Curso Política Externa da Coreia do Sul
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O Império Hesitante – Identidade, Poder e Política Externa dos EUA

Transcrição completa da entrevista com Lucas Leite
Por Anna Clara, jornalista da Revista Relações Exteriores

Olá, sejam muito bem-vindos a mais um episódio do Relações Exteriores Entrevistas, onde recebemos pensadores e especialistas das Relações Internacionais para aprofundarmos nosso entendimento sobre os desafios e transformações da política internacional contemporânea. Hoje, embarcamos em uma verdadeira viagem pela história e pela construção do poder global.

Nesta edição, conversamos sobre o papel que os Estados Unidos assumiram na ordem internacional — tema central do livro O Império Hesitante: A Ascensão Americana no Cenário Internacional. A obra propõe uma análise crítica e densa sobre o processo de consolidação dos EUA como potência mundial, destacando as disputas discursivas, as exclusões e os mecanismos de construção identitária que acompanharam essa trajetória.

Nosso convidado é o professor Lucas Leite, pesquisador e docente de Relações Internacionais. Com uma abordagem interdisciplinar, ele articula história, política externa e questões sociais — como o racismo, a xenofobia e o papel do darwinismo social — na formação dos Estados Unidos como potência econômica e militar.

Lucas, é um prazer recebê-lo. Obrigada por aceitar nosso convite.
Lucas Leite: Eu que agradeço, Anna. É um enorme prazer conversar com vocês da Relações Exteriores.

1. A Formação do Poder Americano: Identidade, Excepcionalismo e Disputas Internas

Anna Clara: Para começarmos, gostaria que você explicasse ao público: de onde, na sua visão, surge o poder dos Estados Unidos? Como se deu historicamente esse processo de construção?

Lucas Leite: Eu estudo os Estados Unidos desde a graduação. Sou formado em Relações Internacionais pela PUC Minas, fiz meu mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e, mais recentemente, o pós-doutorado na Universidade Federal de Uberlândia. Em todas essas etapas, os EUA foram meu principal objeto de pesquisa.

Na graduação, analisei o governo George W. Bush e a construção do inimigo no discurso — já com enfoque no pós-estruturalismo e na análise do discurso. No mestrado, aprofundei esse olhar no contexto do pós-Guerra Fria. No doutorado, percebi que precisava voltar no tempo para entender a formação histórica da identidade americana. Essa investigação deu origem ao livro, resultado da minha tese.

A hipótese central é que os EUA se constituíram como nação — e essa identidade foi sendo construída, desconstruída e reconstruída ao longo do tempo, como propõe a abordagem pós-estruturalista — a partir de marcos discursivos decisivos. O ponto inicial que identifico é o fim da Guerra Civil, em 1865. Ali, inicia-se um esforço por um consenso nacional, ainda que permeado por exclusões e disputas.

A partir desse momento, emergem questões-chave: a integração dos negros libertos à sociedade; o debate sobre a expansão territorial e o imperialismo; e a definição sobre o papel internacional que os EUA deveriam desempenhar. Meu argumento é que, a partir do fim da Guerra Civil, começa a ser construída uma identidade nacional que combina elementos simbólicos e materiais de poder, permitindo, décadas depois, o surgimento dos EUA como superpotência.

Essa trajetória culmina em 1898, com a Guerra Hispano-Americana, marco em que os EUA assumem um papel intervencionista na América Latina, em detrimento das potências europeias. Dali em diante, há um processo contínuo de construção de poder frente a atores como Reino Unido, França e Alemanha, marcado por narrativas sobre o “certo” e o “errado”, o “civilizado” e o “bárbaro”, o “nacional” e o “estrangeiro”.

Anna Clara: Há, na sua visão, um momento específico de virada na ordem internacional que marca a consolidação dos Estados Unidos como potência ou esse é um processo mais difuso?

Lucas Leite: É um processo difuso, mas com um marco decisivo: o pós-Segunda Guerra Mundial.

