O uso das sanções econômicas consolidou-se, nas últimas décadas, como uma das principais ferramentas de coerção empregadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia. A exclusão do Irã do sistema SWIFT, em 2012, já havia sinalizado como mecanismos financeiros podem ser instrumentalizados para atingir objetivos políticos. Entretanto, foi a partir de 2014, com a anexação da Crimeia pela Rússia, e sobretudo após a eclosão da guerra na Ucrânia em 2022, que se intensificou a percepção de vulnerabilidade dos países dependentes do dólar e das infraestruturas financeiras controladas pelo Ocidente. O bloqueio de bancos russos, a restrição de acesso a capitais e o congelamento de reservas internacionais revelaram o caráter geopolítico do sistema monetário e financeiro.
Sumário
Esse contexto abriu espaço para a busca de alternativas que reduzissem a exposição às sanções e à hegemonia do dólar. A Rússia e a China, já engajadas em iniciativas próprias, como o MIR (sistema russo de cartões) e o CIPS (Cross-Border Interbank Payment System, lançado por Pequim em 2015), passaram a articular propostas em âmbito multilateral. Nesse cenário, o grupo dos BRICS intensificou esforços para criar um sistema de compensação independente, capaz de fortalecer a soberania financeira de seus membros e de outros países interessados em aderir ao arranjo.
A proposta do BRICS Pay insere-se, assim, em um movimento mais amplo de contestação ao papel central do dólar e à arquitetura financeira estabelecida desde Bretton Woods. Trata-se de um projeto que combina inovação tecnológica, com uso de blockchain, moedas digitais e inteligência artificial, com uma dimensão política explícita: ampliar a autonomia do Sul em relação às instituições dominadas por Washington e Bruxelas. Mais do que uma simples plataforma de pagamentos, o BRICS Pay representa uma tentativa de estruturar um regime internacional alternativo de liquidação financeira, capaz de articular moedas nacionais, sistemas de compensação próprios e até a perspectiva de uma unidade monetária comum no futuro (BRICS Pay Consortium, 2024).
Para além do componente econômico, o BRICS Pay tem implicações para a ordem internacional contemporânea. A sua criação deve ser compreendida como parte do processo de multipolarização das finanças e da economia, em que novos centros de poder buscam limitar a vulnerabilidade diante da coerção exercida pelas potências centrais. Como observam analistas, a existência de alternativas viáveis ao dólar pode redefinir padrões de comércio, investimento e cooperação entre países emergentes, afetando diretamente a capacidade dos Estados Unidos de impor sanções de forma unilateral.
Este artigo parte da hipótese de que o BRICS Pay não é apenas uma resposta técnica às sanções, mas um instrumento estratégico de transformação da economia política internacional. Ao investigar sua gênese e funcionamento, pretende-se compreender de que forma ele se conecta a outras iniciativas dos BRICS, como o Novo Banco de Desenvolvimento e o Arranjo Contingente de Reservas, e quais são suas potencialidades e limitações. Nesse sentido, busca-se analisar como a Rússia, pressionada pelas sanções, e a China, interessada em expandir o uso do yuan, impulsionaram o projeto; e como Brasil, Índia e África do Sul se posicionam nesse processo, equilibrando pragmatismo econômico e engajamento político em favor da cooperação Sul-Sul.
Ao longo do trabalho, argumenta-se que o BRICS Pay deve ser interpretado como um experimento de governança financeira que, se bem-sucedido, pode abrir caminho para um redesenho das instituições monetárias, ampliando a margem de manobra dos países emergentes. Por outro lado, será discutido em que medida esse projeto pode enfrentar obstáculos estruturais, como a fragmentação regulatória, os riscos de segurança cibernética e as pressões exercidas pelas economias centrais.

O Sistema Financeiro Internacional e o Poder das Sanções
O Sistema Financeiro Internacional (SFI), tal como se consolidou após Bretton Woods, sempre esteve vinculado à posição central dos Estados Unidos na economia mundial. A adoção do dólar como moeda de referência para o comércio e para as reservas internacionais conferiu a Washington uma vantagem estrutural: a capacidade de emitir a principal unidade de liquidação e de exercer influência direta sobre fluxos financeiros transnacionais.
