Curso de Geopolítica do Oriente Médio
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Geopolítica do Futebol: O Esporte como Instrumento de Poder e de Legitimação Internacional

"Infantino, Putin, and Macron in the French locker room at Luzhniki" by Russian Presidential Press and Information Office is licensed under CC BY 4.0

Ao longo do século XX, o futebol se consolidou como o esporte mais popular do planeta, com mais de 5 bilhões de torcedores espalhados pelos continentes, segundo dados da FIFA. Muito mais do que entretenimento ou competição esportiva, o futebol se tornou uma arena onde disputas políticas, interesses econômicos e estratégias diplomáticas são articuladas com grande intensidade. O esporte passou a desempenhar papel central na construção de imagens nacionais, na projeção de poder e no fortalecimento de agendas internacionais – um fenômeno que coloca o futebol no centro das Relações Internacionais contemporâneas.

Essa transformação não ocorreu de forma súbita. Desde os Jogos Olímpicos da Antiguidade e os torneios organizados por regimes totalitários no século XX — como a Copa do Mundo de 1934 na Itália fascista e os Jogos Olímpicos de 1936 na Alemanha nazista — o esporte tem sido manipulado como instrumento de propaganda e afirmação política. Contudo, é no século XXI, com a intensificação da globalização e da mídia digital, que o futebol atinge uma nova escala de instrumentalização geopolítica. Nesse contexto, surgem conceitos como diplomacia esportiva, soft power esportivo e, de maneira mais crítica, o fenômeno do sportswashing, no qual Estados autoritários ou com históricos questionáveis em direitos humanos utilizam grandes eventos esportivos para melhorar sua imagem internacional.

Um exemplo paradigmático dessa tendência é a recente escolha da Arábia Saudita como sede da Copa do Mundo de 2034, uma decisão que reacendeu debates sobre o uso do futebol como ferramenta de rebranding político. O país, que ainda criminaliza a homossexualidade e mantém dezenas de prisioneiros de consciência, já investiu mais de US$ 6,3 bilhões em esportes nos últimos cinco anos, incluindo a compra do clube inglês Newcastle United, a contratação de astros como Cristiano Ronaldo e a organização de torneios internacionais. O objetivo é claro: projetar uma imagem de modernização e progresso compatível com sua ambiciosa Visão 2030, liderada pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman.

Por outro lado, a FIFA também assume um papel ativo nessa nova ordem futebolística. Sob a presidência de Gianni Infantino, a entidade tem promovido iniciativas novas como a reformulação do Mundial de Clubes, que passará a contar com 32 equipes a partir de 2025 e com sua primeira edição nos Estados Unidos. A proposta visa rivalizar com a UEFA Champions League — principal torneio de clubes do planeta — tanto em prestígio quanto em retorno financeiro. O vencedor do novo Mundial poderá embolsar até US$ 125 milhões, valor que se aproxima dos US$ 154 milhões distribuídos pela UEFA ao campeão europeu da temporada 2023/2024.

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Essa expansão, contudo, tem gerado tensões profundas entre FIFA e UEFA. A disputa vai além da agenda esportiva: trata-se de uma verdadeira batalha institucional pela hegemonia simbólica, econômica e política do futebol mundial. Como revelou o The Athletic, os bastidores dessa disputa envolveram boicotes diplomáticos, abandono de congressos, críticas públicas e um crescente mal-estar entre lideranças. Enquanto isso, a Conmebol, tradicionalmente relegada a um papel periférico nos bastidores do poder, enxerga nessa tensão uma oportunidade estratégica para ampliar sua influência e revalorizar o futebol sul-americano no tabuleiro político-esportivo.

Diante deste cenário, este artigo busca analisar como o futebol contemporâneo se transformou em uma ferramenta geopolítica de alta relevância. A partir de casos emblemáticos e dados recentes, investigaremos as implicações dessa transformação para o sistema internacional, questionando: quem se beneficia com a mercantilização da imagem esportiva? Até que ponto o futebol pode ser usado como mecanismo de diplomacia pública e legitimação política? E o que isso revela sobre os rumos das Relações Internacionais no século XXI?

Mais do que discutir o futuro do futebol, este artigo propõe uma reflexão crítica sobre o futuro das democracias, dos direitos humanos e das estruturas internacionais que, muitas vezes, são manipuladas por trás das cortinas de um simples jogo.

