O presente estudo analisa a relação entre vulnerabilidade social, migração interna, trabalho análogo à escravidão e os impactos da pandemia de COVID-19, a partir do caso de trabalho forçado envolvendo vinícolas do Rio Grande do Sul em 2023. Faz-se relevante na atualidade em razão do crescimento exponencial de casos de trabalho análogo à escravidão observado nos últimos anos no país, especialmente após a pandemia. Este trabalho objetiva demonstrar, portanto, como grupos impactados pela vulnerabilidade socioeconômica, intensificada pela pandemia de COVID-19, vendo poucas opções senão a migração interna, tornam-se mais suscetíveis a serem vítimas do trabalho análogo à escravidão. Como pesquisa quali-quantitativa, bibliográfica e documental, adota-se o método indutivo de caráter descritivo, além de estudo de caso do episódio de trabalho análogo à escravidão nas vinícolas do Rio Grande do Sul em 2023. Concluiu-se que a vulnerabilidade socioeconômica e a migração interna estão intrinsecamente ligadas ao trabalho forçado, sendo necessária a realocação de recursos governamentais para a fiscalização do trabalho, bem como a promoção de políticas de proteção social e humanitária e de programas de capacitação aos grupos mais vulneráveis, visando minimizar sua marginalização do mercado de trabalho, afastando-os de subempregos.
Sumário
Introdução
Em abril de 2024, a lista do governo federal de empregadores envolvidos com o trabalho análogo à escravidão no Brasil atingiu seu recorde, alcançando o registro de 654 pessoas físicas e jurídicas, na maior atualização já observada na história (Ministério do Trabalho e Emprego, 2024). Em 2023, ainda, foi registrado o maior número nos últimos quatorze anos de pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão no Brasil, com o resgate de 3.190 trabalhadores (Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União, 2024). A problemática é especialmente preocupante no Rio Grande do Sul, quarto estado com o maior número de ações de resgate registradas no último ano (Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União, 2024).
Em face do cenário narrado, o presente estudo visa estabelecer uma relação entre vulnerabilidade social, migração interna, trabalho análogo à escravidão e os impactos da pandemia de COVID-19, tomando como ponto de partida o caso de trabalho forçado envolvendo as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, no Rio Grande do Sul, em 2023. Faz-se relevante no atual cenário brasileiro em razão do crescimento exponencial de casos de trabalho análogo à escravidão que vem sido observado nos últimos anos, especialmente após a pandemia. Objetiva demonstrar, portanto, como grupos impactados pela vulnerabilidade socioeconômica, intensificada pela pandemia de COVID-19, vendo poucas opções senão a migração interna, tornam-se mais vulneráveis a empregadores predatórios, tendo maiores chances de tornarem-se vítimas do trabalho análogo à escravidão.
Metodologia
O projeto embasou-se em pesquisa quali-quantitativa, bibliográfica e documental, através de método indutivo de caráter descritivo, bem como de estudo de caso do episódio de trabalho análogo à escravidão nas vinícolas do Rio Grande do Sul em 2023, objetivando demonstrar a relação entre vulnerabilidade social, migração interna, trabalho forçado e os impactos da pandemia de COVID-19. Coletou-se dados qualitativos de entrevistas e relatórios de audiências realizados por figuras relevantes para a discussão da temática, como Sérgio Augusto Letizia Garcia, chefe da Seção de Segurança e Saúde no Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) do Rio Grande do Sul, e Miguel Rossetto, ex-Ministro da Secretaria-Geral do Trabalho e Previdência Social, além de utilizar-se dados de reportagens que abordam o objeto de estudo. Ainda, recorreram-se a levantamentos realizados pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pela Auditoria Fiscal do Trabalho, bem como às legislações nacionais e princípios internacionais que regem o Direito do Trabalho no Brasil.
Trabalho Análogo à Escravidão no Rio Grande do Sul
Em fevereiro de 2023, a Polícia Rodoviária Federal (PRF), em operação conjunta com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e com a Polícia Federal (PF), resgatou 207 trabalhadores em situação de trabalho análogo à escravidão em um alojamento em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, pertencente à Fênix Serviços Administrativos, empresa terceirizada que oferecia mão de obra às vinícolas da região. A operação foi deflagrada quando três trabalhadores buscaram a PRF em Caxias do Sul, alegando terem escapado das instalações da empresa, em que eram mantidos contra sua vontade sob condições deploráveis e submetidos a inúmeros abusos (Trabalhadores…, 2023).