Com o fim da conversibilidade do dólar em ouro, em 1971, o sistema passou a funcionar em bases fiduciárias, sustentado pela confiança no poder econômico, militar e político dos Estados Unidos. Nesse arranjo, a criação da Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT), em 1973, representou um salto tecnológico. Ao padronizar mensagens e ordens de pagamento entre instituições financeiras, o SWIFT se converteu no principal mecanismo de liquidação internacional, conectando atualmente mais de 11.000 bancos em mais de 150 países (SWIFT, 2015).
Apesar de operar formalmente sob legislação belga, o SWIFT tornou-se um instrumento de poder político do Ocidente. Isso ficou evidente em episódios de sanções multilaterais contra países como o Irã, em 2012, e, posteriormente, contra a Rússia, em 2022. Nesses casos, bancos foram desconectados do sistema, impedindo transações financeiras básicas e restringindo exportações estratégicas, como petróleo e gás. A exclusão de instituições russas do SWIFT, aliada ao congelamento de reservas internacionais em dólares e euros, evidenciou como o controle das infraestruturas de pagamento se transformou em uma arma de coerção econômica.
A utilização do SWIFT como ferramenta de sanções se relaciona diretamente à hegemonia do dólar. De 2014 a 2018, cerca de 40% a 45% de todas as transações internacionais foram liquidadas em dólares, enquanto o euro respondia por aproximadamente 27% a 36%. O restante estava distribuído em mais de vinte moedas diferentes, com participação reduzida do renminbi chinês, do iene japonês e da libra esterlina (SWIFT, 2020). Essa concentração permitiu que medidas de bloqueio financeiro tivessem impacto imediato e profundo sobre países considerados adversários dos Estados Unidos (Prasad, 2015).
A lógica das sanções demonstra como o sistema monetário internacional funciona não apenas como espaço de cooperação, mas também como campo de disputa de poder. Os EUA conseguem impor custos diretos aos países sancionados, retirando-os do acesso a mercados, reservas e instrumentos de crédito. A vulnerabilidade de economias periféricas e semiperiféricas frente a essas medidas fortalece a percepção de que a dependência do dólar e do SWIFT é um fator de risco estratégico (De Carvalho, 2024).
Diante disso, países como Rússia e China passaram a investir em alternativas institucionais. Moscou ampliou o uso do cartão MIR e iniciou parcerias com bancos estrangeiros para garantir compensações fora do SWIFT. Pequim, por sua vez, consolidou o Cross-Border Interbank Payment System (CIPS), criado em 2015, para viabilizar transações em renminbi e atrair parceiros interessados em reduzir sua exposição ao dólar. Esses esforços individuais se somaram, nos últimos anos, à construção de uma agenda coletiva no âmbito dos BRICS, onde a ideia do BRICS Pay emerge como tentativa de criar um arranjo financeiro que minimize o poder coercitivo das potências centrais.
Regimes Internacionais e o Espaço para Alternativas
A análise do Sistema Financeiro Internacional à luz da teoria dos regimes internacionais permite compreender como normas, regras e instituições moldam comportamentos dos Estados, ao mesmo tempo em que refletem a distribuição de poder entre eles. Para Krasner (1983), regimes são “conjuntos de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão em torno dos quais convergem as expectativas dos atores”. No campo financeiro, o regime consolidado após Bretton Woods e reforçado pelo SWIFT estruturou uma ordem monetária marcada pela centralidade do dólar, pelo papel de organismos como o FMI e pelo predomínio de instituições financeiras ocidentais.
Os regimes podem funcionar tanto como mecanismos de cooperação quanto como instrumentos de manutenção de hierarquia (Keohane, 1984). No caso do regime monetário, a hegemonia do dólar concede aos Estados Unidos não apenas benefícios econômicos diretos, como a possibilidade de financiar déficits em sua própria moeda, mas também vantagens políticas, ao transformar sua infraestrutura em ferramenta de coerção (Helleiner, 2008). Essa característica ficou evidente com o uso das sanções financeiras, que mostraram como a interdependência, ao invés de apenas reduzir custos de transação, pode aumentar a vulnerabilidade dos atores dependentes.
