O aborto é uma questão polêmica e multifacetada, que envolve debates éticos, morais, religiosos e legais em diversas sociedades ao redor do mundo. No centro dessa discussão estão os direitos reprodutivos das mulheres, que tocam diretamente em temas como autonomia corporal, saúde pública e igualdade de gênero. No Brasil, a criminalização do aborto tem sido uma pauta controversa, que gera consequências graves para a saúde das mulheres, além de perpetuar uma visão conservadora sobre o papel feminino na sociedade. Em contrapartida, países como a Colômbia e o Uruguai adotaram posturas legislativas mais progressistas, descriminalizando ou legalizando o procedimento, o que tem impactado positivamente na vida das mulheres nesses países.
Neste trabalho, a escolha de analisar o Brasil, a Colômbia e o Uruguai permite uma comparação interessante de como o contexto legislativo pode influenciar diretamente a forma como o aborto é tratado e, mais amplamente, como a imagem da mulher é construída nessas sociedades. O Brasil, ainda ancorado em uma visão tradicionalista e patriarcal, trata o aborto como um crime, enquanto o Uruguai legalizou a prática em 2012 e a Colômbia descriminalizou o procedimento em 2022. A análise comparativa dos três países permitirá observar como esses diferentes cenários impactam as mulheres.
A pesquisa utilizará a metodologia de política comparada, comumente aplicada nas ciências sociais, para analisar as diferenças e semelhanças entre os sistemas políticos do Brasil, Colômbia e Uruguai, focando na legislação sobre o aborto e seu impacto na construção da imagem da mulher, saúde pública e direitos reprodutivos. A variável dependente será o acesso das mulheres aos seus direitos reprodutivos, enquanto a criminalização, descriminalização ou legalização do aborto será a variável independente, refletindo as estruturas de poder e patriarcado de cada contexto. Para enriquecer a análise, serão considerados dados de mortalidade materna e bem-estar social.
Além disso, o estudo se baseará em teorias feministas, especialmente as de Judith Butler e Cynthia Enloe, para entender o papel do gênero e do poder nas relações internacionais, questionando as estruturas patriarcais nas legislações e práticas sociais. A partir dessa perspectiva e das contribuições da ex-Ministra Rosa Weber, a pesquisa buscará compreender como o patriarcado influencia as políticas de aborto.
No campo das Relações Internacionais, o aborto representa uma questão transnacional que articula direitos humanos, saúde pública e o papel das mulheres nas políticas globais, refletindo como as dinâmicas de poder e igualdade de gênero impactam diferentes sociedades. Além disso, no ambito dos direitos humanos, o Brasil é signatário de acordos internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e resoluções da Assembleia Geral da ONU, que incluem compromissos para facilitar o acesso à saúde materna, incluindo o aborto seguro, o que reforça a relevância do tema no cenário global.
AS DINÂMICAS DO PODER E AS TEORIAS DO FEMINISMO
As dinâmicas de poder nas relações internacionais são complexas e frequentemente disfarçadas por conceitos que parecem simples, como feminilidade e masculinidade, mas que na verdade são estruturas sociais com impactos diretos nas relações de poder. O gênero, uma construção social ainda mais ampla, é fundamental na definição de quem detém e exerce o poder. A aparente negligência desses conceitos não é um descuido, mas sim um reflexo e reforço da ordem patriarcal global, que mantém a predominância masculina em posições de autoridade e decisão.
Para Foucault (1975), gênero e sexualidade estão profundamente vinculados às dinâmicas de poder que moldam as relações sociais e políticas ao longo da história. Embora ele não tenha tratado diretamente das questões de gênero, sua análise sobre os corpos dóceis e moldáveis, apresentada em “Vigiar e Punir”, oferece uma chave para entender como se manifesta o controle dos corpos femininos. Esses corpos são disciplinados e normatizados de acordo com as expectativas patriarcais, que visam manter a submissão e reforçar essas estruturas que limitam a autonomia e a liberdade das mulheres.
