A Copa do Mundo é um dos acontecimentos que movem todas as nações do globo terrestre, tanto pela emoção de torcer quanto pela paixão pelo futebol, e sendo assim, o evento que se realiza a cada quatro anos e que se encontra na sua vigésima segunda edição, carrega nesta edição em específico, uma conjuntura mais singular: será a primeira Copa do Mundo realizada no Oriente Médio. Diante do exposto, o intento mor deste artigo é descrever as constantes violações de Direitos Humanos que o Estado catariano praticou durante a sua preparação para sediar um evento de tal magnitude na qual é a Copa do Mundo, chancelada pela maior autoridade do futebol mundial, a FIFA. Para isso, este trabalho balizou como metodologia uma abordagem qualitativa na análise dos fatos expostos, pelo meio de pesquisas bibliográficas.
Uma Breve e Essencial Contextualização sobre os Direitos Humanos
Conforme descreve Norberto Bobbio, em sua fantástica obra “A Era dos Direitos” desde seu primeiro aparecimento no pensamento político dos séculos XVII e XVIII, a doutrina dos direitos do homem já evoluiu muito, ainda que entre discriminações, refutações e limitações. A concretização dos Direitos Humanos foi obra do constitucionalismo do final do século XVIII que organizou a esfera pública com base na liberdade e na isonomia entre os cidadãos. As revoluções liberais, inglesa, americana e francesa impulsionaram a primeira afirmação histórica dos direitos humanos. Os Direitos Humanos sofreram uma ruptura com o surgimento das guerras mundiais, tendo sido reconstruído após o fim do combate da Segunda Guerra. Foi a partir desse momento que o Direito Internacional principiou a sua mudança em relação ao eixo de preocupação, que, em momento pretérito, era focado na atuação no Estado, nas suas ações de governabilidade e na manutenção das relações internacionais, e passou a incluir a questão dos Direitos Humanos em suas relações e atividades em âmbito internacional.
Desde o pós-Guerra, houve um paulatino processo de internacionalização dos direitos humanos e de evolução dos conceitos. Para Hannah Arendt, “os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em um constante processo de construção e reconstrução”. Tendo em vista este processo de construção, o primeiro documento que ensejou a expressão de universalidade aos direitos humanos foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). A Declaração de 1948 veio, portanto, inserir a acepção contemporânea de direitos humanos, sublinhada pela universalidade e indivisibilidade desses documentos. Neste momento, nasce um documento internacional de declaração e proteção de direitos para todos os povos e de todos os lugares do mundo.
Sob o enfoque da reconstrução dos direitos humanos, no Pós Guerra, há de um lado, a necessidade do “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, e, por outro, o novo formato do Direito Constitucional ocidental, aberto a princípios e a valores. No cômputo do Direito Internacional vale evidenciar que começa a ser delineado neste período, o arcabouço normativo internacional de proteção dos direitos humanos, projetando assim uma vertente de um constitucionalismo global vocacionado a proteger direitos fundamentais e limitar o poder do Estado por meio de um aparato internacional de proteção dos direitos. Por isso, a Declaração Universal é o começo do sistema global, sendo um comprovativo valoroso para o advento dos demais tratados, pactos e convenções internacionais sobre direitos humanos. Norberto Bobbio reconhece este momento como a “universalização dos direitos”, surgindo assim o princípio da universalidade.
Assim sendo, o ser humano para a Declaração está no centro da proteção, sendo detentor universal de respeito e proteção, independentemente de onde nasceu ou está localizado (PIOVESAN, 2013). À vista disso, os Direitos Humanos exibem caráter nuclear, ou seja, são aqueles direitos que não podem ser suspensos ou derrogados, como por exemplo: direito a não ser escravizado, direito a não sofrer tortura, direito a não sofrer ato de genocídio. Inexistem excludentes e não podem ser derrogados ou suspensos sequer em situação e conflitos armados. Isso é chamado de núcleo duro dos direitos fundamentais.
A declaração exibe trinta artigos circunscritos em duas partes: a primeira parte versando sobre direitos civis e políticos e na segunda parte os direitos econômicos, sociais e culturais. Deste modo, emergem os Pactos de 1966 para zelar mais especificamente de direitos declarados de 1948. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esses três registros compõem a base do Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos, comumente reconhecido como Sistema ONU. Esses três documentos internacionais perpassam o âmbito doméstico, e consagram o genuíno interesse internacional. A junção dos três documentos é chamada de “Carta Internacional de Direitos Humanos”.
