Nas entrevistas que realizo com russos que deixaram seu país após o início da guerra na Ucrânia, uma das histórias mais frequentes e dolorosas é a de perder ou mudar de profissão durante a emigração.
Quem precisa de arte em língua russa fora da Rússia? Como isso é sequer possível, se o país foi “cancelado”?
Lembre-se de que cerca de 12 milhões de russos vivem fora da Rússia, incluindo emigrantes de diferentes períodos históricos e seus descendentes. Isso representa 12 milhões de potenciais consumidores de produtos culturais em língua russa, sem mencionar aqueles que saíram após o início da guerra e a chamada “mobilização parcial”, bem como estrangeiros que se interessam pela arte russa, mesmo que essa não seja sua língua nativa.
Os russos fora de seu país nem sempre formam diásporas organizadas e, às vezes, nem sequer se comunicam entre si. Na França, um entrevistado me contou sobre um problema que encontrou em um casamento: aparentemente, você não pode colocar russos de diferentes ondas de emigração na mesma mesa, sob o risco de um escândalo.
Frequentemente, as comunidades russas nos países de acolhimento são virtuais, formadas em torno de chats no Telegram, de identidades profissionais (como “trabalhadores de TI”) e de assistência voluntária. Em outros casos, o que os reúne são os palcos, os espaços artísticos e os projetos criativos.
Como os russos não vivem de forma compacta em um único lugar, os grupos de artistas no exílio são forçados a abandonar qualquer sonho de ter seu próprio local ou de se apresentar em um palco principal e “uberizam” seu contato com o público. “Você precisa de teatro? Nós iremos até você”.
A mais recente onda de emigração russa é, por vezes, comparada ao êxodo dos Brancos após a Revolução Bolchevique, e espera-se que traga benefícios não menores para os países de acolhimento do que aqueles que partiram há um século.
Naquela época, por exemplo, a Sérvia emergiu como uma grande beneficiária, recebendo arquitetos, médicos e outros especialistas da Rússia. Hoje, Montenegro e Armênia obtiveram benefícios econômicos significativos do setor de TI russo. França e Reino Unido emitem vistos de talentos para russos, ainda lembrando a influência cultural de nomes como Mikhail (“Michael”) Chekhov e Nikita Balieff, entre muitos outros.
As altas expectativas são parcialmente justificadas: emigrantes russos contribuem para a pesquisa científica nos países de acolhimento, bem como para áreas como medicina baseada em evidências, o setor de TI e a indústria criativa. Novos teatros surgiram no exterior, como o The Chaika, que, em sua primeira temporada, realizou 38 apresentações em Lisboa, Paris e Luxemburgo (o autor deste texto ajudou a organizar a turnê em Luxemburgo).
Essa trupe, como seus predecessores de um século atrás, preserva a cultura russa – aquela parte que primeiro o governo soviético tentou banir e que agora a Rússia independente tenta “cancelar”.
Essas comunidades culturais de língua russa estão sendo apoiadas não apenas por emigrantes de ondas anteriores, patronos das artes, fundações de caridade e governos locais, mas também por profissionais altamente qualificados que deixaram recentemente a Rússia.
Um dos meus entrevistados na Armênia contou que ele e seus colegas criaram um coletivo de artistas, cuja ideia de negócio é oferecer aulas de piano, canto e pintura. Quando perguntado sobre o público-alvo, ele disse que estavam contando com especialistas em TI e suas famílias, que, tendo deixado o ambiente educacional e cultural familiar das grandes cidades russas (millioniki), estão buscando uma substituição nos novos locais de residência.
Novos círculos sociais frequentemente se formam em torno de artistas no exílio, oferecendo aos emigrantes uma chance de se conectar com pessoas de mentalidade semelhante e escapar da solidão, ansiedade e medo. Eles atraem aqueles que se definem não apenas como russos, mas também como “pessoas com um destino comum”.
Os artistas que, mesmo rejeitando a ideologia oficial da Rússia moderna, decidiram não emigrar, estão ajudando seus compatriotas anti-guerra e anti-regime dentro do país a sobreviverem a esses tempos difíceis: pessoas se unem em torno de “seus” músicos e artistas, em locais de arte privados e leituras de peças, enquanto também seguem os projetos criativos dos russos que partiram.
Artistas que se encontram fora da Rússia nem sempre conseguem deixar o medo de lado e se sentir livres. A imprensa oficial russa frequentemente escreve sobre eles em linguagem ofensiva e ameaçadora.
A maioria dos russos da mais recente onda de emigração deixou o país apenas com seus documentos internos russos – sem passaportes de outros países, sem uma reserva financeira ou uma ideia de onde trabalhariam (com exceção dos especialistas em TI, muitos dos quais foram realocados para o exterior por seus empregadores). Trabalhadores da arte não são exceção.
Normalmente, emigrantes têm parentes e propriedades ainda na Rússia, o que os torna vulneráveis às autoridades.
Além disso, as políticas dos países de acolhimento podem mudar de forma imprevisível, forçando russos a se mudarem novamente (por exemplo, a Turquia tem endurecido suas políticas de imigração – veja mais no Russia.Post). Meus entrevistados viveram, em média, em 3-4 países nos últimos dois anos e meio.
É impossível ter certeza de que você não se verá repentinamente sem uma permissão de residência válida ou acesso ao dinheiro (por exemplo, bancos estrangeiros têm recusado atender clientes da Rússia por medo de sanções secundárias). Se você não conseguir encontrar um emprego estável no exterior, terá que retornar à Rússia. O mesmo acontece se o seu passaporte interno expirar, já que só é possível obter um novo na Rússia – as embaixadas russas emitem apenas passaportes “internacionais”.
E a escolha mais difícil de todas: um parente ou amigo adoece e você precisa voltar, mas já escreveu muito online condenando o regime e a guerra.
Nesse cenário, os artistas se encontram em uma situação particularmente precária, especialmente se não forem estrelas ou parte de trupes famosas, como os cantores Zemfira e Monetochka, o diretor Kirill Serebryannikov ou o comediante Viktor Shenderovich.
Os emigrantes russos, em geral, e os países que os acolhem esperam que os artistas assumam uma posição ousada e pública contra a guerra. No entanto, artistas menos conhecidos e novos coletivos artísticos são consumidos pela insegurança: eles enfrentam o desafio não apenas de alcançar seu potencial artístico, mas também de simplesmente sobreviver a cada dia, o que significa obter status legal no país de acolhimento. Enquanto isso, geralmente são necessários pelo menos cinco anos para obter a cidadania de outro país, somente após o qual os russos exilados podem se sentir seguros e livres da dependência da Rússia.
Apesar de todos esses desafios, é a arte contemporânea russa no exílio que está se tornando o rosto público da Rússia banida em sua terra natal, perseguida pelas autoridades russas e difamada pelos propagandistas do Kremlin. A arte no exílio lembra ao mundo que – como qualquer outro país – a Rússia é multifacetada e que, mesmo nas situações mais difíceis, existem pessoas com quem o diálogo é possível.
Texto traduzido do artigo How Artists in Exile are Becoming a Focal Point for the Russian Diaspora, de Anna Kuleshova, publicado por Global Voices sob a licença Creative Commons Attribution 3.0. Leia o original em: Russia Post.