A Segunda Guerra representa o fim de uma ordem centrada na Europa — especialmente no Reino Unido — e inaugura uma nova configuração internacional. Os Estados Unidos deixam de hesitar e assumem efetivamente o papel de superpotência. Esse momento se traduz na criação das instituições de Bretton Woods, da ONU, da OTAN, entre outras. Passam a aceitar os custos da liderança internacional.

Antes disso, mesmo com condições materiais, ideológicas e comerciais favoráveis, os EUA ainda relutavam em assumir esse papel. O período entre guerras, especialmente entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, foi marcado por uma profunda disputa interna entre posições que defendiam ou rejeitavam esse protagonismo — o que, de forma simplificada, chamamos de embate entre imperialistas e anti-imperialistas.

Anna Clara: Seu livro parte da análise dos discursos presidenciais entre 1865 e 1912. O que esse recorte revela sobre a formação da identidade nacional e a afirmação dos EUA como Estado moderno e potência internacional? E por que é importante revisitá-lo hoje?

Lucas Leite: O marco de 1865, fim da Guerra Civil, é central. Até então, os EUA eram uma federação frágil, com identidades regionais fortes e grande divisão entre os estados. Cada estado possuía suas próprias regras, constituição e modelo econômico. A Guerra Civil foi o momento definidor de uma tentativa de centralização e coesão.

A partir dali, discutem-se questões fundamentais: a centralização financeira com a criação do que viria a ser o Federal Reserve; a integração territorial com as ferrovias; e a industrialização. Mas, mais do que infraestrutura, estava em disputa o modelo de sociedade: uma baseada no trabalho escravo e na exportação de commodities, ou uma industrial, urbana e capitalista — esta última associada ao Norte.

Com o fim da escravidão, há o desafio de integrar milhões de ex-escravizados à sociedade, algo inédito até então. Iniciativas foram tomadas, mas o discurso de inferiorização racial permaneceu, ainda que agora por vias pseudocientíficas como o darwinismo social. Autores como Herbert Spencer e John Fiske sustentaram a ideia de uma “hierarquia racial”, legitimando a exclusão e o imperialismo sob novos termos.

Nesse contexto, os EUA não assumem formalmente um discurso imperialista, mas se apresentam como portadores de um “dever moral” de levar instituições, leis e valores aos outros povos — especialmente na América Latina e Ásia. Isso reforça a ideia de um colonialismo “velado”, que rejeita a estética europeia do império, mas incorpora sua lógica de dominação.

Minha análise vai até 1912, ano anterior ao governo Woodrow Wilson, que será central em meu pós-doutorado. Nesse recorte, defendo que há um processo simultâneo de formação da identidade “interna” (quem é o americano) e “externa” (como ele se posiciona no mundo). Utilizo o pós-estruturalismo justamente para desfazer essa dicotomia entre “dentro” e “fora” e mostrar que as construções identitárias e narrativas se reforçam mutuamente — como já acontecia desde a Doutrina Monroe e o mito do excepcionalismo norte-americano.

2. Exclusão, Racismo e Hierarquias: A Base Interna da Política Externa dos EUA

Anna Clara: O que os discursos dos presidentes desse período revelam sobre as intenções e os valores por trás da política externa norte-americana?

Lucas Leite: Em geral, o que percebemos nesses discursos é um racismo velado — e muitas vezes nem tão velado assim. Era um racismo institucionalizado, legalizado naquele período, que mais tarde deixa de ser legal, mas segue estruturando a sociedade americana. E não se restringe apenas à população negra ou aos ex-escravizados: ele também se manifesta fortemente contra chineses, latinos, japoneses e outros grupos.

Cada um desses grupos foi construído como “o outro”, com base tanto em características fenotípicas quanto em estereótipos sobre seu comportamento, moralidade, estilo de vida. A identidade americana, nesse sentido, é constantemente reafirmada por meio da negação ou exclusão de outras identidades. Um exemplo claro disso é o Ato de Exclusão dos Chineses, de 1882. A justificativa oficial era econômica, mas, na prática, tratava-se de uma política higienista: os corpos chineses eram considerados incompatíveis com o ideal de nação americana.