Importante ressaltar que além do princípio da universalidade apontada por Bobbio, os Direitos Humanos também são considerados indivisíveis, interdependentes, interrelacionados e mutáveis. O Sistema ONU exibe diversos tratados específicos para tratar com questões internacionais na proteção de direitos humanos. Algumas das violações cometidas pelo Catar, que serão versadas na seção a posteriori,se enquadram nos seguintes documentos:
- A Convenção sobre a Proteção dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias (1990);
- A Convenção sobre a Diversidade Biológica (1994);
- A Convenção contra a Tortura e Outras Formas de Tratamento ou Penas Desumanas, Cruéis ou Degradantes (1984).
Além do Sistema Universal de Proteção aos Direitos Humanos, o mundo contemporâneo conta com três sistemas regionais – continentais de proteção aos direitos humanos que são: o Sistema Europeu de Direitos Humanos instituído pela Convenção Europeia de Direitos Humanos (1953); Sistema Interamericano de Direitos Humanos instituído pela Convenção Americana de Direitos Humanos (1969); e o Sistema Africano de Direitos Humanos instituído pela Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (1981). Os sistemas regionais não julgam pessoas, eles julgam os Estados que se encontram violando direitos elencados nas Convenções. O respeito à dignidade do homem está intrinsicamente relacionado com a noção de humanidade, razão pela qual Imannuel Kant afirma que deve agir “de tal maneira, tanto na tua pessoa como na de qualquer, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio (KANT, 1997).
Diante do que foi versado, sobre a breve contextualização do histórico processo de construção sobre os direitos humanos no cenário internacional, será exposto na seção a posteriori a contextualização econômica/ geopolítica do Catar no sistema internacional.
A Contextualização Econômica/Geopolítica do Catar no Sistema Internacional
Banhado pelo Golfo Pérsico e com 900 trilhões de metros cúbicos de reservas de gás natural em seu subsolo, o Catar é um emirado absolutista de poder hereditário, controlado pela Casa de Thiani desde o século XIX. O pequeno país está situado na Península Arábica e a título de curiosidade, possui a metade da área do estado brasileiro de Sergipe. Devido as suas abundantes reservas de petróleo, o país tem ostentado influência econômica e política cada vez mais exacerbada no sistema internacional. A receita da exploração do gás financia megaprojetos que reverberam a pujança econômica do país, como é o caso da Copa do Mundo de 2022, assim como a participação em grandes empreendimentos europeus e o apoio a movimentos rebeldes no mundo árabe. O país é essencialmente um deserto de 11,5 mil quilômetros quadrados de território e população de cerca de 2,7 milhões de pessoas, a maioria delas estrangeiros residentes. O Estado catariano ainda apresenta a maior renda per capita do mundo.
Durante boa parte dos séculos XVIII e XIX, o Catar esteve sob controle da Inglaterra. O país tornou-se independente em 1971, se tornando o “novo coração do Oriente Médio”, conforme aponta Mehran Kamrava, diretor do Centro para Estudos Regionais e Internacionais da Universidade de Georgetown. Conforme alude Kamrava, “o país emergiu como um centro gravitacional do comércio, transporte, política e diplomacia da região. As reservas de petróleo e gás foram descobertas em 1939, todavia, sua exploração foi postergada em decorrência da Segunda Guerra mundial. A partir dos anos 1950, esta atividade engendrou a modernização da infraestrutura do Catar, sucedendo o país a se tornar a posteriori em um investidor global. Segundo Kamrava “com os grandes recursos que advém dessas atividades, o Catar fez nos últimos anos investimentos muito agressivos no exterior, o que incluem o The Shard, o maior prédio da Europa, participações nas montadoras Porsche e Volkswagen, no banco Barclays e no time de futebol francês Paris Saint – Germain (PSG).