A Guerra Fria do Futebol: FIFA x UEFA

A rivalidade entre FIFA e UEFA não é nova — mas nunca esteve tão exposta, estratégica e intensamente politizada quanto nos últimos anos. Se a FIFA representa a autoridade mundial do futebol e busca constantemente expandir sua influência em mercados emergentes, a UEFA, com sede na Suíça e fortemente ancorada na Europa Ocidental, atua como a guardiã dos interesses históricos, financeiros e competitivos do futebol europeu. A disputa entre ambas as entidades se transformou, na prática, em uma nova guerra fria institucional, travada nos bastidores do esporte mais popular do planeta.

O estopim mais recente desse conflito é a realização do novo Mundial de Clubes da FIFA, que acontece em 2025, nos Estados Unidos. Com 32 clubes participantes, o novo formato amplia significativamente o modelo anterior e cria um torneio com enorme apelo midiático, potencial de audiência global e valor comercial estimado em bilhões de dólares. O torneio é projetado para rivalizar em prestígio e retorno financeiro com a Champions League, maior ativo esportivo da UEFA.

Contudo, a proposta não caiu bem na Europa. A UEFA vê na escolha dos Estados Unidos e na expansão do Mundial uma tentativa da FIFA de esvaziar o prestígio da Champions e tomar para si a centralidade do calendário e da narrativa futebolística mundial. O desconforto atingiu níveis diplomáticos no Congresso da FIFA realizado em Assunção, em maio de 2025, onde oito membros da UEFA — incluindo o presidente Aleksander Čeferin — abandonaram o evento em protesto à ausência de Infantino, que priorizou encontros políticos com Donald Trump, no Catar e na Arábia Saudita.

Esse embate revela muito mais do que divergências sobre organização de campeonatos. Trata-se de uma disputa geopolítica pelo controle simbólico do futebol mundial. O fato de o novo torneio acontecer nos Estados Unidos não é apenas uma escolha logística — é uma afirmação estratégica. O modelo esportivo norte-americano opera com lógica inversa à do futebol internacional: lá, as grandes ligas nacionais — como a NFL (futebol americano), a NBA (basquete), a MLB (beisebol) e a NHL (hóquei) — são o auge da competição, eclipsando torneios internacionais.

Para se ter uma ideia, o Super Bowl da NFL, por exemplo, atrai anualmente mais de 100 milhões de espectadores apenas nos EUA e gera cifras superiores a US$ 6 bilhões em receita publicitária e comercial. A NBA, por sua vez, é consumida globalmente como a elite do basquete, com contratos de transmissão que superam US$ 24 bilhões em ciclos de oito anos. Os Estados Unidos criaram, ao longo do século XX, ligas esportivas hegemônicas, que definem calendários, ditam regras e movimentam mercados com base no entretenimento, na audiência e no marketing — e não na lógica tradicional de competições entre nações.

A UEFA acusou publicamente o presidente da FIFA de desrespeitar o cronograma oficial para atender a “interesses políticos privados”. Embora, dias depois, a entidade tenha adotado um tom mais conciliador, classificando a relação com a FIFA como “forte e respeitosa”, executivos europeus avaliaram o episódio como um possível ponto de inflexão na governança do futebol mundial.

Geopolítica do Futebol: O Esporte como Instrumento de Poder e de Legitimação Internacional
Photo by Dexter Fernandes on Unsplash

O que está em jogo vai além de agendas esportivas. Trata-se de uma disputa por poder simbólico, influência institucional e controle sobre os fluxos de capital no ecossistema do futebol. A UEFA, que responde por 95 das 211 federações filiadas à FIFA, possui um calendário consolidado, contratos robustos de direitos de transmissão e os clubes mais ricos do mundo. Já a FIFA busca reposicionar sua centralidade, descentralizando o futebol de elite da Europa e levando-o para novas regiões — especialmente o Oriente Médio, a Ásia e as Américas.

Essa geopolítica do futebol se insere em um cenário mais amplo de disputas entre blocos. Se a UEFA representa a ordem tradicional do futebol mundial, a FIFA tenta se alinhar com potências emergentes, ampliando sua base de apoio e fortalecendo alianças estratégicas com governos autoritários dispostos a investir bilhões no esporte como forma de projeção internacional. O apoio de países como Arábia Saudita, Catar e Marrocos ao novo Mundial de Clubes não é apenas esportivo — é também diplomático, financeiro e geopolítico.