O paradoxo é que, materialmente, os chineses eram trabalhadores altamente produtivos e saudáveis. Tinham hábitos de higiene mais rigorosos, preparavam seus alimentos com maior cuidado e, por isso, adoeciam menos. Em certo momento, chegaram a ser chamados de “celestiais”, por seu desempenho no trabalho, especialmente na construção das ferrovias no Oeste. Mas, assim que o trabalho deles deixou de ser necessário, o discurso mudou: passaram a ser vistos como afeminados, frágeis, indesejados.

É nesse contexto que surgem as Chinatowns, especialmente em cidades como São Francisco. Foram espaços de reorganização diante da exclusão sistemática. A lógica de gênero também entra nesse debate: o “afeminado” era construído como oposto do trabalhador americano “viril”. E, nesse mesmo período, as mulheres sequer tinham direito ao voto — o qual só veio após pressão e como estratégia política do governo Wilson, mais para ampliar o eleitorado do Partido Democrata do que por convicção democrática.

Essas construções variavam conforme o partido no poder, o contexto econômico e a visão de mundo de cada presidente, mas a estrutura de exclusão e hierarquização entre grupos permanecia como base ideológica comum.

Anna Clara: O que a trajetória dos Estados Unidos, entre o período da reconstrução e a consolidação imperial, pode nos ensinar sobre os dilemas contemporâneos da política externa americana? Em especial, em relação à América Latina, à Ásia ou ao uso da força em nome da ordem?

Lucas Leite: Sua formulação é excelente, porque chega ao cerne da questão: o uso da força em nome da ordem, da estabilidade e da democracia. Essa lógica continua ativa até hoje.

Os Estados Unidos seguem determinando como as economias devem funcionar, quais instituições são consideradas legítimas, que tipo de democracia é “aceitável”. E, quando um país opta por caminhos autônomos, por construir seu próprio modelo político ou econômico, isso é rapidamente interpretado como ameaça, como algo “atrasado” ou “primitivo”.

Essa dualidade — entre o que é visto como civilizado e o que é visto como bárbaro — estrutura toda a atuação externa americana. Desde o apoio a ditaduras militares na América Latina até o envolvimento mais recente de empresários e interesses políticos dos EUA em golpes na Bolívia ou na América Central, o que permanece é a defesa de um modelo econômico baseado no capital e na exploração.

Durante a pesquisa, observei que a construção do “latino” é central para isso. A ideia de um povo “preguiçoso”, resultado de um determinismo geográfico — por viver em regiões tropicais — e de uma suposta inferioridade racial associada à miscigenação, sempre esteve presente. É um discurso de inferiorização que sobrevive até hoje na forma como os mexicanos, venezuelanos ou nicaraguenses são tratados dentro e fora dos EUA.

O próprio Consenso de Washington, nos anos 1990 e 2000, é um exemplo claro dessa imposição de um modelo superior: políticas de austeridade, foco em investimento estrangeiro, privatizações — tudo isso foi vendido como “único caminho possível”. Mas os resultados foram problemáticos, justamente porque ignoraram as realidades locais e reforçaram uma visão de mundo excludente.

Esse discurso de superioridade está presente até hoje — e encontra no governo Trump uma de suas manifestações mais explícitas. O ponto central é: os Estados Unidos seguem atuando como se fossem os únicos a saber o que é “melhor” para o mundo.

Anna Clara: O livro mostra que a coesão nacional americana se construiu pela inclusão de alguns e pela exclusão de muitos. Quais foram os principais grupos marginalizados nesse processo?

Lucas Leite: Sem dúvida, o primeiro grupo são os povos escravizados. Mas, ao lado deles, é preciso destacar as mulheres — e, posteriormente, os latinos e os asiáticos, sobretudo filipinos e chineses, que imigraram em massa para os EUA entre o século XIX e o início do século XX.