O dilema para países sancionados ou em posição periférica no sistema é claro: por um lado, necessitam acessar os canais tradicionais de compensação para manter fluxos de comércio e investimento; por outro, essa dependência os expõe à possibilidade de exclusão. Esse cenário cria incentivos para a construção de alternativas institucionais, capazes de reduzir a assimetria e garantir maior margem de manobra em termos de soberania financeira (Prasad, 2015).
É nesse ponto que se inserem as iniciativas de desdolarização e de criação de sistemas de pagamento alternativos. O lançamento do CIPS pela China em 2015 e o fortalecimento do cartão MIR pela Rússia representam respostas unilaterais a esse dilema. Contudo, tais esforços encontram limites quando pensados de maneira isolada. A adesão de outros países tende a ser restrita, seja por receio de retaliações, seja pela inércia institucional em torno do dólar como moeda dominante (McDowell, 2023).
A criação de uma plataforma multilateral como o BRICS Pay busca justamente superar essas barreiras. Ao articular economias de grande peso regional, o arranjo se coloca como um mecanismo que dá vazão às crescentes necessidades de promover o comércio e a cooperação, que se apoia no discurso de construção de uma ordem mais multipolar. Esse movimento expressa a tentativa de institucionalizar alternativas ao regime vigente, combinando inovação tecnológica (blockchain, moedas digitais de bancos centrais) com um projeto político de contestação à hegemonia ocidental.
Assim, a leitura do BRICS Pay sob a ótica dos regimes internacionais evidencia que sua importância não reside apenas na eficiência técnica do sistema de pagamentos, mas na possibilidade de inaugurar um novo eixo normativo. Nesse sentido, o BRICS Pay se apresenta como instrumento de resistência e reconfiguração institucional, inserido no debate mais amplo sobre multipolaridade e soberania no campo financeiro.
O Papel do BRICS na Reconfiguração Financeira
Desde sua criação em 2009, o BRICS tem se apresentado como um espaço de articulação política e econômica que busca dar voz às economias emergentes frente à predominância das instituições ocidentais. Embora inicialmente marcado por uma agenda de coordenação limitada, o grupo evoluiu para propor instrumentos concretos de governança, com destaque para o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), criado em 2014, e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA), concebido como um fundo de liquidez para situações de crise cambial. Ambos os mecanismos sinalizaram a disposição do bloco em construir alternativas ao FMI e ao Banco Mundial, ainda que com alcance restrito.
A conjuntura de sanções econômicas contra a Rússia e a intensificação da disputa sino-americana aceleraram o movimento de cooperação financeira. A percepção de vulnerabilidade frente ao dólar e ao SWIFT estimulou a busca por mecanismos mais autônomos de pagamento e liquidação. Nesse sentido, o BRICS Pay surge como um passo qualitativo na agenda do bloco: não se trata apenas de prover financiamento ao desenvolvimento, mas de criar infraestruturas próprias para a circulação monetária.
O peso coletivo do BRICS é um fator que confere legitimidade à iniciativa. O grupo reúne mais de 40% da população mundial e aproximadamente 25% do PIB mundial em paridade de poder de compra (Krause, 2024). Além disso, a expansão recente do bloco, com a entrada de novos membros estratégicos, reforça a ideia de que se trata de um fórum com potencial para reconfigurar normas e práticas financeiras. Ainda que os interesses nacionais sejam distintos, o Brasil, por exemplo, adota uma postura mais pragmática e menos confrontacional em relação ao Ocidente, enquanto Rússia e China assumem posições mais assertivas, a convergência em torno da busca por maior soberania financeira garante coesão mínima ao projeto.
Do ponto de vista institucional, o BRICS apresenta-se como um laboratório de experimentação em governança. Ao contrário das organizações internacionais tradicionais, o grupo não possui um secretariado permanente robusto nem estruturas burocráticas consolidadas, o que lhe confere flexibilidade. Essa característica permite testar soluções inovadoras, como a integração de moedas digitais de bancos centrais (CBDCs) e o uso de blockchain em larga escala, que dificilmente seriam implementadas de forma célere em organismos multilaterais tradicionais (BRICS Pay Consortium, 2024).