As dinâmicas de poder resultam em uma predominância masculina em cargos de liderança, como chefes de estado e diplomatas, enquanto as contribuições das mulheres são frequentemente relegadas a papéis indiretos, não remunerados e desvalorizados, como a execução de políticas em níveis mais baixos ou o apoio a maridos em posições de poder. Essa desigualdade não se limita à falta de equidade, mas fundamenta as próprias bases das relações internacionais. Questionar essas normas de gênero é essencial para compreender a totalidade das forças em jogo nas relações internacionais (ENLOE, 2000).
O feminismo crítico, derivado da teoria crítica, busca revelar as estruturas de poder que silenciam as experiências das mulheres nas relações internacionais. Enloe (2000), em sua obra “Bananas, Beaches and Bases” expõe as normas patriarcais nas relações internacionais, questionando a ausência das mulheres ao longo da história e, assim, possibilitando uma reavaliação das políticas globais e aprofundamento para a análise das práticas internacionais.
Perguntar “Onde estão as mulheres?” é motivado pela determinação de descobrir como o mundo realmente funciona. O desejo de revelar as ideias, relações e políticas subjacentes à (geralmente desigual) dinâmica de gênero impulsiona essa investigação feminista. (ENLOE, 2000)
O patriarcado é uma invenção antiga, conservadora que para se manter relevante e atual, ele vai se adaptando. Ou seja, para continuar existindo, ele busca formas de preservar o controle. Uma dessas adaptações envolve a inclusão de mulheres em novos espaços, mas, como Enloe (2000) observa, essas mulheres frequentemente permanecem em cargos inferiores ou em funções “feminizadas”, enquanto, os cargos “masculinos” continuam dominando o poder.
Realizar uma investigação de gênero impulsionada por uma curiosidade feminista exige perguntar não apenas sobre os significados da masculinidade e da feminilidade, mas também sobre como esses significados determinam onde as mulheres estão e o que elas pensam sobre estar ali. Conduzir uma análise de gênero feminista requer investigar o poder: que formas o poder assume? Quem o exerce? Como algumas formas de poder de gênero são camufladas para que nem pareçam poder? (ENLOE, 2000)
Judith Butler (2024) explora como o patriarcado desmoraliza o feminismo, transformando-o no “inimigo da nação”. Essa estratégia desvia a atenção de problemas reais, como fome, desigualdade, insegurança e crises na saúde pública. Ao culpar feministas, pessoas LGBTQIA+, negros e outras minorias, o patriarcado cria uma cortina de fumaça que obscurece as responsabilidades do Estado.
Assim, as pessoas são levadas a buscar soluções superficiais, influenciadas por uma narrativa patriarcal, sem questionar as verdadeiras causas das injustiças sociais. A moralidade distorcida do patriarcado marginaliza certas vidas, especialmente as de mulheres, criando uma ironia: enquanto trata algumas vidas como descartáveis, reage com moralismo quando uma mulher busca o direito ao aborto, mesmo que muitos defensores dessa moralidade apoiem práticas como a pena de morte.
Além disso, Butler observa que o patriarcado é mais um ideal romantizado do que uma realidade, sustentado por uma visão nostálgica que ignora os sofrimentos históricos e os avanços sociais. Logo, o gênero e o feminismo são vistos como os perpetuadores dos problemas contemporâneos, devido à deturpação do conceito de feminismo, que o transforma em um alvo conveniente para frustrações sociais (BUTLER, 2024).
Ademais, Butler (2024), em seus escritos, aborda como os membros do movimento antigênero também costumam ser anti-intelectuais, ou seja, se opõem ao conhecimento acadêmico. Isso devido a que em debates sobre gênero, esses grupos normalmente não apresentam embasamento sólido, pois não estudam ou leem textos acadêmicos, em vez disso, leem a Bíblia ou ouvem o que outras pessoas dizem sobre feminismo e gênero, sem de fato entenderem o significado desses termos, isso faz com que muitas vezes esses “debates” não sejam realmente debates, já que não trazem informações novas ou um pensamento crítico, não havendo troca de conhecimentos embasados (BUTLER, 2024).