Esses grupos foram submetidos à exploração mais brutal, tornando-se pilares da construção econômica, cultural e social dos EUA. No Sul do país, por exemplo, tudo — da agricultura ao dialeto, da gastronomia à música — tem raízes profundas na cultura afro-americana.

Assim como no Brasil, os Estados Unidos só existem enquanto potência porque a população negra arcou com os custos sociais e econômicos da escravidão. E não houve reparação. A tentativa de reconstrução nacional, após a Guerra Civil, foi interrompida abruptamente no Compromisso de 1876, que garantiu a presidência a Rutherford Hayes em troca da retirada das tropas federais do Sul — o que abriu espaço para a violência racial e a criação de leis segregacionistas.

Com isso, surgem os grupos supremacistas, como a Ku Klux Klan. Eles passaram a agir quase à revelia do próprio Estado, e demorou muito até que o governo federal adotasse uma postura mais ativa contra essas organizações. Mesmo assim, a KKK volta e recua ao longo das décadas — e segue existindo. Conhecemos seus líderes atuais e seus discursos, que continuam racistas, xenofóbicos e profundamente misóginos.

Se olharmos a evolução das condições de vida, saúde, educação e moradia desses grupos, veremos que, até hoje, estão sistematicamente em desvantagem em relação à população branca. A questão do voto é emblemática: tanto o sufrágio negro quanto o feminino foram conquistas duramente obtidas, com alianças frágeis. Angela Davis discute isso muito bem: quando interessou às mulheres brancas, elas se distanciaram da luta pelo voto universal e se aliaram aos homens brancos para garantir seus próprios direitos — reforçando a clivagem racial.

Portanto, se tivermos que identificar quem ainda sofre as mazelas da construção histórica da nação americana, não há dúvida: são as populações racializadas — negros, latinos e asiáticos — que continuam sendo marginalizadas até hoje.

3. Missão Civilizatória e Imperialismo: A Ordem Americana no Século XX e XXI

Anna Clara: E como os conceitos de identidade nacional e de excepcionalismo americano estão diretamente relacionados ao fortalecimento do imperialismo nos Estados Unidos?

Lucas Leite: Os Estados Unidos dependem profundamente dessa ideia de excepcionalismo. E só para contextualizar: o que seria o excepcionalismo americano? Trata-se de um discurso, uma narrativa — quase uma crença — de que o povo norte-americano é excepcional, escolhido por Deus para ocupar um lugar de hegemonia no mundo. Isso os autorizaria moralmente a levar aos demais povos aquilo que foi consagrado como “melhor”: suas instituições, suas leis, seus valores.

Essa ideia tem raízes profundas no chamado “Destino Manifesto”, que remonta aos sermões protestantes e ao puritanismo britânico. A fundação dos Estados Unidos já se deu sob essa lógica: indivíduos que deixaram o Reino Unido e, ao chegar ao “Novo Mundo”, acreditaram estar construindo uma nova Jerusalém — uma sociedade cristã ideal, moldada pela Bíblia e pela moral protestante.

Essa foi a primeira base identitária da nação americana. Ao longo do tempo, essa identidade foi se entrelaçando com as experiências coloniais e com a separação em relação ao Reino Unido. O resultado foi um sentimento crescente de “povo escolhido”, com legitimidade para intervir — dentro e fora de suas fronteiras.

Quando essa identidade se conecta com o imperialismo e a supremacia branca, cria-se o terreno para um discurso de hierarquia racial. Nesse contexto, o branco protestante anglo-saxão (o chamado WASP) é o legítimo proprietário do território e da nação, enquanto os demais — negros, chineses, latinos, indígenas — são vistos como corpos externos, invasores ou meramente úteis ao sistema, mas nunca plenamente pertencentes.

