcado. […] Só assim será possível compreender as gramáticas de dignidade a partir dos diferentes sentidos do humano que emergem dos contextos em que são vividos.
Este trabalho contextualiza, portanto, a estruturação do ensino superior no Brasil como parte de um sistema complexo e diretamente interligado. Por isso, conquistas e desafios que eclodem dentro dos campi universitários são cenários que remetem a heranças históricas, sociais, culturais e políticas tão afloradas e contraditórias. Para muito além da formação acadêmica, a defesa e o fortalecimento da democracia e da participação social são pautas que passam, necessariamente, pela garantia de equidade, haja vista que quaisquer marcadores sociais de exclusão fragilizam a perspectiva de cidadania plena. E a universidade, como sede da liberdade de pensamento, faz parte da instância de lutas pela materialização dos direitos humanos.
Referências
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- De acordo com Bruno, Bentes e Faltay (2019), trata-se de métodos que preveem e induzem comportamentos humanos, a partir da captura e da análise de informações psíquicas e emocionais de usuários de plataformas digitais. ↩︎
- Caracterizadas, no ambiente digital, por “disputas e tensões informativas, não de raro amparadas em distorções, em narrativas conspiratórias e em boatos sem fundamento sobre o tema retratado. […] A guerrilha de desinformação mantém a temperatura política em alta, a atenção coletiva sobre o tema concentrada e os nervos à flor da pele e suscetíveis a qualquer novo estímulo, que são as condições fundamentais para a propagação viral em larga escala de qualquer narrativa falsa sobre qualquer assunto” (Gomes; Dourado, 2019, p. 38). ↩︎
- Os autores enumeram sete tipos de má informação e desinformação. Em síntese, seriam eles: 1) conteúdos jocosos com potencial de enganar; 2) conteúdos enganosos que desviam o discurso sobre um problema ou indivíduo; 3) conteúdos impostores com atores genuínos personificados por falsários; 4) conteúdos fabricados e 100% falsos, com intenção de enganar; 5) conteúdos com falsa conexão entre elementos de entrada (títulos, imagens, etc.) e o restante do conteúdo; 6) contextos falsos, com conteúdos genuínos deslocados de conjuntura; 7) conteúdos manipulados e modificados para enganar, a partir de informação ou imagens genuínas (Bastos; Siqueira, 2020). ↩︎
- Tal contradição expressa-se pela abundância de informações generalistas em circulação, ao mesmo tempo em que o acesso e/ou a interpretação de determinados dados de interesse público, principalmente relacionados a instituições públicas e privadas, é restrito e/ou dificultoso. ↩︎