Além disso, a FIFA encontrou apoio em federações da América do Sul, África e Ásia, que enxergam no novo modelo uma possibilidade de maior visibilidade, inclusão e redistribuição dos recursos. A Conmebol, por exemplo, adotou postura entusiasta diante do novo torneio, vendo na disputa entre FIFA e UEFA uma janela de oportunidade para reposicionar o futebol sul-americano no palco global, explorando brechas políticas e aumentando seu peso negociador.

Nesse contexto, o futebol se torna cada vez mais um reflexo das transformações no sistema internacional: uma disputa por multipolaridade, pela construção de novas narrativas e pela reconfiguração das hierarquias não do campo de futebol, mas sim no campo geopolítico mundial. A tensão entre FIFA e UEFA é, portanto, um sintoma das mudanças mais amplas que atingem o mundo do esporte — e também da política mundial.

Sportswashing e a Geopolítica da Imagem

Se o futebol é, hoje, uma arena geopolítica, ele também é uma vitrine — e nenhum conceito descreve melhor esse fenômeno do que o de sportswashing. O termo, cada vez mais comum no vocabulário das Relações Internacionais, refere-se ao uso de eventos esportivos como ferramenta para limpar ou suavizar a imagem de Estados envolvidos em violações de direitos humanos, autoritarismo ou práticas antidemocráticas. Trata-se de um processo de lavagem simbólica, no qual megaeventos esportivos encobrem realidades repressivas por meio da exibição de modernidade, progresso e acolhimento internacional.

Entre os principais protagonistas desse fenômeno estão Arábia Saudita e Catar, que, com estratégias cuidadosamente articuladas de diplomacia esportiva, têm usado o futebol como principal instrumento de rebranding nacional. A Arábia Saudita, por exemplo, é apontada como o país que mais investe hoje em soft power via futebol: entre 2021 e 2024, foram mais de US$ 6,3 bilhões injetados em clubes, torneios e eventos internacionais. A criação da nova Saudi Pro League, que contratou nomes como Cristiano Ronaldo, Neymar e Benzema, faz parte de um projeto maior: a Visão 2030, que busca diversificar a economia saudita, atrair turismo e consolidar o país como um polo de influência regional.

O apogeu dessa estratégia foi a confirmação da Arábia Saudita como sede da Copa do Mundo de 2034. A candidatura, que não teve concorrência efetiva após a desistência da Austrália, foi alvo de críticas de organizações como Human Rights Watch e CIVICUS, que destacaram o desrespeito sistemático aos direitos das mulheres, a repressão à liberdade de expressão e o alto número de execuções no país — mais de 300 em 2024, incluindo crimes políticos e de opinião. Mesmo assim, a FIFA classificou o risco de violação de direitos humanos como “médio” e declarou que o torneio seria “uma oportunidade para promover mudanças positivas”.

O caso saudita segue a mesma lógica que levou o Catar a sediar a Copa de 2022. Durante anos, o emirado enfrentou denúncias de abusos contra trabalhadores migrantes, repressão à população LGBTQIA+ e censura à imprensa. Estima-se que mais de 6.500 trabalhadores migrantes tenham morrido entre 2010 e 2021 durante a preparação das obras do evento. Ainda assim, o torneio foi um sucesso midiático e diplomático: o Catar projetou uma imagem de país moderno, eficiente e acolhedor, mesmo que temporariamente. A Copa do Mundo foi cuidadosamente roteirizada como uma vitrine para o soft power qatari, alinhado à estratégia de se firmar como hub global de política, cultura e negócios.

O uso do futebol como instrumento de influência externa remete diretamente ao conceito de poder brando de Joseph Nye. Ao invés de coerção, regimes autocráticos passaram a conquistar — ou ao menos seduzir — a opinião pública internacional, utilizando o fascínio do esporte como ponte para atenuar críticas. Isso inclui patrocínios de clubes europeus por fundos soberanos do Golfo, como o Public Investment Fund (PIF), que hoje detém o controle de quatro clubes sauditas e financiou a compra do Newcastle United, na Inglaterra.

Contudo, o sportswashing não se limita ao mundo árabe. Rússia 2018 foi igualmente um exemplo de uso estratégico do futebol. Mesmo em meio a sanções internacionais pela anexação da Crimeia e acusações de repressão interna, Moscou investiu pesadamente na organização da Copa para apresentar ao mundo uma imagem de força, estabilidade e acolhimento. Como observou a pesquisadora Nandini Jaithalia, “o futebol funciona como o palco perfeito para regimes autocráticos encenarem versões editadas de si mesmos”.