Enquanto esses grupos serviam ao sistema produtivo, havia um lugar reservado a eles — mesmo que subordinado. Mas, quando esses grupos passaram a reivindicar cidadania, direitos civis e pertencimento social, o Estado norte-americano reagiu com políticas de contenção, exclusão e segregação.

Esse excepcionalismo, portanto, molda não apenas a política externa, mas também a política interna dos EUA. É o que vemos, por exemplo, nas guerras contra o comunismo, o terrorismo ou as drogas. Nessas campanhas, o inimigo nunca é definido com clareza — justamente porque o vago e o abstrato permitem que o imperialismo americano molde, conforme sua conveniência, quem deve ser combatido.

Anna Clara: E de que forma o racismo, a xenofobia e o darwinismo social foram — e talvez ainda sejam — utilizados para legitimar tanto as políticas internas quanto as externas dos Estados Unidos?

Lucas Leite: Toda nação busca validar sua identidade a partir de símbolos, estereótipos e valores. No caso dos Estados Unidos, essa identidade foi, desde o início, formada em torno da figura do WASPWhite, Anglo-Saxon, Protestant. Ou seja, branco, anglo-saxão e protestante. Esse perfil foi historicamente considerado o verdadeiro americano, o que teria legitimidade para definir não apenas como o país deveria ser governado, mas também como o mundo deveria funcionar.

Quando outros grupos passaram a disputar esse espaço de pertencimento — seja cultural, territorial ou simbólico —, o Estado respondeu com discursos de exclusão, violência e inferiorização. Isso exigiu a constante renovação da narrativa dominante. E é aí que entra o darwinismo social.

No século XIX, o darwinismo social foi essencial para legitimar ideologicamente o imperialismo. A lógica era clara: se há hierarquias raciais “naturais”, então os mais evoluídos — brancos, europeus, norte-americanos — têm não só o direito, mas o dever de civilizar os povos considerados inferiores. Isso conferia um verniz “científico” à dominação colonial e às intervenções internacionais.

A pseudo-ciência da época afirmava que era possível determinar a superioridade de um povo pelo tamanho do crânio, pela altura, pela origem geográfica. Isso era utilizado como justificativa para invadir, subjugar e explorar. No fundo, era uma tentativa de legitimar uma imposição violenta de poder, mascarada por um suposto altruísmo civilizatório.

Anna Clara: Você sustenta que a política externa americana foi fortemente marcada por narrativas de excepcionalismo, superioridade racial e missão civilizatória. Como esses elementos simbólicos influenciaram — e ainda influenciam — a atuação dos Estados Unidos no mundo?

Lucas Leite: Esses elementos estão presentes desde a fundação do país. A ideia de que os EUA são a maior nação do mundo porque isso seria “a vontade de Deus” é extremamente recorrente — e continua viva até hoje. Trata-se de uma reinterpretação do antigo direito divino dos reis, agora em uma versão republicana.

Essa identidade simbólica é reforçada por elementos visuais e institucionais. A bandeira dos Estados Unidos, por exemplo, representa seus estados, mas omite territórios coloniais como Porto Rico — um território anexado em 1898 que até hoje não é plenamente representado no sistema político. A questão é: se não é um estado, se não tem voz plena, o que é então? Na prática, é uma colônia.

Mas para suavizar essa realidade, os EUA recorrem a novos discursos: democracia, liberdade individual, livre comércio, direitos humanos. Tudo isso é mobilizado para legitimar ações externas que, no fundo, perpetuam relações de dominação.

4. Críticas às Teorias Tradicionais e a Necessidade de Novas Perspectivas

Anna Clara: Na sua avaliação, as teorias tradicionais de Relações Internacionais dão conta de explicar esse processo de ascensão dos Estados Unidos? Ou é preciso ir além delas?

Lucas Leite: As teorias tradicionais — como o realismo e o liberalismo — não dão conta desses processos. E não por falha analítica, mas porque elas foram criadas justamente para reforçar essa ordem.