Seu anti-intelectualismo, sua desconfiança em relação à academia, é ao mesmo tempo uma recusa a participar do debate público. O que repudiam como procedimento “acadêmico” é, na realidade, algo necessário para as deliberações públicas informadas nas democracias. O debate público informado torna-se impossível quando algumas das partes se recusam a ler o material em disputa. A leitura não é apenas um passatempo ou um luxo, mas uma precondição da vida democrática, uma das práticas que mantêm o debate e a discordância embasados, focados e produtivos. (BUTLER, 2024)
Outrossim, o conceito de feminismo tem sido distorcido, levando muitas mulheres liberais a rejeitarem o movimento, apesar de seu alinhamento com o feminismo liberal. Essa rejeição é alimentada pela difamação promovida por grupos conservadores, que se concentram em debates restritivos sobre a definição de “mulher”. Contudo, essa abordagem é desnecessária, pois ser mulher é uma construção social baseada em autoconsciência e autodeterminação. Muitas vezes, para desmoralizar o movimento, as pessoas se apegam a detalhes e terminologias que não são essenciais para o verdadeiro debate (BUTLER, 2024).
Os defensores de visões conservadoras frequentemente utilizam o Estado para marginalizar certos grupos, negando seus direitos humanos e liberdades fundamentais, apesar de afirmarem defender esses valores. Essa postura moralista busca impor uma visão de mundo, especialmente em relação a mulheres, negros e LGBTQIA+, resultando em controle e opressão. Isso levanta a questão de como o Estado, que deveria proteger todos, pode agir em benefício de apenas alguns, especialmente no Brasil, onde, apesar de ser um Estado laico, alinha-se a crenças de grupos religiosos conservadores (BUTLER, 2024).
Portanto, a partir das vertentes constitutivas da dignidade da pessoa humana, cujos conteúdos são densificados na autonomia da vontade e na saúde psico-físico-moral, outra conclusão não se justifica: a maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas. Nesse contexto, ao Estado, por conduta negativa, compete respeitar as liberdades individuais da mulher. (WEBER, 2023)
Como a ministra Rosa Weber (2023) destacou, qual seria o motivo das mulheres estarem sendo forçadas a continuar com gravidezes indesejadas, sem poderem decidir sobre seus próprios corpos, sendo que as mesmas são sujeitos dos direitos humanos, os direitos humanos não são exclusivos aos homens, o que reflete questões mais amplas, como salários desiguais, assédio, violência doméstica e feminicídio.
Essa análise vai além das fronteiras nacionais e pode ser aplicada às relações internacionais. Como a Enloe (2000) discute, onde estavam as mulheres ao longo da história? Muitas vezes, elas estavam nos bastidores, atrás das câmeras e dos documentos oficiais, auxiliando na assinatura de tratados e nas negociações diplomáticas. A presença feminina sempre esteve lá, mas por muito tempo foi invisibilizada, no entanto, agora, elas estão sendo vistas. Por isso, é fundamental reconhecer o papel da mulher na sociedade, porque, durante séculos, elas foram ignoradas e esquecidas, e é necessário questionar o motivo desse “esquecimento”.
O patriarcado utiliza divisões entre mulheres como ferramenta de controle social, criando conflitos entre aquelas que seguem padrões tradicionais e as que rejeitam normas femininas convencionais, como adotar estilos mais masculinos. Ambos os comportamentos acabam reforçando o patriarcado, seja como modelos idealizados ou alvos de condenação (ENLOE, 2000).
Mulheres que rompem com padrões tradicionais frequentemente são usadas como exemplos negativos por misóginos, enfraquecendo o feminismo e gerando medo em outras mulheres de se associarem ao movimento. Superar o patriarcado não tem resposta simples, mas exige compreender como ele manipula as regras sociais, por isso é essencial reconhecer que, apesar das diferenças, todas compartilham experiências comuns de opressão. Desafiar o patriarcado começa com a solidariedade e a busca por formas de resistir às suas normas, mesmo dentro delas.