Sob promessas de salários superiores a três mil reais, além de acomodação e alimentação, os trabalhadores, majoritariamente migrantes do Nordeste, imaginaram ter encontrado uma oportunidade de emprego promissora em meio à vulnerabilidade social sofrida, agravada em decorrência da pandemia de COVID-19 no Brasil. A realidade, porém, foi outra: de imediato, depararam-se com grandes dívidas, decorrentes da viagem, que rapidamente acumularam-se com outras e se tornaram cada vez mais extorsivas. Severamente endividados, os trabalhadores eram, conforme deposto ao MTE, obrigados a enfrentar jornadas de trabalho exaustivas diariamente, das 5h às 20h, sem pausas, com folgas apenas aos sábados, apesar de serem forçados a assinar no livro de ponto que também lhes eram concedidas folgas aos domingos (Trabalhadores…, 2023). “Surpreendidos com as condições do trabalho […], tentaram ir embora, mas foram ameaçados e espancados” (Trabalhadores…, 2023). Ainda, foi exposto que:
[…] os representantes da Fênix ofereciam a eles comida estragada, que só podiam comprar produtos em um mercadinho perto do alojamento, com preços superfaturados, e que o valor gasto era descontado do salário, o que fazia com que os trabalhadores acabassem o mês devendo, pois o consumo superava o valor da remuneração (Trabalhadores…, 2023).
As vítimas declararam que, além de não auferirem qualquer remuneração, eram impedidas de sair do local, sendo mantidas em cárcere privado nos alojamentos precários da companhia e obrigadas a pagar multas caso desejassem sair, endividando-se ainda mais profundamente. Quanto às condições das instalações, os trabalhadores afirmaram que essas estavam infestadas de abelhas e marimbondos, sendo “[…] normal que fossem picados pelos insetos e, quando pediam remédios, os pedidos eram ignorados” (Campos, 2023). Alegaram, ainda, que, além de enfrentarem abusos verbais e psicológicos, na forma de gritos e xingamentos, eram atormentados por constantes ameaças dos empregadores aos seus familiares. No tocante a abusos físicos, citaram espancamentos com socos, cassetetes, cabos de vassoura e, até mesmo, cadeiras de ferro, além de agressões com choques elétricos e sprays de pimenta (Campos, 2023). Sérgio Augusto Letizia Garcia, chefe da Seção de Segurança e Saúde no Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) do Rio Grande do Sul, afirmou que “nunca tinha visto nada parecido” (Garcia, 2023), declarando que este fora o caso mais violento que já havia presenciado em toda sua carreira. Vanius Corte, gerente regional do MTE em Caxias do Sul, similarmente assegurou que, em seus 18 anos de atuação, nunca havia visto uma situação como a encontrada em Bento Gonçalves.
Ainda em 2023, outra operação de resgate salvou quatro trabalhadores de situação de trabalho análogo à escravidão em Nova Petrópolis, também no Rio Grande do Sul. As vítimas, que laboravam com o corte de lenha em uma propriedade rural do município, foram abandonadas nas matas que circundam o local por seus empregadores, sem quaisquer recursos para alimentação ou moradia. Conforme depoimento da equipe de resgate, os trabalhadores foram encontrados “[…] acampados na mata em condições insalubres e totalmente desassistidos […] estavam sem água potável, sem energia elétrica e sem acesso a banheiros” (Cristaldo, 2023). No ano anterior, em abril de 2022, 80 homens foram resgatados do trabalho forçado após serem aliciados em regiões do Nordeste, como Bahia, Paraíba e Maranhão, para trabalharem na colheita da maçã, em Bom Jesus, novamente, no Rio Grande do Sul (Sobrinho, 2023).