Essas teorias partem de premissas positivistas, acreditam em uma racionalidade universal, na ideia de progresso linear, de Estados unitários e neutros — como se todos os países operassem em igualdade de condições, ignorando desigualdades raciais, de gênero, de classe, e os legados do colonialismo.

O que as abordagens pós-estruturalistas, pós-coloniais, decoloniais, feministas e queer mostram é que a construção das Relações Internacionais como disciplina foi feita por e para o Ocidente. A narrativa de que tudo começou com a fundação da cátedra de RI em 1919, em Aberystwyth, desconsidera completamente as experiências, saberes e conflitos do Sul Global.

As teorias tradicionais ignoram, por exemplo, como o racismo estruturou o sistema internacional. Autores como Charles Mills, no seu livro O Contrato Racial, mostram que o que existe de fato não é um contrato social universal, mas um contrato racial, que determina os termos de quem pertence e quem é excluído. W.E.B. Du Bois já falava da “linha de cor global”. Essas abordagens não são complementares: elas são fundamentais para compreender como o mundo realmente funciona.

Anna Clara: Você percebe a permanência desse modelo de identidade excludente e expansionista na política externa americana atual? E quais exemplos destacaria?

Lucas Leite: Com certeza. A política externa dos Estados Unidos sempre foi marcada por uma lógica de exclusão — definindo quem está “dentro” e quem está “fora”, quem é “amigo” e quem é “inimigo”.

No pós-Segunda Guerra Mundial, o inimigo foi o comunismo. Depois, o terrorismo. O padrão é o mesmo: construir um inimigo simbólico que una o país em torno de uma suposta identidade comum. Essa construção ignora a diversidade interna, os conflitos raciais, sociais e econômicos.

Na prática, países com regimes autoritários podem ser aliados dos EUA se atenderem aos seus interesses — e democracias podem ser descartadas se adotarem caminhos considerados “fora da norma”. É uma política externa moldada por interesses de poder, sim, mas sustentada por um discurso identitário que reforça constantemente a dicotomia entre “nós” e “eles”.

Anna Clara: O império americano ainda é hesitante hoje ou assumiu de vez seu papel hegemônico?

Lucas Leite: Não é mais hesitante. Os Estados Unidos assumiram plenamente esse papel a partir de 1945, com a reordenação do sistema internacional. Com o fim da Guerra Fria, essa hegemonia se intensificou — especialmente no chamado momento unipolar dos anos 1990 e 2000.

Guerras no Afeganistão, no Iraque, a imposição de normas econômicas, o discurso da “ordem liberal internacional” — tudo isso mostra que a hesitação desapareceu. O governo Trump, com o slogan “Make America Great Again”, é revelador. O que seria esse “Great Again”? Uma referência direta à era de ouro do capitalismo americano, mas que também foi um período de intensa exclusão racial, exploração trabalhista e dominação internacional.

Hoje, os Estados Unidos mantêm um discurso de valores universais, mas seus interesses geopolíticos e econômicos continuam guiando suas ações. O império pode mudar de forma — pode se apresentar com uma linguagem mais suave — mas o projeto hegemônico permanece.

5. O Que o Brasil Tem a Ver com Isso: Aprendizados, Identidade e Relações Internacionais

Anna Clara: E por que o cidadão brasileiro ganha — ou melhor, o que ele ganha — ao entender os fundamentos ideológicos e discursivos da política externa dos Estados Unidos nesse período?

Lucas Leite: Sem dúvida, entender esses fundamentos é essencial. Hoje em dia é muito difícil analisar o mundo sem considerar aspectos identitários, raciais, sociais, e a importância das narrativas. Se nos prendermos apenas à lógica da racionalidade instrumental, como propõem muitas teorias tradicionais de Relações Internacionais, ficamos com explicações limitadas e incapazes de dar conta da complexidade do sistema internacional atual.