Em conclusão, a análise das dinâmicas de poder nas Relações Internacionais revela como gênero e sexualidade, enquanto construções sociais, moldam profundamente as estruturas de autoridade e decisão, com a predominância masculina em cargos de liderança perpetuando uma ordem patriarcal que marginaliza as contribuições femininas. Ao negar direitos e liberdades fundamentais por meio do aparato estatal, o patriarcado reforça uma agenda moralista excludente que subordina mulheres (WEBER, 2023; BUTLER, 2024).
METODOLOGIA E ANÁLISE DE DADOS
O estudo utiliza a metodologia de política comparada para analisar as diferenças e similaridades entre Brasil, Colômbia e Uruguai em relação à legislação sobre aborto e aos direitos reprodutivos femininos. A variável dependente é o status das mulheres na sociedade, moldado por fatores sociais e legais, enquanto a legislação sobre aborto é a variável independente, representando a autonomia feminina e a igualdade de gênero.
A análise destaca como as políticas de saúde reprodutiva afetam diretamente a vida das mulheres. Variáveis de controle, como o patriarcado e as relações de poder, evidenciam que as estruturas sociais influenciam as leis e determinam a posição das mulheres. A pesquisa busca ilustrar como a posição das mulheres na sociedade é determinada sobretudo por estruturas sociais que influenciam as leis.
A escolha do Uruguai, se deu pela questão da legalização do aborto. No país, o aborto pode ser realizado até a 12ª semana por qualquer motivo. Em casos de estupro, má-formação do feto ou risco de vida da mulher, esse prazo se estende para até a 14ª semana. A legalização ocorreu em 2012, durante o governo do ex-presidente José Mujica, após intensos debates no Congresso, a lei foi sancionada, representando um avanço nas políticas públicas e sociais do país.
Ley N° 18987, Artículo 2
(Despenalización).- La interrupción voluntaria del embarazo no será penalizada y en consecuencia no serán aplicables los artículos 325 y 325 bis del Código Penal, para el caso que la mujer cumpla con los requisitos que se establecen en los artículos siguientes y se realice durante las primeras doce semanas de gravidez. (IMPO, 2012)
Por outro lado, a escolha da Colômbia, se dá pelas semelhanças com o Brasil em termos de patriarcado, além de ser um país muito religioso, majoritariamente católico, com forte apego aos valores da religião, logo, é curioso observar como uma sociedade tão conservadora optou pela descriminalização do aborto.
Anteriormente, o aborto era parcialmente legalizado, assim como no Brasil, em casos de estupro, má-formação do feto ou risco de vida da mãe, todavia, no dia 21 de fevereiro de 2022, a Colômbia descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gestação, decisão tomada pela Corte Constitucional.
Essa decisão foi resultado de uma longa mobilização do movimento “Causa Justa”, uma coalizão formada por mais de 200 organizações, incluindo prestadores de serviços de saúde, acadêmicos, pesquisadores e ativistas. Na qual em 2020, o movimento entrou com uma ação no Tribunal Constitucional da Colômbia, questionando as restrições ao aborto, e a resposta veio em 2022, quando a Corte, majoritariamente de direita, decidiu descriminalizar o aborto, um marco importante na luta pelos direitos reprodutivos das mulheres (PROFAMILIA, 2024).
En Colombia la interrupción voluntaria del embarazo (IVE) está incluida en el Plan de Beneficios en Salud (PBS) para cualquier mujer y persona gestante del régimen contributivo o subsidiado. Todas las clínicas y hospitales, públicos y privados, deben estar en capacidad de atender casos de IVE, inclusive en aquellos municipios donde se cuenta con un solo puesto de salud. Por medio de esta sentencia la Corte Constitucional despenalizó el aborto cuando se realice antes de la semana 24 de gestación y sin límite de tiempo de gestación cuando se den alguna de las 3 causales despenalizadas en la Sentencia C-355 de 2006. (SUPERINTENDÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 2024)
Tanto em governos de esquerda quanto de direita, o aborto tem sido discutido como uma questão de saúde pública e autonomia da mulher. No entanto, a Constituição brasileira ainda trata a mulher de forma condicionada, além de haver um debate sobre o início da vida, se seria após a concepção ou após o parto. Essa área de definição sobre o feto ainda é muito nebulosa, que gera discussões e permite que seja usado como justificativa para negar a autonomia das mulheres e continuar controlando seus corpos, perpetuando uma misoginia que nega seus direitos (WEBER, 2023).