O problema central está no conflito entre espetáculo e responsabilidade. Ao priorizar contratos bilionários, expansão de mercado e alianças políticas, a FIFA — bem como federações e clubes — frequentemente ignora padrões mínimos de direitos humanos, diversidade e democracia. A ausência de critérios robustos e verificáveis para a escolha de sedes e parceiros institucionais abre espaço para o uso instrumental do futebol por regimes autoritários.

Por isso, cresce o clamor por critérios éticos obrigatórios na escolha de sedes e patrocínios, exigindo compromissos reais com liberdade de imprensa, igualdade de gênero e proteção de minorias. Entidades da sociedade civil têm pressionado por mecanismos de responsabilização, como a exigência de auditorias independentes, transparência nos contratos e salvaguardas aos trabalhadores envolvidos nas obras e operações dos torneios.

Neste contexto, o futebol deixa de ser apenas um jogo e passa a ser também uma disputa de narrativas, onde a reputação se torna moeda diplomática, e o controle da imagem pública é um campo estratégico tão importante quanto a própria conquista de títulos.

A Conmebol entre Oportunidade e Submissão

No cenário de polarização crescente entre FIFA e UEFA, uma terceira força tem buscado se reposicionar: a Conmebol, confederação que representa as federações nacionais da América do Sul. Historicamente marcada por glórias esportivas — nove Copas do Mundo masculinas e diversas conquistas continentais — a Conmebol também é notória por sua fragilidade institucional, escândalos de corrupção e dependência econômica de forças externas. No entanto, a atual disputa por hegemonia no futebol internacional abre uma janela rara de protagonismo para a América do Sul. Resta saber: trata-se de uma oportunidade estratégica ou de uma submissão disfarçada?

A realização do Congresso da FIFA em Assunção (2025), sede da Conmebol, durante as comemorações do centenário de sua filiação à entidade máxima do futebol, foi sintomática. Enquanto a UEFA abandonava o evento em protesto à postura política de Infantino, a cúpula da Conmebol recebia com honrarias a visita do presidente da FIFA. O gesto, mais do que cerimonial, simbolizou um alinhamento político com o novo projeto da entidade: o Mundial de Clubes expandido, o fortalecimento da FIFA como organizadora de torneios de elite, e a descentralização do futebol para fora da Europa.

Esse apoio à FIFA pode ser interpretado sob duas óticas. Por um lado, a Conmebol enxerga uma chance de inserção no cenário geo-esportivo renovada. A presença de clubes sul-americanos em um torneio mundial de 32 equipes amplia a visibilidade da região, atrai patrocinadores e dá novo fôlego à ideia de universalizar o futebol de alto rendimento. A Copa Libertadores — principal torneio da Conmebol — passa a servir como porta de entrada para a vitrine do novo Mundial. Nesse sentido, a América do Sul se reintegra ao circuito simbólico e financeiro da elite do futebol.

Por outro lado, essa aproximação também revela a assimetria estrutural da posição sul-americana no sistema internacional do futebol. Com economias instáveis, clubes endividados e ligas nacionais cada vez mais enfraquecidas pela exportação precoce de talentos, a Conmebol atua frequentemente como satélite das agendas da FIFA. A adesão ao projeto de Infantino ocorre sem grandes contrapartidas políticas ou garantias de autonomia institucional. Em troca de visibilidade, cede-se protagonismo e capacidade de definição estratégica.

Futebol e Geopolítica
REUNIÓN CON EL PRESIDENTE DE CONMEBOL, ALEJANDRO DOMÍNGUEZ. QUITO, 12-10-2022” by http://www.presidencia.gob.ec/ is licensed under CC PDM 1.0

Esse dilema tem raízes profundas. A Conmebol sofreu abalos institucionais severos com o escândalo FIFAGate, revelado em 2015, que envolveu subornos, lavagem de dinheiro e contratos fraudulentos. Diversos ex-dirigentes foram presos ou banidos do futebol. Desde então, a entidade tem buscado reabilitação por meio de alinhamento político com a FIFA e adoção de reformas administrativas. Mas o custo dessa reaproximação parece ser a perda de uma postura crítica e autônoma frente à condução mundial do futebol.

Ao apoiar a expansão do Mundial de Clubes e iniciativas como o possível retorno da Copa Intercontinental, agora sob chancela direta da FIFA, a Conmebol aposta em uma via de sobrevivência institucional por meio da lealdade política. No entanto, isso pode significar a abdicação de um projeto verdadeiramente regional, baseado na valorização das ligas locais, na proteção de seus jogadores e clubes, e na busca por formas sustentáveis de desenvolvimento competitivo.