Tal cenário acarretou a criação da operação In Vino Veritas, que surge como parte de esforços tardios do estado para a fiscalização de irregularidades trabalhistas no setor vitivinicultor da Serra Gaúcha, visando garantir o direito dos trabalhadores safristas em meio a um contexto de repetidas violações de direitos humanos na cadeia produtiva de uva na região (Ministério do Trabalho e Emprego, 2024). Como observado, a questão do trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul, especialmente após a pandemia de COVID-19, é extremamente alarmante no estado sulista, que se apresentou quase completamente dormente frente à problemática até o ano de 2023, em que, confrontado com possivelmente um dos mais graves casos de trabalho forçado no Brasil, não pôde mais se manter inerte.
É evidente, portanto, que o trabalho análogo à escravidão surge como questão reincidente, estrutural e sistemática no Rio Grande do Sul, sendo a viabilização da operação In Vino Veritas uma iniciativa importante para o combate da problemática, ainda que extremamente tardia e consideravelmente pífia frente às dimensões da questão.
Vulnerabilidade Social e Migração
Por óbvio, a maioria das pessoas não migra por motivo qualquer – há fatores que incidem drasticamente sobre a vida de pessoas migrantes, gerando quadros de vulnerabilidade social tão intensos que se tornam quase intoleráveis, levando à migração. Segundo o geógrafo André Freitas, “o migrante é aquele que se desloca, geralmente buscando melhores condições de vida através dessa viagem” (Freitas, 2010) e, ao tratar-se da temática da migração, entende-se que existem fatores de repulsão e de atração. Os primeiros estão diretamente relacionados à vulnerabilidade social, como a fome, pobreza, guerras, epidemias e desemprego, enquanto os segundos associam-se às soluções dessas vulnerabilidades, como oportunidades de emprego, oferta de melhores salários, disponibilidade de terras, liberdade religiosa e lideranças democráticas, sendo responsáveis pelo direcionamento dos fluxos migratórios.
Em casos de trabalho análogo à escravidão, como os citados, pode-se destacar dois momentos de migração, ambos indissociáveis da vulnerabilidade social. O primeiro consiste na saída do local de origem em direção ao Sul brasileiro, em que se observa o fator de repulsão criado pela realidade nordestina, em que se enfrenta grave crise socioeconômica e estrutural, acompanhada por sérios problemas de ordem política; a oportunidade de receber uma boa remuneração em um trabalho agrícola surge, então, como um fator atrativo determinante para essa mão de obra vulnerável, ansiosa para abandonar a conjuntura crítica de sua localidade de origem. O segundo momento surge no anseio de se livrar de uma situação pior que a anterior: o trabalho análogo à escravidão. Ao perceberem que foram enganados e que estavam sendo mantidos forçosamente em seus trabalhos, sofrendo violência física, verbal e psicológica, as vítimas buscaram desesperadamente por ajuda para retornar aos seus locais de origem.
Ainda no tópico da vulnerabilidade, faz-se relevante discorrer sobre o perfil da vasta maioria de vítimas do trabalho forçado no Brasil. Conforme balanço realizado em 2020 pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), “homens jovens, negros e pardos, com baixa escolaridade ou analfabetos são as principais vítimas do trabalho escravo contemporâneo no Brasil” (Cavalcante, 2023). Segundo perfil traçado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, dos trabalhadores resgatados da escravidão contemporânea no Rio Grande do Sul nos últimos anos, nove a cada dez são homens, mais de um terço tem de 18 a 24 anos e 74% são pretos e pardos, além de apresentarem baixos níveis de escolaridade, tendo 22% dos resgatados estudado apenas até o 5º ano, 19%, até o ensino fundamental, e sendo 3% analfabetos (Sobrinho, 2023). Portanto, faz-se inequívoca a relação entre vulnerabilidade social, fluxos migratórios e o trabalho análogo à escravidão.
Pandemia de COVID-19: Agravo da Vulnerabilidade Social e Propulsora de Fluxos Migratórios
Os impactos da pandemia de COVID-19 agravaram consideravelmente a vulnerabilidade social no país, intensificando fatores de repulsão já significativos para grande parte da população e agravando fatores socioeconômicos estruturais, de forma a impulsionar fluxos migratórios, especialmente internos, em busca de oportunidades de emprego, consequentemente expondo migrantes a empregadores predatórios, aumentando suas chances de tornarem-se vítimas do trabalho análogo à escravidão. Sobre o aumento de casos de trabalho forçado entre 2022 e 2023 no Brasil, o Procurador do Trabalho Italvar Medina o atribuiu diretamente aos elevados índices de pobreza resultantes dos efeitos da pandemia de COVID-19:
Quando a situação econômica se agrava, aumentam as chances de essas pessoas […] serem aliciadas para trabalho em locais distantes mediante falsas promessas de ótimas condições de trabalho e remuneração. Chegando lá, descobrem que a situação não é como a prometida (Medina, 2023).