O constitucionalismo brasileiro, assim como o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, não adota a tese do direito à vida desde o momento da concepção, antes compartilha o desenho institucional de proteção incremental do direito à vida, considerada a concordância prática necessária com os outros direitos fundamentais, a saber os direitos fundamentais das mulheres. (WEBER, 2023)
Logo, ao falar de Foucault (1975) e sua teoria do biopoder, que trata das políticas voltadas para a preservação da vida, também podemos trazer à discussão o conceito de necropolítica de Achille Mbembe (2011), que se refere às políticas que levam à morte. A criminalização do aborto é um exemplo claro de uma política que mata. Um estudo do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) diz que uma das principais causas de morte materna é o aborto, especialmente o aborto inseguro e perigoso.
O Comitê relembra que o aborto inseguro é uma das principais causas de mortalidade e morbidade materna. O acesso a um aborto seguro e legal, bem como a cuidados de qualidade pós-aborto, especialmente em casos de complicações decorrentes de abortos inseguros, ajuda a reduzir as taxas de mortalidade materna, a prevenir gravidezes adolescentes e indesejadas, e a garantir o direito das mulheres de decidirem livremente sobre seus corpos. (ACNUDH, 2022)
O Brasil é signatário da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, convenção da Assembléia Geral das Nações Unidas, que solicita aos Estados-membros que implementem políticas para evitar a morte de seus cidadãos, garantindo o direito à vida e oferecendo opções seguras, como clínicas especializadas.
Este avanço crítico coloca a saúde das mulheres e a autonomia corporal no topo das conversas sobre direitos humanos, ao exigir que os estados forneçam acesso seguro, legal e eficaz ao aborto, inclusive quando a gravidez representa uma ameaça à saúde da mulher ou causará dor ou sofrimento substancial, particularmente em casos de gravidez resultante de estupro ou incesto. Além disso, os estados são obrigados a remover barreiras políticas e estruturais existentes que impedem o acesso efetivo de mulheres e meninas ao aborto, incluindo aquelas barreiras criadas devido à objeção de consciência. (CENTER FOR REPRODUCTIVE RIGHTS, 2018)
A Convenção em questão foi criada para prevenir que mulheres busquem serviços em clínicas ilegais. Contudo, mesmo sendo um país signatário desde 1984, o Brasil ainda enfrenta desafios para implementar integralmente tais recomendações.
ANÁLISE DOS DADOS
O Brasil ocupa uma posição de destaque negativo nos indicadores de mortalidade materna, revelando um problema estrutural e expondo uma estagnação na adoção de medidas efetivas. A comparação internacional evidencia um contraste gritante, uma vez que países que implementaram políticas inclusivas, educação sexual ampla e sistemas de saúde preparados para lidar com emergências obstétricas conseguiram reduzir drasticamente suas taxas de mortalidade materna. No caso brasileiro, parte significativa dessas mortes está diretamente ligada à criminalização do aborto, já que, devido à ilegalidade, muitas mulheres são levadas a recorrer a procedimentos inseguros, colocando em risco a própria vida para evitar buscar atendimento médico e enfrentar possíveis processos penais.
Gráfico 1 – Taxa de mortalidade materna no mundo

Fonte: OUR WORLD IN DATA, 2024.
Esse índice representa o número anual de mortes maternas para cada 100.000 mulheres e meninas. Devido às limitações nos registros e na notificação dos óbitos, os valores apresentados provavelmente subestimam o total real de mortes maternas.
Gráfico 2 – Taxa de mortalidade materna por aborto no Brasil, Colômbia e Uruguai

Fonte: WHO, 2024.