O PSG é propriedade da Qatar Sport Investment (QSI), uma subsidiária da Qatar Investment Authority, um fundo de investimento soberano cujo CEO é o emir do Qatar Tamim bin Hamad Al Thani. Alguns críticos explanam que o PSG é um time estatal apoiado pela riqueza do petróleo do Catar. Após a compra do clube francês pelo fundo de investimento do país, o clube se tornou a “nova coqueluche” do cenário futebolístico internacional com ida de jogadores galácticos para o time da capital francesa. O PSG destinou bilhões de euros em contratações de jogadores midiáticos como foi o caso de Lionel Messi e do brasileiro Neymar. Diante disso, o Catar utiliza o PSG como uma ferramenta de soft power, para mitigar sua imagem no cenário internacional. Relembrando o conceito de soft power, Joseph Nye, expoente autor da academia de Relações Internacionais, que estuda as formas de poder no sistema internacional, desenvolveu esse conceito em 1990, em contraposição ao hard power (poder duro). Para Nye, o soft power significa “uma capacidade persuasiva de poder, ou seja, pela capacidade de um Estado auferir algo através de um efeito de atração e não por coerção ou pagamento. Em síntese, o soft power diz respeito a habilidade que o Estado possui de exercer seu poder ou por influência,ou por meio das ideias. Ele é balizado na persuasão, diferentemente do hard power que é embasado na coerção. Existem algumas maneiras na qual o soft power pode ser exercido, como por meio da cultura, dos valores políticos, da política externa, do cinema ou por meio do esporte, caso irrefutável do PSG.
O contexto geopolítico do Catar no Oriente Médio necessita ser sublinhado por este escrito. O país frequentemente é acusado pelos vizinhos da região como um Estado- Nação que abala a estabilidade e a segurança do Oriente Médio por apoiar grupos extremistas como o autointitulado Estado Islâmico e Al- Qaeda. Em 2017, Arábia, Saudita, Bahrein e Emirados Árabes romperam relações com Doha, obrigaram os cidadãos catarianos a deixarem seus territórios e vetaram que seus próprios cidadãos visitassem ou residissem no país. O rompimento das relações diplomáticas também foi seguido por Egito, Iêmen e Líbia. No caso particular do Egito, Doha já consentiu que ajudou o grupo Irmandade Mulçumana, adversário ferrenho do governo militar egípcio.
As tensões na região vem se intensificando ao longo dos últimos anos, demonstrando com frequência que o Catar tem estado fora de simbiose com seus vizinhos. De maneira geral, a instabilidade que paira entre o Catar e os países adjacentes são: a relação do Catar com grupos islâmicos, e a função do Irã nesse cenário geopolítico, adversário regional da Arábia Saudita. Valendo da premissa “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, os iranianos de maioria muçulmana xiita, são os principais opoentes regionais da Arábia Saudita, país de maioria sunita. É de referir que o Catar e o Irã compartilham um dos maiores campos de gás marítimo do mundo. Enfatizando a importância da cooperação regional entre os dois países, o presidente do Irã Ebrahim Raisi, versou que Doha e Teerã devem sedimentar as relações entre eles e que essa relação ensejaria paz e segurança para o Oriente Médio.
Importante reverberar nesta contextualização geopolítica sobre o Catar é o papel que a Al Jazeera aufere para o Estado Catariano. Lançada em 1996, a rede de TV Al Jazeera fez o Catar ficar conhecido no mundo todo, se tornando pedra elementar na estratégia do país para expandir sua projeção e influência para além de suas pujanças de petróleo e gás. De acordo com Kamrava, “a Al Jazeera mudou o jogo das relações entre o Estado, a sociedade, e o equilíbrio do Oriente Médio’. Financiada pelo governo, a emissora não pratica em sua cobertura interna, os mesmos padrões reservados aos vizinhos. A empresa, entretanto, transformou-se em um contencioso de diversos governos árabes, onde a cobertura da Al Jazeera foi largamente favorável aos protestos da Primavera Árabe, em 2011, protestos esses que buscavam por democracia, e maior liberdade de expressão em alguns países do Oriente Médio. Devido a essas e a outras atitudes que antecedem a Primavera Árabe, o sinal da emissora e o seu próprio site foram bloqueados em diversos países da região, dentre eles, na Arábia Saudita.