Em relatório anual intitulado “Panorama Social da América Latina”, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) expôs que a desigualdade socioeconômica na região aumentou consideravelmente entre 2019 e 2020, rompendo uma tendência decrescente que vinha sendo observada desde 2002. Através do Coeficiente de Gini – utilizado internacionalmente para a análise da distribuição de renda em certas áreas – foi verificado um aumento em 0,7% na média regional da América Latina e Caribe entre 2019 e 2020, deterioração diretamente relacionada com as repercussões da pandemia.
Em 2020, a pobreza e a extrema pobreza alcançaram níveis não mais atingidos nos últimos 12 e 20 anos na América Latina, respectivamente. Ainda, houve significativa piora nos índices de desigualdade na região e nas taxas de desemprego, também em decorrência da pandemia de COVID-19. O relatório estipula, ainda, que, entre 2020 e 2021, o índice de pessoas em situação de extrema pobreza aumentou em quase cinco milhões, em um crescimento de 81 milhões em 2020, para 86 milhões em 2021, retrocedendo em 27 anos. Como afirma Alicia Bárcena, Secretária-Executiva da CEPAL:
Apesar da recuperação econômica experimentada em 2021, os níveis relativos e absolutos estimados de pobreza e de extrema pobreza mantiveram-se acima dos registrados em 2019, o que reflete a continuação da crise social. A crise também colocou em evidência a vulnerabilidade em que vive boa parte da população nos estratos de renda média, caracterizados por baixos níveis de contribuição para a proteção social contributiva e muito baixa cobertura da proteção social não contributiva (CEPAL, 2022).
Em 2023, de acordo com projeções feitas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), existiam, no Brasil, cerca de 17,7 milhões de pessoas que voltaram à pobreza (Gemaque, 2023). Cabe ressaltar, ainda, que todos esses impactos socioeconômicos relatados são percebidos ainda mais profundamente pelas camadas menos favorecidas da população. Segundo o relatório “Pobreza e Equidade no Brasil – Mirando o Futuro Após Duas Crises”, do Banco Mundial, os pobres e vulneráveis do país são os que sentiram mais duramente as consequências econômicas negativas da pandemia, tendo os 40% mais vulneráveis da população sido os mais atingidos pela deterioração do mercado de trabalho e a consequente diminuição da renda domiciliar (Banco Mundial, 2022). Entre os jovens, aqueles de baixa escolaridade, os afro-brasileiros e os residentes nas regiões Norte e Nordeste apresentaram maiores probabilidades de perder seus empregos como resultado da pandemia, agravando sua vulnerabilidade social (Banco Mundial, 2022). Como afirma o cientista político Lúcio Rennó, o aprofundamento da desigualdade e pobreza é quase lei quando se passa por crises econômicas no país: “[…] os setores mais pobres da sociedade são os que mais sofrem. E sentem de forma mais imediata e rápida e são os que levam mais tempo para se recuperar desse processo” (Rennó, 2022).
Em meio a esse cenário de pobreza e desemprego, observou-se um momento propício para migrações em busca de oportunidades de emprego, uma vez que, como afirma a pesquisadora Verônica Maria Teresi, na atualidade, “[…] tem-se o deslocamento populacional motivado principalmente por buscas de postos de trabalho e, consequentemente, por melhorias na qualidade de vida” (Teresi, 2012).