Esse índice representa a taxa anual estimada de mulheres para cada 100.000 habitantes que faleceram devido a complicações do aborto, embora não esteja especificado se os casos se referem a abortos intencionais (foco do estudo) ou naturais.
Nos países que garantem direitos reprodutivos apresentam menor mortalidade materna, pois o aborto legal e seguro elimina a necessidade de clínicas clandestinas. Nesses países, os centros de saúde encontram-se mais preparados para realizar o procedimento com segurança, reduzindo riscos e complicações para as mulheres.
A Colômbia, apesar de ter sido um país conservador, também apresenta condições melhores do que o Brasil. Desde a descriminalização do aborto e o aumento das campanhas educativas e de ONGs, a Colômbia avançou na criação de clínicas especializadas para as mulheres, não apenas para o aborto seguro, mas também em áreas como ginecologia e obstetrícia. Essas iniciativas refletem um avanço tanto nos direitos reprodutivos quanto nos direitos gerais das mulheres.
Ao fazer um paralelo com o Brasil, percebemos que o país ainda restringe significativamente a autonomia feminina, o direito de ir e vir e as escolhas das mulheres são limitadas, o que impacta diretamente na saúde e no bem-estar dos corpos femininos. Mais grave ainda, a incapacidade de implementar políticas públicas eficazes resulta na persistência inalterada dos índices de mortalidade materna por aborto no Brasil ao longo dos anos. Essa omissão estatal, ao impedir a criação de políticas abrangentes, acaba significando, na prática, a condenação de inúmeras mulheres a riscos evitáveis e ao desamparo diante de complicações que poderiam ser prevenidas com medidas adequadas.
Diante desse cenário, torna-se urgente reconhecer que a mortalidade materna não é apenas um dado estatístico, mas um sintoma de negligência estatal e de desigualdades históricas. Reduzir esses índices exige muito mais do que discursos: requer planejamento, investimento e compromisso real do poder público em garantir que nenhuma mulher morra por causas que poderiam ser prevenidas com políticas integradas e efetivas de saúde e direitos reprodutivos.
Gráfico 3 – Quantidade de casos de aborto (comparação)

Fontes LA DIARIA, 2023; FRANCE24, 2023; INFOBAE, 2020.:
O Brasil não está representado no gráfico devido à ausência de dados disponíveis, que pode ser atribuída à ilegalidade da prática em questão.
Nesta tabela, é possível referênciar os casos de aborto na Colômbia e no Uruguai, destacando como ambos os países apresentam baixos índices de mortes maternas relacionadas a procedimentos abortivos. Isso ocorre, principalmente, devido à inclusão de políticas de saúde pública eficazes, onde o estado desempenha um papel fundamental em assegurar um processo de aborto bem estruturado e planejado.
No Uruguai, por exemplo, as mulheres passam por um acompanhamento completo, que começa com apoio psicológico e continua mesmo após o procedimento, garantindo assistência pós-aborto. Esse modelo de cuidado integral tem sido eficaz em proteger a saúde das mulheres e assegurar que elas tenham suporte emocional e médico durante todo o processo. Na Colômbia, esse tipo de abordagem está começando a ser implementado e, embora exista um aumento inicial no número de procedimentos registrados, esse “boom” é esperado e compreensível, pois reflete a transição de abortos inseguros e não contabilizados para procedimentos realizados em condições seguras e dentro do sistema de saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando as indagações iniciais deste trabalho sobre como o tratamento distinto do aborto no Brasil, na Colômbia e no Uruguai afeta a autonomia das mulheres e sua igualdade de gênero no âmbito dos direitos humanos básicos, observa-se que, no caso brasileiro, ele limita significativamente a autonomia das mulheres e as coloca em situações de vulnerabilidade física e social (WEBER, 2023). A legislação brasileira, ao tratar o aborto como crime, perpetua uma visão patriarcal e conservadora, que reforça o controle sobre os corpos femininos e os coloca em situações de vulnerabilidade, tanto física quanto social, impedindo elas de exercerem plenamente seus direitos (WEBER, 2023).
