A história russa sempre envolveu grandes personalidades, sendo que foi através delas ser possível à nação chegar ao seu status de potência, principalmente entre os séculos XVIII e XX. Entretanto, durante toda a sua história, um dos grandes problemas envolvendo a Rússia foi a questão das múltiplas nacionalidades existentes em seu território. Diversos conflitos surgiram com o passar dos séculos envolvendo as diversas etnias que compõe e compuseram a nação, principalmente durante a URSS, período esse em que povos de outros países foram inseridos em culturas e sociedades que já não eram as suas. Tal heterogenia interétnica não limitou os conflitos ao período da União Soviética, mas foi além, principalmente durante os anos que compreendem os governos de Vladimir Putin e Dmitri Medvedev no início do século XXI, com destaque especial para o terceiro mandato de Putin como presidente, quando a Crise da Ucrânia teve seu início.
Para entender melhor como a Crise da Ucrânia foi gerida pelo governo russo, é importante analisar dois fatores: a segurança internacional e como essa aborda a questão da identidade nacional dos povos através da Escola de Copenhague e, também, os discursos presidenciais anuais à Assembleia Federal desde 2000 até 2018. Quando analisamos os discursos presidenciais, podemos observar um padrão no que se refere à questão de identidade nacional, focando sempre na força e soberania russas, na história milenar que carrega os valores morais da nação e como a Rússia sempre irá proteger seus interesses nacionais, principalmente quando se refere aos russkie.
Com base nessas questões, será possível analisar a história russa e como esta foi um fator determinante para entender a identidade nacional russa atual, como também entender o impacto dos discursos presidenciais anuais à Assembleia Federal na tomada de decisões políticas russas no que tange a Crise da Ucrânia, sendo possível, então, entender a crise ucraniana sob uma perspectiva russa.
Escola de Copenhague: Identidade e segurança dos Estados
Ao estudarmos a Segurança Internacional, primeiramente pensamos no Realismo, uma teoria usada para estudar os acontecimentos políticos e militares de quase todo o século XX, bem como para pautar as ações de diversos Estados, principalmente durante a II Guerra Mundial e durante a Guerra Fria. Porém, durante os anos 1980, uma nova linha de pensamento surgiu através do Copenhagen Peace Reasearch Institute (COPRI), a Escola de Copenhague, sendo liderada por Barry Buzan. O instituto foi fundado em 1985 e tem como objetivo a pesquisa sobre segurança e paz e a sua internacionalização (GUZZANI; DIETRICH, 2004, p. 1-2).
Buzan passou a fazer parte do instituto devido ao seu trabalho no livro People, States and fear: national security problem in international relations (1983) que inicia com uma crítica aos Estados devido à sua natureza altamente militarizada e propensa a conflitos, especialmente com a carga histórica da época que derivava da Guerra Fria. Para Buzan (1983) a ideia de que a segurança é apenas um derivativo do poder – já que quanto mais poder um Estado tem, maior será sua segurança – ou, então, de que a segurança é uma condição para a paz é errada. Buzan vê a segurança mais como um companheiro do poder e a paz como consequência da segurança e, em seu livro, ele busca explicar as dinâmicas entre os três conceitos para haver um melhor entendimento sobre os ESI.
A Escola de Copenhague trabalha com a ideia de uma visão mais abrangente sobre segurança, pois defende que a agenda de segurança de cada Estado esteja mais aberta para tratar de outros temas que podem ser securitizados devido às ameaças que podem sofrer. Entretanto, o autor ainda defende certa limitação da expansão da agenda, caracterizando, portanto, a Escola de Copenhague entre a vertente tradicionalista, que possui um caráter mais restrito e militar, e a vertente abrangente, que possui o desejo de expandir a agenda da segurança (BUZAN; HANSEN, 2012, p. 287-292). Como afirmam Buzan e Hansen (2012):
[A Escola de Copenhague] em parte, trata de ampliar as ameaças e os objetivos de referência, especialmente segurança identitária/societal; em parte, trata de dar mais atenção ao nível regional; mas, acima de tudo, concentra-se na securitização (os processos sociais pelos quais grupos de pessoas concebem algo como ameaça), oferecendo, portanto, um contraponto construtivista à análise de ameaça materialista dos Estudos Estratégicos tradicionais (BUZAN; HANSEN, 2012, p. 71-72).