Conforme aponta o professor de Relações Internacionais, Guilherme Casarões, a Al Jazeera sim, pode ser considerada como um dos principais pontos de crescimento internacional do país. E completa algo que foi abordado anteriormente neste trabalho sobre soft power, na qual segundo Casarões “ a Al Jazeera acabou se tornando um grande instrumento de soft power do Catar. Seguidamentedessa breve, porém necessária contextualização sobre a importância geopolítica que o Catar abarca para as relações internacionais, na próxima seção será versado sobre as principais acusações e violações de direitos humanos cometidos pelo país sede da Copa do Mundo de 2022, sob a chancela da maior entidade do futebol mundial, a FIFA.
Catar 2022: A Copa do Mundo das Violações de Direitos Humanos
Em 2 de dezembro de 2010, superando todos os prognósticos, o Catar surpreendeu o mundo ao ganhar o direito de sediar a Copa do Mundo de 2022. O país derrotou propostas dos Estados Unidos, Japão e Coréia do Sul e Austrália, se tornando o primeiro país do Oriente Médio a receber o maior evento de futebol do planeta. Desde o momento de sua escolha, o Catar já vem sendo alvo de críticas internacionais, a começar pela acusação de ter pagado US$ 3,7 milhões a funcionários a FIFA em subornos para garantir seu apoio. O então presidente da FIFA na época, Joseph Blatter, incentivou a candidatura na época. Porém, desde então, Blatter frequentemente expõem que a FIFA pode ter tomado a decisão equivocada. Blatter está, atualmente, sendo julgado em seu país, a Suíça por fraude, peculato e corrupção, acusações essa, que segundo Blatter são infundadas.
A partir do século XXI, a realização de megaeventos esportivos, como é especificamente o caso da Copa do Mundo, converteu-se em fonte de sérios problemas concernentes a problemas relacionados à proteção dos Direitos Humanos, ocasionando um aumento na cobertura midiática sobre as questões sociais do torneio e uma crescente pressão de grupos ativistas de Direitos Humanos sobre a FIFA e os países sede (TURLEY, 2016. p. 147-148). A realização de uma Copa do Mundo, enseja uma estupenda oportunidade para o Estado – sede fomentar sua infraestrutura, avolumar sua economia e atrair investimentos internacionais, visando o seu crescimento à partir do prestígio do megaevento. No entanto, a violação de pautas relacionadas aos Direitos Humanos é deletéria à imagem do país que receberá os holofotes globais. Sediar um evento de tal magnitude tornou-se não apenas uma oportunidade para o Estado-sede, mas também uma escolha que envolve responsabilidades e pressões internacionais (HANDERSON, 2017).
A população do território que sedia a Copa do Mundo é indubitavelmente afetada pelo evento, auferindo os benefícios da infraestrutura, do crescimento econômico, da chegada de turistas ao país etc. Todavia, o Estado escolhido para sediar o evento sofre com problemas inerentes a tudo isso, principalmente os relacionados à proteção de seus Direitos Humanos. A Copa do Mundo é um espetáculo que torna todos os acontecimentos no país-sede, proeminência global, convertendo-se em fonte de manifestação política dos povos locais, grupos ativistas e da mídia internacional, que podem utilizar o palco do evento para exibir situações de violações aos Direitos Humanos, que já existem no país e que são reforçadas ou causadas em maior escala devido ao torneio. Este foi o caso do Catar.
As condições degradantes nos canteiros de obras são problemas assíduos que ocorrem nos países que se predispõem a receber tais eventos. O sistema trabalhista do Catar, e as alegações envolvendo os abusos e as graves violações aos Direitos Humanos dos imigrantes na preparação da Copa do Mundo reverberou motivo de preocupação da Sociedade Internacional. O Catar apresentou números assustadores, com mais de mil mortes registradas, porém sem informações das causas especificas, devido à falta de investigação de autoridades locais (TER HAAR, 2018). A Anistia Internacional apontou que desde 2010 houve uma “litania de abusos”, quando a FIFA concedeu ao Catar a sede da Copa do Mundo de 2022, sem pedir melhorias em suas práticas trabalhistas.