O BRICS Pay deve ser entendido não como um mecanismo paralelo, como frequentemente defendido em análises norte-americanas, mas como parte de uma nova trajetória institucional que procura criar oportunidades reais de negócios, reduzir o peso das sanções e diminuir a capacidade dos EUA de definir unilateralmente a agenda financeira internacional. Ao contrário de um sistema alternativo ou antagônico, o BRICS Pay propõe-se como instrumento de transformação da ordem, abrindo espaço para que países emergentes promovam seus interesses de forma mais autônoma.
Se o Novo Banco de Desenvolvimento e o Arranjo Contingente de Reservas representaram passos iniciais no financiamento e na liquidez, o BRICS Pay projeta o bloco no núcleo da arquitetura financeira: os mecanismos de liquidação e pagamento. Não se trata apenas de escapar ao dólar, mas de introduzir uma dinâmica descentralizada, que permita a inclusão de novos atores no comércio internacional e legitime o uso de moedas locais como forma de fortalecer cadeias produtivas regionais.
O dólar seguirá desempenhando papel central no comércio internacional, mas o surgimento de arranjos descentralizados e de instrumentos de liquidação mais flexíveis inaugura uma etapa distinta: a de um sistema em que a centralidade americana convive com novas alternativas, tornando o espaço financeiro internacional mais competitivo e menos vulnerável ao uso das finanças como instrumento de coerção.
BRICS Pay: Estrutura, Funcionamento e Objetivos
O BRICS Pay é apresentado como uma plataforma de pagamentos baseada em blockchain, concebida para reduzir a dependência do dólar e dos sistemas dominados pelo Ocidente. Diferentemente de mecanismos tradicionais, a proposta do BRICS Pay busca integrar moedas nacionais dos países-membros, permitindo a liquidação direta das transações, sem necessidade de intermediários ocidentais.
Estrutura Tecnológica
O sistema foi idealizado para operar como uma rede descentralizada, capaz de realizar compensações de forma rápida e segura, utilizando contratos inteligentes e tecnologias de criptografia avançada. A infraestrutura prevê a utilização de moedas digitais de bancos centrais, como o rublo digital e o yuan digital, além da possibilidade de integração futura com moedas locais tokenizadas. Essa arquitetura visa reduzir custos de transação, garantir maior resiliência cibernética e ampliar a interoperabilidade entre diferentes sistemas nacionais de pagamento.
Arranjos de Governança
A governança do BRICS Pay é organizada no formato de um consórcio, denominado BRICS Pay Consortium, estabelecido em 2024. Segundo o acordo constitutivo, trata-se de uma rede de instituições financeiras e tecnológicas, sem personalidade jurídica própria, mas que atua de forma coordenada em áreas como: criação de gateways de pagamento, desenvolvimento de uma unidade de liquidação BRICS+ e construção de um sistema descentralizado de mensagens interbancárias (BRICS Pay Consortium, 2024). A direção estratégica fica a cargo do Conselho do Consórcio, composto por representantes de cada participante, com decisões colegiadas.
Objetivos Estratégicos
Os objetivos declarados do BRICS Pay vão além da eficiência técnica. Em primeiro lugar, pretende-se facilitar o comércio intra-BRICS, reduzindo custos cambiais e barreiras de conversão monetária (Freidin, 2024). Em segundo lugar, busca-se ampliar a autonomia financeira, oferecendo alternativas em caso de sanções ou restrições impostas por instituições ocidentais (De Carvalho, 2024). Em terceiro lugar, o sistema visa a promoção da inclusão financeira, com a possibilidade de integrar pequenas e médias empresas e facilitar o acesso de consumidores por meio de carteiras digitais e pagamentos via QR code (Valamontes, 2024).
Adicionalmente, o BRICS Pay é concebido como um embrião de uma possível unidade monetária BRICS+, que poderia assumir a forma de uma moeda de liquidação ou mesmo de uma moeda digital comum, ancorada em reservas de ouro e commodities estratégicas. Embora essa possibilidade ainda esteja em fase de debate, sua simples menção evidencia o caráter revolucionário que o projeto pretende assumir em termos de contestação à ordem monetária vigente (Krause, 2024).