Torna-se, portanto, necessário definir segurança e securitização para podermos compreender os estudos realizados pelos autores da Escola de Copenhague nas últimas décadas. Anderson (2012, p. 4) define segurança, “em sua forma mais básica, como a ausência de dano físico ou da ameaça de dano físico”. Buzan vai além e afirma:
Toma-se a segurança como a busca pela liberdade de ameaças e a habilidade de Estados e sociedades de manter sua identidade independente e sua integridade funcional contra forças de mudanças vistas por eles como hostis. O ponto de partida de segurança é a sobrevivência, mas também inclui uma gama razoavelmente substancial de preocupações com as condições de existência. Uma das dificuldades do conceito está relacionado à quando este conjunto de preocupações deixa de merecer a urgência do rótulo de “segurança” (que identifica ameaças como significativas o suficiente para justificar uma ação de emergência e medidas excepcionais, incluindo o uso da força) e torna-se parte de incertezas cotidianas da vida (BUZAN, 1991, p. 432-3, tradução livre).
No livro Security: a new framework for analysis (1998) de Buzan, Wæver e Wilde, é feita a definição de segurança e securitização:
Segurança é o movimento que trata a política para além das regras do jogo estabelecidas e enquadra a questão ou como um tipo particular de política, ou como algo que a transcende. Securitização pode, então, ser vista como uma versão extrema da politização. […] Segurança é, assim, uma prática auto referida porque é no contexto desta prática que se torna uma questão de segurança – não necessariamente porque há uma ameaça existencial real, mas porque é apresentada como ameaça (BUZAN, WÆVER; WILDE, 1998, p. 23-4, tradução livre).
Entretanto, devemos levar em conta que existem outros assuntos abrangendo a segurança e como ela é percebida e trabalhada atualmente, como a definição epistemológica que, dentro da segurança, trabalha com três concepções, sendo elas a concepção objetiva, a subjetiva e a discursiva. A Escola de Copenhague se baseia na concepção discursiva por defender a segurança como um ato de fala, como é colocado por Wæver:
O que é, então, segurança? Com a ajuda da teoria da linguagem, nós podemos observar “segurança” como um ato de fala. […] Ao dizer “segurança” um representante do Estado move um desenvolvimento particular em uma área específica e, portanto, clama um direito especial de usar qualquer meio necessário para bloqueá-lo (WÆVER, 1995 apud WILLIAMS, 2003, p. 513, grifo do autor, tradução livre).
Portanto, de acordo com Buzan e Hansen (2012, p. 324),
O poder discursivo da securitização une atores e objetos: atores securitizantes são definidos como “atores que securitizam questões ao declarar algo – um objeto de referência – existencialmente ameaçado”, sendo os objetos de referência “aquilo que está ameaçado existencialmente e possui uma reivindicação legítima por sobrevivência” (BUZAN; HANSEN, 2012, p. 324, grifo do autor).
Ou seja, quando um representante estatal fala sobre “segurança”, ele acaba declarando uma condição de emergência em determinada área, o que o faz ter o direito de utilizar qualquer meio necessário para impedir que alguma ameaça se concretize (BUZAN; HANSEN, 2012, p. 67-9).
Tendo por base tais análises, pode-se observar como a segurança se afasta de uma aplicação estadocêntrica e militar e passa a ser empregada em outras áreas, como econômica, política, ambiental e social. Dentre essas áreas, a mais extensa em definições e teorias atualmente é a segurança social, pois, como afirma Panić (2009, p. 31), “[…] nesse caso, o objeto de referência de segurança não é o Estado como governo ou uma entidade territorial, mas sim uma identidade coletiva. Desse modo, a segurança de uma sociedade pode estar prejudicada por qualquer coisa que comprometa nossa identidade”. O que está sendo ameaçado não é o Estado ou o indivíduo, mas sim um tipo de sociedade em particular. Portanto, “a segurança está ameaçada quando a ‘sociedade percebe um perigo em termos de identidade’” (HOUGH, 2008, p. 114).