Em termos de relações internacionais, a postura da Conmebol ilustra bem a posição de atores regionais diante de disputas entre potências centrais. Assim como países periféricos frequentemente oscilam entre alinhamento estratégico e dependência funcional, a confederação sul-americana transita entre a tentativa de ampliar sua projeção internacional e a aceitação tácita de sua condição subalterna. O futebol, aqui, espelha a dinâmica do sistema internacional: oportunidades emergem, mas raramente vêm sem custos políticos ou institucionais.

Por fim, é necessário observar o papel dos Estados nacionais. Apesar de seu enorme capital simbólico, a Conmebol é uma organização privada, cujas decisões nem sempre refletem os interesses coletivos da região. A ausência de uma política pública coordenada para o futebol sul-americano, associada à falta de mecanismos estatais de regulação e fomento, contribui para que a confederação opere com baixa prestação de contas — inclusive na sua articulação internacional.

A América do Sul é, sem dúvida, parte fundamental da história e da identidade do futebol mundial. Mas se quiser permanecer relevante como ator político e não apenas como fornecedora de talentos e paixão, será preciso repensar seu lugar nesse novo tabuleiro internacional. A Conmebol está diante de uma encruzilhada: ou aproveita a abertura atual para recuperar autonomia e visão estratégica, ou seguirá sendo coadjuvante num jogo que cada vez mais se joga longe dos seus estádios.

Futebol, Poder e os Riscos da Ilusão Global

O futebol sempre foi mais do que um jogo. Mas, nas últimas décadas, deixou de ser apenas uma paixão popular para se transformar em instrumento de diplomacia, estratégia de poder e mecanismo sofisticado de construção de imagem internacional. A consolidação de eventos como o novo Mundial de Clubes, os investimentos bilionários de Estados autoritários em clubes e atletas, e a disputa política entre entidades como FIFA e UEFA revelam um fenômeno maior: a transformação do futebol em campo privilegiado das Relações Internacionais contemporâneas.

A FIFA, ao expandir sua atuação para além da Europa e articular alianças com governos do Oriente Médio e da América do Sul, busca redefinir a geopolítica do esporte. Em contrapartida, a UEFA reage defendendo seus ativos históricos, como a Champions League, em uma disputa que não é apenas esportiva, mas institucional, econômica e ideológica. No meio desse embate, a Conmebol tenta se reposicionar — mas o faz oscilando entre protagonismo oportunista e dependência estrutural.

O uso do futebol como ferramenta de sportswashing é um dos fenômenos mais preocupantes desse cenário. Quando regimes autoritários como Catar, Arábia Saudita ou Rússia utilizam o espetáculo esportivo para desviar o foco de abusos sistemáticos de direitos humanos, o que está em jogo é mais do que reputação: é a tentativa de reescrever narrativas globais e suavizar críticas legítimas por meio do fascínio cultural que o futebol exerce. Ao permitir isso sem critérios robustos, a FIFA contribui para normalizar uma lógica na qual a diplomacia esportiva serve como cortina de fumaça para a violação de liberdades fundamentais.

Por outro lado, o futebol continua sendo uma plataforma de alcance extraordinário. Com bilhões de espectadores e impacto transgeracional, é capaz de mobilizar sociedades, projetar identidades nacionais e conectar culturas. A questão central é: a serviço de quem está sendo mobilizado esse potencial? Quando a lógica do espetáculo se sobrepõe à justiça social, à transparência e aos valores democráticos, o futebol corre o risco de se tornar não um espelho das virtudes humanas, mas um instrumento de legitimação de desigualdades, autoritarismos e manipulação midiática.

Neste contexto, é urgente repensar o papel das instituições esportivas, das confederações regionais, dos Estados e da sociedade civil. É necessário exigir critérios éticos vinculantes para a escolha de sedes, a concessão de direitos de transmissão, os patrocínios e a governança do esporte. Organizações internacionais, jornalistas, torcedores e atletas têm responsabilidade na construção de um modelo que valorize o futebol como bem público e não como ferramenta de poder a qualquer custo.

O futebol continuará sendo um campo de disputa. A diferença está em saber se ele será também um campo de resistência — capaz de inspirar valores de justiça, inclusão, respeito e democracia — ou se será, como alertou George Orwell, apenas uma forma de “guerra sem tiros”, usada para reforçar as mesmas estruturas de dominação que ele, outrora, ajudou a questionar.

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Analista de Relações Internacionais at ESRI | Website |  + posts

Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br

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