Perspectivas de Expansão
Outro aspecto relevante é que o BRICS Pay foi estruturado para ser aberto a novos membros, permitindo a adesão de países interessados nas soluções apresentadas. Nesse sentido, conecta-se ao movimento de expansão do BRICS e ao fortalecimento de coalizões no Sul, posicionando-se como mecanismo concreto para Estados que enfrentam sanções ou desejam diversificar suas opções de liquidação financeira (Batista, 2024).
Em síntese, o BRICS Pay combina inovação tecnológica, arranjos institucionais flexíveis e objetivos estratégicos de autonomia. Ao mesmo tempo, enfrenta o desafio de provar sua viabilidade prática diante das assimetrias internas entre os membros e das pressões externas exercidas pelas potências centrais.
Oportunidades e Desafios do BRICS Pay
A criação do BRICS Pay oferece um conjunto de oportunidades que podem redefinir a posição dos países emergentes na economia internacional. Ao mesmo tempo, enfrenta obstáculos técnicos, institucionais e políticos que colocam em dúvida sua capacidade de consolidar-se como alternativa efetiva ao sistema dominado pelo dólar e pelo SWIFT.
Oportunidades
O primeiro aspecto a ser destacado é o potencial de fortalecimento da soberania financeira. Ao permitir a liquidação direta em moedas nacionais, o BRICS Pay reduz a exposição às flutuações do dólar e aos riscos de sanções impostas por Estados Unidos e União Europeia (De Carvalho, 2024). Essa característica é particularmente estratégica para países como a Rússia, submetida a medidas coercitivas, e para economias que buscam diversificar seus mecanismos de pagamento.
Em segundo lugar, o sistema pode impulsionar o comércio intra-BRICS, facilitando transações e reduzindo custos cambiais. Estima-se que a eliminação de intermediários financeiros ocidentais, aliada ao uso de blockchain e de moedas digitais, aumente a eficiência e a competitividade das trocas entre os países do bloco (Krause, 2024). Essa dinâmica pode contribuir para o fortalecimento de cadeias produtivas regionais e para a consolidação de um espaço econômico mais integrado.
Outro ponto relevante é a promoção da multipolaridade financeira. Ao estruturar um mecanismo alternativo, o BRICS Pay sinaliza para outros países do Sul a possibilidade de reduzir a dependência de regimes dominados pelo Ocidente. Tal iniciativa pode estimular adesões futuras, criando um efeito gravitacional em torno do bloco (Helmy, 2025). Esse movimento também reforça a legitimidade do BRICS como ator capaz de propor arranjos institucionais inovadores.
Por fim, há a dimensão da inclusão financeira. A possibilidade de utilização de carteiras digitais e QR codes, anunciada no desenho do sistema, pode ampliar o acesso de pequenas e médias empresas e consumidores aos fluxos internacionais, reduzindo barreiras e democratizando o uso de instrumentos de liquidação (Freidin, 2024).
Desafios
Apesar das oportunidades, o BRICS Pay enfrenta limitações significativas. A primeira delas é de ordem tecnológica e operacional. A escalabilidade de sistemas baseados em blockchain ainda é restrita, e a integração com as infraestruturas nacionais de pagamento requer investimentos massivos em segurança cibernética e interoperabilidade (Krause, 2024). A ameaça de ataques e falhas técnicas constitui risco permanente para a credibilidade do arranjo.
Outro desafio diz respeito à heterogeneidade regulatória. Cada membro do BRICS possui regras específicas para transações financeiras, moedas digitais e circulação de capitais. A ausência de um marco regulatório comum pode gerar entraves à plena operacionalização do sistema (Helmy, 2025). Além disso, a possibilidade de incluir novos países aumenta a complexidade de harmonização normativa.
A dimensão política também não pode ser subestimada. A existência de interesses divergentes entre os próprios membros, como o perfil mais pragmático do Brasil frente ao confronto direto da Rússia e da China com o Ocidente, pode limitar a coesão interna (De Carvalho, 2024). Da mesma forma, resistências externas são previsíveis: os Estados Unidos já sinalizaram a possibilidade de impor tarifas e retaliações contra países que aderirem ao BRICS Pay (Helmy, 2025). Essa pressão pode desencorajar parceiros comerciais e restringir o alcance do projeto.