No Uruguai, a legalização do aborto foi adotada sendo a melhor opção possível. A legislação uruguaia estabelece um prazo para a realização do procedimento, até a 12ª semana, de forma a proteger a saúde da mulher. O sistema de saúde público oferece suporte especializado para a realização segura do aborto, garantindo que as mulheres tenham acesso ao procedimento em condições adequadas e sem colocar suas vidas em risco.
Por outro lado, na Colômbia, a descriminalização do aborto ocorreu por decisão da Corte Constitucional, e permite a interrupção da gravidez até a 24ª semana, um prazo maior do que o estipulado no Uruguai. No entanto, apesar desse avanço, o acesso ao aborto na Colômbia ainda enfrenta limitações, por mais que algumas instituições públicas estão autorizadas a realizar o procedimento, o aborto não é uma garantia universal do Estado, o que faz com que muitas mulheres ainda recorram a clínicas privadas para garantir o atendimento (PROFAMILIA, 2024). Aquelas que não têm condições financeiras para buscar clínicas privadas acabam, infelizmente, recorrendo a clínicas clandestinas.
No Brasil, como observado, a situação é mais crítica. Como ilustrado no Gráfico 1 sobre mortalidade materna por aborto, o Brasil lidera as estatísticas de mortes maternas relacionadas ao aborto, resultado direto da criminalização do procedimento (BRASIL, 1940). Mesmo que o aborto só seja permitido em três circunstâncias, em casos de estupro, quando o feto é anencéfalo ou quando há risco de morte para a gestante, os profissionais da saúde das clínicas autorizadas se recusam a realizar o procedimento, seja por medo de processo legal ou por motivos de convicção moral, deixando as mulheres desamparadas (WEBER, 2023).
Assim, mesmo quando as mulheres têm direito ao aborto pelas exceções permitidas por lei, elas frequentemente se veem obrigadas a recorrer a clínicas clandestinas, isso ocorre porque o Estado brasileiro falha em garantir plenamente esse direito e em oferecer suporte adequado às mulheres. Os desafios persistentes no acesso às exceções legais, como a objeção de consciência de profissionais de saúde e sua relação com as taxas de mortalidade materna, reforçam a necessidade de análises mais aprofundadas sobre a operacionalização desses direitos. Além disso, o tabu moralista e religioso que cerca o aborto no Brasil perpetua estigmatização e revela como estruturas interseccionais de raça, classe e gênero ampliam vulnerabilidades no acesso aos direitos reprodutivos (WEBER, 2023).
Portanto, é possível afirmar que, a igualdade de gênero, enquanto princípio fundamental dos direitos humanos, só poderá ser plenamente alcançada quando as mulheres tiverem o direito de decidir sobre seus próprios corpos garantido por leis justas e inclusivas, que respeitem sua autonomia e dignidade. Nesse sentido, experiências internacionais, como as estratégias de advocacy desenvolvidas pelo movimento Causa Justa na Colômbia e os programas de educação sexual ampla implementados no Uruguai, oferecem importantes referências para o estudo e a formulação de políticas públicas no Brasil.
Ademais, o compromisso brasileiro com tratados internacionais, como a CEDAW, demanda uma análise atenta sobre a efetividade das ações governamentais para garantir a saúde reprodutiva como direito humano, evidenciando a necessidade de políticas integradas que assegurem a autonomia das mulheres e promovam a igualdade de gênero de forma concreta.
Como ressaltou a ex-ministra Rosa Weber (2023), questões de moralidade não deveriam ser impostas pelo Estado, cada indivíduo pode ter sua própria régua moral, mas essa régua não deve ser utilizada para restringir os direitos de outras pessoas ou para negar o acesso ao aborto seguro e legal.
REFERÊNCIAS
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CENTRO DE DERECHOS REPRODUCTIVOS; WOMEN’S LINK WORLDWIDE. El fallo histórico: la demanda y la sentencia C-055 de 2022. Fundación Heinrich Böll, 2024. Disponível em: https://co.boell.org/es/2024/09/19/ii-el-fallo-historico-la-demanda-y-la-sentencia-c-055-de-2022. Acesso em: 15 out. 2024.
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