Os Direitos Humanos, por natureza, são dirigidos a proteção do elemento humano por meio de direitos fundamentais, internacionalmente garantidos e sem discriminação. Dirley da Cunha Junior, em debate à natureza dos direitos fundamentais – à exemplo do direito à vida, liberdade e igualdade – leciona que seu critério unificador é a dignidade da pessoa humana (CUNHA JUNIOR, 2014).
Ao estudar a essência deste conceito, Ingo Wolfgang Sarlet comenta que a dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca ao ser humano, tornando-o merecedor de respeito por parte do Estado e sociedade civil, gerando, sobretudo, direitos e deveres que protejam o indivíduo contra atos degradantes, bem como lhe garantam condições existenciais mínimas para uma vida saudável (SARLET, 2001).
Lei de Migração
Esta definição, adotada pela Lei nº. 13.445/2017 (Lei de Migração) como fim social, bem como pela Constituição Federal de 1988 em seu art. 1º, inciso III e art. 5º, incisos III, VIII, X como princípio basilar, relaciona-se à discutida por Immanuel Kant, cuja proposta era de que, à medida que o ser humano é livre, dotado de dignidade, jamais poderá ser considerado como meio, ou seja, como instrumento ou objeto (KENNY, 1999). Aponta ainda que no “reino dos fins”, as coisas têm um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço pode ser trocado por qualquer outra coisa, enquanto o que tem dignidade é único (KENNY, 1999).
Conectando tais lições à presente pesquisa, nota-se, nos termos dos incisos X e XI do art. 3º e XI do art. 4º da Lei de Migração, que ao migrante indocumentado, enquanto detentor do direito fundamental ao trabalho, será assegurado o indispensável à um padrão existencial digno. Requisitos documentais, portanto, jamais poderão ser utilizados como elemento para aniquilar garantias nestas relações.
A esse respeito, Godinho Delgado e Neves Delgado comentam que o direito ao trabalho, enquanto estritamente vinculado à dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, é capaz de construir a identidade social do trabalhador migrante. Apontam ainda que textos normativos, quando versam sobre o termo “trabalho”, devem ser interpretados à luz da concepção de dignidade (DELGADO, 2012).
Inclusive, o direito humano ao trabalho decente encontra guarida legal na vigente magna carta, nos artigos 1º, inciso IV, 6º, 7º e incisos, 170, inciso VIII e 193, bem como na Convenção nº 122 da OIT sobre política de emprego (1966), Decreto-Lei nº 5.452/43, Emenda Constitucional nº 72 acerca dos trabalhadores domésticos, art. 149, “caput”, do Decreto-Lei nº 2.848/40 e Orientações nº 3 e 4 da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo – CONAETE.
No caso da Lei de Migração atual, o cenário não é diferente. A perspectiva de que o migrante irregular não deve ser instrumentalizado pela sociedade civil ou Estado encoraja a busca por condições equitativas de labor. Logo, não basta assegurar o direito ao trabalho, uma vez que, em razão de sua natureza, demanda-se uma expressão de maneira digna. Além disso, a proteção jurídica se apresenta, por si só, insuficiente para certificar a paridade de proteção entre estes indivíduos e o nacional.
Tanto o é que, ainda diante de amplas discussões em torno do direito ao trabalho digno, foram efetuados resgates de 1.544 (mil quinhentos e quarenta e quatro) pessoas em condições análogas à escravidão somente em São Paulo entre 2003 e 2017, decorrentes de 121 (cento e vinte uma) operações realizadas pelo Ministério Público do Trabalho (OBSERVATÓRIO, 2018).
No que diz respeito ao migrante indocumentado, por geralmente integrar a classe da mão de obra informal, não se sabe ao certo quantos deles compõem o supramencionado levantamento. Não obstante, à luz de notícias publicadas por jornais de amplo acesso e pelo Ministério Público do Trabalho, estima-se que, aproximadamente, 300 (trezentos) estrangeiros irregulares tenham sido resgatados entre 2012 e 2017, em condições de extrema precariedade (BBC, 2018).
Nesse contexto, pautar a questão do trabalhador migrante indocumentado na Lei de Migração é uma estratégia que colabora para o combate à exploração da mão de obra estrangeira vulnerável, fazendo com que, de acordo com Sayuri Suzuki, dê uma guinada na iniciativa estatal de empreender ações diante dessa problemática (SUZUKI, 2017). Inclusive, a estes indivíduos é garantido o amplo acesso à justiça do trabalho, com assistência jurídica integral gratuita, para persecução do cumprimento de obrigações legais e contratuais na área, de acordo com o art. 4º, “caput”, inciso IX e inciso XI da nova lei.
Na prática forense, essa medida já era reconhecida desde à época do Estatuto do Estrangeiro, muito embora não tivesse ampla divulgação para seu público alvo, bem como não contasse com assistência jurídica gratuita, fato que, além de dificultar o acesso, corroborava para ausência de atitudes por parte dos explorados e indocumentados.
Considerações Finais
Cabe ressaltar, sobretudo, que o Poder Público, até então, não encontrou uma forma de promover a plena inserção laboral em detrimento do migrante irregular – e nem parece ser essa sua intenção.
Muito embora as alterações promovidas pela atual lei migratória representem um avanço no reconhecimento de direitos humanos em detrimento do migrante irregular, vê-se, como exposto, que para fincar direitos do trabalhador migrante indocumentado, depende-se fortemente de uma regulamentação adequada à concepção destes indivíduos como dignos.
Até então, esse não foi o ponto de vista acompanhada pelo país, levando em consideração o teor do Decreto nº 9.199/2017 e a retirada da nação do pacto de migração da ONU em 2019 (BBC, 2019). Ainda há muito que ser feito para se enxergar a paridade, reconhecer o outro não como um estranho, mas como igual – digno e detentor de direitos fundamentais, como qualquer ser.
Ora, é sobretudo um chamamento à consciência.
Referências
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. Salvador: JusPodivm, 2014.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.
KENNY, Anthony. História Concisa da Filosofia Ocidental. Lisboa: Temas & Debates, 1999, p. 376.
PIOVESAN, Flavia. Direito à diferença. São Paulo: Método, 2013, p. 304.
DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. Constituição da Republica e Direitos Fundamentais: dignidade da pessoa humana, justiça social e direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2012, p. 63.
OBSERVATÓRIO Digital do Trabalho Escravo. Ministério Público do Trabalho. Disponível em: . Acesso em: 22 abr. 2019.
BBC Brasil. Trabalho escravo estrangeiro. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2020.
DIVERSOS. Ministério Público do Trabalho (MPT). Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2020.
OPERÁRIOS estrangeiros em SP são resgatados de trabalho escravo. G1-São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2020.
POLÍCIA resgata estrangeiros vítimas de trabalho escravo em SP; UOL Notícias. Jul.2015. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2020.
SUZUKI, Natália Sayuri. Trabalho Escravo Contemporâneo: Estudos sobre ações e atores. Capítulo 3., 2017, p. 77.