No contexto pós-pandêmico, os impactos do desgaste econômico, aumento da desigualdade social, da extrema miséria e pobreza e dos altos níveis de desemprego – todos agravantes da vulnerabilidade social – forjaram um cenário consideravelmente propício para situações de trabalho análogo à escravidão. Em busca de alguma forma de subsistência, a classe operária fragilizada, em meio a uma conjuntura de incerteza e desespero, tornou-se mais vulnerável a empregadores predatórios e situações de trabalho abusivas. Em 2022, a Auditoria Fiscal do Trabalho verificou que mais de 2,5 mil trabalhadores estavam sendo explorados, em um aumento de 31% no número de vítimas em relação a 2021, e de 127% em relação a 2019, antes da pandemia. De acordo com o cientista político Xavier Plassat, “a precarização das leis trabalhistas e o cenário de miséria – que empurrou mais de 19 milhões de brasileiros para a fome, no último ano, faz com que as escolhas das pessoas mais vulnerabilizadas sejam reduzidas a trabalhos que as desumanizam.” (Plassat, 2022).
Devido aos motivos supracitados, ascende, ainda, a questão da mão de obra barata; desesperados para sair de sua situação de vulnerabilidade e marginalizados do mercado de trabalho, os migrantes acabam tendo poucas oportunidades senão aquelas extremamente exploratórias, recebendo remunerações ínfimas, insuficientes para sua sobrevivência, retardando quaisquer chances de saída do quadro de vulnerabilidade em que se encontram. Considerando-se o principal caso abordado, sabe-se que, em observância aos aspectos geográficos e socioeconômicos do Nordeste, os trabalhadores nordestinos estavam à procura de uma oportunidade de trabalho que lhes garantisse pelo menos a sobrevivência. A oferta de emprego na colheita de uva era promissora, assegurando emprego temporário, salário justo, alojamento e refeições pagas. Portanto, em meio a escassas oportunidades de emprego e baixa remuneração em seu estado natal, sem perspectiva de melhora deste quadro, os trabalhadores, severamente vulnerabilizados, arriscaram-se a atravessar o país em busca de melhores condições de vida.
Assim, denota-se, indubitavelmente, a relação entre a pandemia de COVID-19 e o agravo da vulnerabilidade social, intensificando, dessa forma, os fatores socioeconômicos estruturais que levaram certos grupos a migrarem em busca de oportunidades de emprego, e, consequentemente, expondo migrantes a empregadores predatórios e aumentando suas chances de tornarem-se vítimas do trabalho análogo à escravidão.
Negligência Governamental: Muito Pouco, Muito Tarde
Urge destacar, por fim, o papel do Estado no aumento desenfreado de casos de trabalho análogo à escravidão no país nos últimos anos. Em decorrência de uma fiscalização insuficiente e ineficiente, em conjunto à frequente falta de responsabilização em situações similares, bem como a uma resposta tardia e consideravelmente pífia à problemática, os casos de trabalho análogo à escravidão têm crescido exponencialmente no Brasil nos anos subsequentes à pandemia de COVID-19, especialmente no Rio Grande do Sul.
Em reunião da Assembleia Gaúcha, a equipe do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) alertou que a estrutura de fiscalização do trabalho no Rio Grande do Sul já vinha sofrendo grave desmonte desde 2016. Corroborando o aviso, o procurador Italvar Medina, coordenador nacional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, expôs que:
Um fator que contribui para o aumento de casos de trabalho em condições análogas à de escravo é a redução das fiscalizações de rotina. […] Não é feito concurso público desde o ano de 2013 e há mais de 1500 cargos vagos, o que representa quase 50% do total de cargos (Medina, 2023).
Medina afirmou, ainda, que o quadro de fiscais trabalhistas no estado sulista caiu de 2.496 em 2016, para apenas 1.952 em 2022. Se de um lado a fiscalização era reduzida, por outro, o trabalho escravo crescia exponencialmente. Com a pandemia de COVID-19, esse quadro tornou-se ainda pior: o número de trabalhadores resgatados do trabalho escravo no Rio Grande do Sul triplicou desde 2021 (Paz, 2023). Naquele ano, os auditores fiscais do trabalho resgataram 69 vítimas no estado do Rio Grande do Sul. Em 2022, foram 156 e, em março de 2023, já eram 208, como demonstrado pela equipe de fiscalização da Superintendência do Ministério do Trabalho (MTE) no Rio Grande do Sul (Paz, 2023).