Por fim, há o risco de que o BRICS Pay se torne um mecanismo paralelo sem gerar novas oportunidades de negócios, funcionando apenas como alternativa limitada em contextos de crise. A confiança internacional no sistema dependerá de sua capacidade de garantir liquidez, estabilidade e previsibilidade, características que ainda são amplamente associadas ao dólar e ao euro.
Portanto, o BRICS Pay se apresenta como uma iniciativa ambiciosa, capaz de gerar impactos relevantes na dinâmica das finanças internacionais. Suas oportunidades residem na autonomia financeira, no fortalecimento do comércio intra-BRICS e na construção de uma ordem multipolar. Contudo, enfrenta desafios estruturais que podem comprometer sua efetividade, desde barreiras tecnológicas e regulatórias até pressões políticas externas. O futuro do sistema dependerá da capacidade do bloco de transformar vulnerabilidade em inovação institucional e de garantir a adesão de parceiros além de seus membros fundadores.
Conclusão
A análise do BRICS Pay permite compreender que sua criação não pode ser reduzida a um mero exercício de inovação tecnológica no campo dos pagamentos internacionais. O sistema emerge como resultado direto da tentativa de países como a Rússia de escapar aos efeitos de sanções financeiras impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia, que utilizaram o SWIFT e o dólar como instrumentos de coerção estratégica. Nesse sentido, o BRICS Pay é expressão clara da relação entre finanças e poder nas Relações Internacionais.
O projeto insere-se em um movimento mais amplo de contestação à hegemonia monetária do Ocidente, ao lado de iniciativas como o CIPS chinês e a expansão do uso de moedas digitais nacionais. Diferentemente de experiências unilaterais, contudo, o BRICS Pay articula-se em uma plataforma multilateral, com potencial de fortalecer a cooperação Sul-Sul e ampliar a soberania financeira dos Estados-membros (Helmy, 2025). Ao propor liquidações em moedas locais, baseadas em blockchain e interoperáveis com sistemas nacionais, o arranjo sinaliza a possibilidade de uma multipolaridade financeira em gestação.
Ainda assim, sua consolidação enfrenta limites significativos. A predominância do dólar como moeda de reserva e ativo seguro, a fragmentação regulatória entre os membros, os desafios de segurança cibernética e a resistência política de potências centrais configuram obstáculos de difícil superação no curto prazo. É plausível, portanto, que o BRICS Pay opere inicialmente como mecanismo complementar, com maior utilidade para países sancionados, em vez de representar uma substituição imediata ao sistema vigente.
Do ponto de vista acadêmico, o BRICS Pay deve ser interpretado como um experimento institucional no campo da economia política internacional. Mesmo que não alcance de imediato a escala necessária para alterar o equilíbrio monetário, sua existência já tem efeitos políticos relevantes: questiona a naturalização da centralidade do dólar, pressiona por reformas na governança financeira e reforça a percepção de que o SFI é um campo de disputa e não apenas de cooperação.
Em síntese, o BRICS Pay pode ser entendido como um projeto revolucionário em intenção, mas ainda incipiente em sua execução. Se prosperar, terá condições de inaugurar uma nova etapa da ordem financeira, marcada por múltiplos polos de liquidação e maior margem de autonomia para países em desenvolvimento. Se fracassar, permanecerá como instrumento limitado de resistência, mas ainda assim relevante enquanto símbolo político da contestação à hegemonia do dólar.
Referências
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STUENKEL, Oliver. BRICS and the Future of Global Order. Lanham: Lexington Books, 2015.
SWIFT. SWIFT in Figures – Annual Report 2015. Bruxelas: SWIFT, 2015. Disponível em: https://www.swift.com. Acesso em: 18 set. 2025.
VALAMONTES, Javier. Como o BRICS Pay quer derrubar o dólar. El País Brasil, 2024. Disponível em: https://brasil.elpais.com. Acesso em: 18 set. 2025.
Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br