Para compreender rapidamente o que é identidade, Anderson (2006) a define como um grupo de ideias e práticas que identificam certos indivíduos como membros de um grupo social. Entretanto, é necessário fazer a distinção entre identidade nacional Ocidental e Não-Ocidental, que podem definir a identidade de um povo.
De acordo com a visão Ocidental, nações não são apenas comunidades abstratas e imaginárias. São também limitadas porque, independentemente de seu número populacional, ainda será finita em termos territoriais. São soberanas visto que este é um conceito originário durante um período em que Iluminismo estava confrontando tudo aquilo que tinha um pressuposto divino para existir. Por último, também são comunidades porque, não importam as decepções e mazelas que a encontram, ainda há um grande e profundo senso de fraternidade entre a sua população. Pode-se observar tal característica nos últimos séculos quando a nação para de ter conflitos internos que enfraquecem a sua identidade, mas passa a ter um povo que decide morrer pelos ideais imaginados pela nação (ANDERSON, 2006, p. 7).
Para que uma nação seja formada, de acordo com Smith (1991, p. 9), e tenha uma identidade é necessário que haja características em comum entre todo o seu povo, como um senso de comunidade política, instituições comuns a todos e direitos e deveres representados por um único código que se aplique a todos os membros da comunidade. Também é necessário que haja uma demarcação territorial com a qual a nação se identifique. É necessário ressaltar, também, que essa concepção de identidade nacional ocidental é uma concepção predominantemente espacial e territorial, de modo que a população e o território estão profundamente conectados entre si.
Smith (1991, p. 11-12) também afirma que, diferentemente da visão Ocidental sobre identidade nacional, a visão Não-Ocidental e de ênfase étnica, predominante nas regiões do Leste Europeu e da Ásia, dá grande importância à comunidade de nascimento e à cultura nativa do povo. Enquanto o conceito Ocidental afirma que é possível ser parte de uma nação de acordo com a escolha do indivíduo, a visão Não-Ocidental afirma que, independentemente de o indivíduo fazer parte de sua comunidade originária ou não, ele sempre pertencerá ao grupo ao qual ele nasceu. Ou seja, a nação é definida pela descendência e pela etnia. Assim, nessa visão é possível encontrar as origens de um povo em um único indivíduo, criando uma concepção de si mesma como uma “superfamília”. Portanto, genealogia e descendência, costumes, tradições e linguagem são necessários para criar essa identidade nacional.
As ameaças à identidade nacional são vistas de formas diferentes pelo Ocidente e pelo Leste Europeu. Enquanto o Ocidente se sente ameaçado pela integração ocorrida durante os anos 1990 no âmbito político e econômico e que gerou duas décadas mais tarde um problema de imigração, os países do Leste Europeu sentem que têm a sua identidade nacional ameaçada graças a disputas territoriais e de fronteiras e a problemas com minorias étnicas espalhados pelos seus territórios. Como bem afirma Panić (2009, p. 33), embora o Estado e a nação sejam conceitos separados no Ocidente, nos países do Leste Europeu estes dois conceitos estão intrinsicamente ligados, visto que o conceito étnico de nação é aplicado amplamente nessa região. Por conta disso, diversos problemas políticos decorrentes das questões envolvendo a identidade nacional de diversos povos têm ocorrido nas últimas décadas, como é possível observar através da Guerra da Iugoslávia, das duas Guerras da Chechênia, da Guerra do Kosovo e da Crise na Ucrânia.
Tendo por base as definições de segurança e de identidade apresentadas, será possível analisarmos no decorrer deste artigo a evolução da sociedade russa em um contexto pós-soviético e, também, como a formação da identidade nacional deste país afeta as tomadas de decisões do governo no âmbito da segurança internacional.