Conforme explana Agnes Callamard, secretário- geral da Anistia Internacional, “dado o histórico de abusos dos Direitos Humanos no país, a FIFA sabia ou deveria ter ciência dos riscos latentes para os trabalhadores quando outorgou o torneio ao Catar”. Os trabalhadores imigrantes do Catar estão sob tutela jurídica do sistema de trabalho “Kafala”, no qual o Estado designa a responsabilidade e fiscalização dos trabalhadores para companhias ou sujeitos privados (patrocinadores) que possuem o poder legal sobre os empregados, e decidem quando eles podem trocar de emprego, sair do atual ou até sair do país. Caso o trabalhador saia do emprego sem permissão, pode ter sua permissão de residência cancelada pelo empregador e ficará em condição de ilegalidade no país, podendo até mesmo ser deportado e preso por um determinado período.
A Kafala trata-se de uma exigência inspirada na Lei mulçumana – a Sharia, legalizado pelas leis trabalhistas do Catar na qual deixa os trabalhadores imigrantes em condições vulneráveis e, submissos aos empregadores e entidades privadas. As condições de trabalho são degradantes, com salários baixos, jornadas de trabalho longas e exaustivas com pouco tempo de descanso para os trabalhadores. Estes colaboradores trabalharam sob altas temperaturas, apresentando danos físicos e psicológicos, além de condições de moradia insalubres, sem qualquer observância de direitos fundamentais básicos de dignidade humana (REGUEIRO, 2020. p. 29).
As Nações Unidas identificaram diversas violações cometidas pelo Catar dentre elas: violações ao direito a vida; a liberdade; a segurança; ao devido processo legal; liberdade de ir e vir; liberdade de associação e o direito a condições favoráveis e justas de trabalho (REGUEIRO, 2020). Devido a pressões internacionais, como a da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Catar promoveu a flexibilização do sistema kafala com reformas legislativas, autorizando os trabalhadores imigrantes a trocarem de emprego sem necessidade de autorização dos patrocinadores.
Além das violações de Direitos Humanos de trabalhadores imigrantes, mulheres e a população LGBT+ também possuem seus direitos cerceados no Catar. Relações com pessoas do mesmo sexo são proibidas e podem resultar em encarceramento por parte das autoridades catarianas. As mulheres necessitam de autorização de seus tutores do sexo masculino para desempenhar direitos como se casar, viajar para o exterior e obter alguns cuidados de saúde reprodutiva.
A FIFA possui evidente importância na Sociedade Internacional, e como entidade reguladora máxima do futebol mundial e proprietária da Copa do Mundo, possui a capacidade de influenciar os Estados e intervir adequadamente em cernes jurídicas e políticas destas nações. A FIFA é capaz de causar impactos importantes no Sistema Internacional, na qual podem ser positivos ou não. A definição de países que ostentam históricos negativos em matéria de direitos humanos apontam que a entidade sempre priorizou a razão econômica da Copa do Mundo e, consequentemente, seus lucros exorbitantes.
O processo para escolha de sediar a Copa do Mundo envolve um longo processo. Primeiramente, as federações interessadas em sediar o evento necessitam apresentar sua candidatura, englobando um documento que abrange o planejamento prévio feito com o país corroborando o apoio do governo, estados e municípios (DARN, 2011). O “Bidding book” das federações locais deve incluir um amplo material sobre o Estado, manifestando sua vontade em sediar o evento. A etapa da definição do país sede, no primeiro momento, é política e engloba a participação de inúmeros oficiais da esfera pública dos Estados, sendo este processo considerado oneroso e prolongado.
A seleção da sede, além de envolver cernes políticas, abarca também questões econômicas e, nos últimos anos, houve uma tendencia da FIFA de selecionar sedes que ostentassem propostas com maiores investimentos e maior condescendência para exigências da Organização. As contradições em volta das escolhas dos países sedes despontaram no escândalo da entidade, conhecido como “FIFA GATE” que sucedeu na prisão de diversos dirigentes da organização, incluindo até mesmo o presidente Joseph Blatter. A seleção de países com democracias mais voláteis no qual o governo pode engendrar suas decisões e acatar as condições da FIFA com maior facilidade, como correu na Rússia em 2018 e agora no Catar, em 2022, solidificam a tendencia da Organização em selecionar a sede com base em interesses políticos e econômicos.