Concomitantemente, em 2022, em razão de decretos do ex-Presidente Jair Bolsonaro, foi retirado do Ministério Público o poder de fiscalização trabalhista, além de ter sido promovido o congelamento e recuo de inúmeros recursos públicos destinados a essa atividade. Como afirma Plassat, os atos resultaram “[…] no colossal déficit observado no quadro da Auditoria Fiscal do Trabalho: nos últimos dez anos, houve uma redução de cerca de 45% do quadro de Auditores e de quase 70% dos recursos orçamentários para a área” (Plassat, 2023). Além disso, o Ministério do Trabalho e Previdência também sofreu significativos vetos orçamentários em 2022, com cortes que chegavam aos bilhões (Rossetto, 2023). Para Miguel Rossetto, o desmonte do Ministério, junto à terceirização das relações de trabalho, como observado no caso das vinícolas no Rio Grande do Sul, gerou grave “[…] precarização em razão da reforma trabalhista, abriram espaço para todo tipo de exploração sem responsabilização das empresas que contratam” (Rossetto, 2023).
A negligência do estado sulista frente ao trabalho escravo é tão significativa que, em abril de 2023, a Comissão de Representação Externa acerca dos sistemas de combate ao trabalho análogo à escravidão alegou, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a completa inação do estado no combate à problemática, apresentando dados que demonstraram que o Governo do Rio Grande do Sul deixou de cumprir 34 dos 38 pontos do Plano Estadual de Combate ao Trabalho Escravo de 2013 (Santos, 2023). Ainda, observou-se a inexistência de qualquer recurso destinado para o tema no orçamento do executivo estadual (Santos, 2023).
Finalmente, em 2023, apenas após o resgate de 207 trabalhadores em deplorável situação de trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves (RS), foi criada a operação In Vino Veritas, visando à fiscalização de irregularidades trabalhistas no setor vitivinicultor da Serra Gaúcha e à garantia dos direitos de trabalhadores safristas (Ministério do Trabalho e Emprego, 2024). O esforço, apesar de bem-vindo, chega de maneira extremamente tardia e consideravelmente pífia em meio a um contexto de repetidas violações de direitos humanos na cadeia produtiva de uva na região e ao desmonte incessante das entidades fiscalizadoras do trabalho no estado sulista.
Depreende-se, portanto, que a questão do trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul, especialmente após a pandemia de COVID-19, surge como questão reincidente, estrutural e sistemática no estado sulista em razão da contínua negligência de seu governo, que apenas saiu de sua inércia quando confrontado com um dos mais graves casos de trabalho forçado no Brasil, em 2023.
Considerações Finais
Conclui-se, portanto, que a vulnerabilidade socioeconômica, a migração interna e os impactos da pandemia de COVID-19 estão intrinsecamente ligados ao trabalho análogo à escravidão no Brasil. Um considerável número de vítimas do trabalho forçado pertence a grupos socioeconomicamente vulneráveis, que, ainda mais vulnerabilizados em razão dos graves impactos da pandemia de COVID-19, migraram em busca de emprego, tornando-se mais expostos a empregadores predatórios. Afetados pelo cenário socioeconômico e estrutural de seus locais de origem, acabam “obrigados” a submeter-se a trabalhos possivelmente abusivos, por encontrarem-se marginalizados do mercado de trabalho. Urge, portanto, a necessidade de realocação de recursos governamentais para a fiscalização do trabalho, a fim de que, com a devida ampliação da supervisão das atividades trabalhistas, o quadro de crescimento exponencial de casos de trabalho forçado seja revertido, em combate a esse tipo de exploração. É necessária, ainda, além de políticas de proteção social e humanitária, a promoção de programas de capacitação aos grupos mais vulneráveis, a fim de minimizar sua marginalização do mercado de trabalho, afastando-os de subempregos.
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https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/03/02/depoimentos-trabalhadores-trabalho-escravo-rs.ghtml. Acesso em: 14 Jun. 2024.
WANDERMUREM, Isabella. O que é a “Lista Suja”, iniciativa do governo de combate ao trabalho análogo à escravidão. Disponível em: https://www.terra.com.br/nos/o-que-e-a-lista-suja-iniciativa-do-governo-de-combate-ao-trabalho-analogo-a-escravidao,dd0e58d8ece741764e907e133084bb553xi9wn5l.html. Acesso em: 14 Jun. 2024.
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