Vivemos em um mundo transnacional, diverso, fluido, multipolar — com múltiplos atores em interação. Isso exige uma visão ampliada, que vá além dos fatores materiais ou estritamente políticos. O brasileiro, em especial, precisa entender quem são os norte-americanos, os chineses, os indianos — suas identidades, símbolos, histórias — para conseguir criar vínculos reais, estratégias eficazes de negociação e cooperação.

Sem esse entendimento do “outro”, é impossível construir relações internacionais saudáveis. E num contexto em que precisamos diversificar parcerias comerciais, políticas e técnicas, essa compreensão é fundamental.

Anna Clara: Ao falar da missão civilizatória americana, sua pesquisa dialoga com a noção de soft power ou com outras formas contemporâneas de influência? Que paralelos você traçaria?

Lucas Leite: Essa é uma discussão que eu sempre trago em sala de aula, porque sou bastante crítico ao conceito de soft power. Na minha tese, trabalho justamente com os elementos ideológicos que constroem as proximidades — ou as distâncias — entre atores internacionais.

Para mim, soft power é mais um conceito criado pelos próprios Estados Unidos para legitimar seu poder simbólico. Parece que, ao falar em soft power, estamos reduzindo a dimensão coercitiva do poder e exaltando o “charme” da influência cultural, mas, na prática, isso é ilusório. Hard e soft power não andam separados — eles são faces da mesma moeda.

Mesmo quando o Joseph Nye propõe o smart power como uma síntese, isso ainda opera dentro de uma narrativa legitimadora do poder norte-americano. O que vemos, na realidade, é um discurso que embala a dominação com uma estética palatável: “nossos valores, nossa cultura, nossa civilização são desejáveis, logo temos o direito de influenciar”.

Essa influência não se limita a filmes e redes sociais. Ela alcança instituições, modelos de consumo, padrões de beleza, sistemas educacionais e até estruturas políticas. Em última instância, a lógica é: muitos querem ser como os americanos — inclusive em termos ideológicos. E isso, por si só, é uma forma de poder.

Anna Clara: E, já nos encaminhando para o fim, que lições ou reflexões você espera que os leitores levem após a leitura do seu livro?

Lucas Leite: Eu adoraria que os leitores me dissessem que, ao terminar o livro, passaram a enxergar as Relações Internacionais com outros olhos — com mais profundidade, mais criticidade.

Espero que percebam que os Estados Unidos, como conhecemos hoje, foram construídos a partir de uma longa trajetória simbólica, discursiva e identitária. Foi um processo permeado por exclusões, disputas internas e externas, e por um esforço contínuo de legitimação do poder.

Mais do que entender o passado, meu objetivo é que o livro ajude a compreender por que os EUA demoraram a assumir sua hegemonia no século XIX e como, ao longo do tempo, foram se vendo cada vez mais aptos — e legitimados — a ocupar esse lugar de liderança internacional. Esse processo tem continuidade. Talvez renda, inclusive, um próximo livro.

Anna Clara: E assim chegamos ao fim de uma conversa extremamente rica, instigante — e, sem dúvida, necessária. Ao refletir sobre a ascensão dos Estados Unidos, também olhamos para os mecanismos de construção do poder que continuam moldando o mundo hoje, redefinindo fronteiras, identidades e relações.

Lucas, muito obrigada por sua participação, por compartilhar conosco seu conhecimento e olhar crítico — tão importantes para entender não só o passado, mas também os desafios do presente.

O livro O Império Hesitante: A Ascensão Americana no Cenário Internacional está disponível na Amazon, e é uma leitura fundamental para todos que se interessam por história, política, sociedade e Relações Internacionais.

A você que nos acompanhou até aqui, nosso muito obrigado! Se gostou da entrevista, curta, compartilhe e siga nosso canal para não perder os próximos episódios de Relações Exteriores Entrevistas.

Lucas Leite: Muito obrigado a vocês. Foi um prazer imenso participar. Tchau, tchau!

Anna Clara: Tchau, tchau. E até a próxima!

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Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor.

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