Nas palavras de DARN (2011)
“Os exemplos demonstram, claramente, que o processo de captação do megaevento Copa do Mundo FIFA atende diretamente aos interesses econômicos da entidade em lucrar com o evento. Por isso, os países ganhadores foram os que apresentaram as propostas com maiores investimentos em estádios – Rússia US$ 3,82 bilhões e Catar US$ 3 bilhões, respectivamente 2018 e 2022, bem como os que terão o maior número de estádios novos construídos, evidenciando as grandes negociações implícitas.” (DARN. Op cit. p. 81).
A FIFA pode utilizar sua posição de reguladora máxima do futebol para aplicar punições disciplinares nas associações de futebol pela inobservância de diretivas de Direitos Humanos e empregar o poder da interferência jurídica inerente as leis gerais dos megaeventos para abarcar normas para regular o modus operandi do país -sede de acordo com suas práticas e diretrizes de Direitos Humanos (SAMPAIO, 2021). Para a FIFA, se torna benevolente utilizar um dos maiores eventos esportivos como é a copa do mundo para propiciar uma imagem mais eminente perante os sujeitos e atores internacionais. Devido a isso, a partir da realização do torneio em 2026, os processos de nova escolha, com base no “bidding book”, poderão ser vistos na preparação e realização do evento, que se harmoniza, paulatinamente , ao padrão de megaeventos realizados no Século XXI, sob baluarte das normas de Direitos Humanos, reconhecidas internacionalmente como United Nations Guided Principles on Business and Human Rights (UNGPs) na qual se consiste em um guia para a adequação de empresas e organizações privadas que instituem impacto internacional nos territórios nacionais às condutas e práticas de garantia e proteção dos Direitos Humanos no objetivo de sua atuação.
Nas palavras de Regueiro (2011) Op Cit. p. 35.
“A FIFA tem poder de mitigar e precaver qualquer abuso de Direitos Humanos relacionado à organização da Copa do Mundo ou, no mínimo, existem formas possíveis de aumentar sua influência sobre os contratantes e subcontratados por meio dessas entidades. […] No entanto, as ações da FIFA foram infímos, levando à violação de sua obrigação de devida diligência nos termos das UNGPs.” (tradução nossa).
Desde o processo de escolha para a Copa do Mundo de 2026, na qual será nos Estados Unidos, México e Canadá, passou a existir mais transparência na escolha dos países sedes, e a FIFA incorporou como critérios para escolha, o aspecto humanitário e social do candidato. Ao se postular como país-sede, a nação ratifica o “hosting agreement” em que consente com uma série de demandas estabelecidas pela FIFA.
O escrito é uma ressalva de que a entidade poderá atuar com liberdade que necessita para organizar o evento, sem maiores preocupações legais e serve como embasamento do país-sede de que haverá essa facilidade. O “hosting agreement” não tem a natureza jurídica de um tratado internacional lavrado entre Estados e Organizações Internacionais, considerando a natureza jurídica da FIFA como ONGI, na verdade ele funciona como um acordo de adesão entre o governo nacional de um país e uma entidade de direito privado, dessa forma, é questionada a legitimidade que o país-sede teria de cumprir suas demandas, considerando a soberania do Estado (SAMPAIO, 2021). Por isso, para atribuir formalidade jurídica às normas criadas pela FIFA para organizar o megaevento, o país sede estabelece o “hosting agreement” junto a novas demandas e requerimentos da organização, e cria uma lei oficial, vinculando juridicamente o Estado.
Considerações Finais
Diante do exposto, o presente trabalho procurou desenvolver em um primeiro momento, uma reflexão acerca do longo caminho percorrido pela matéria de Direitos Humanos no contexto internacional. É nesse sentido que os demais instrumentos que tratam de direitos humanos, como a Declaração de Direitos Humanos de Viena, a qual reitera o conteúdo da Declaração Universal de 1948, passaram a surgir e ganhar relevância nas relações internacionais.
O princípio da dignidade da pessoa humana evoca a valorização do homem frente aos seus pares e o Estado, por este motivo inúmeros instrumentos internacionais trataram de reconhecê-lo internacionalmente, a fim de que os Estados seguissem a mesma orientação no plano interno. Á vista disso, pode-se afirmar que após a segunda Guerra Mundial com a execução dos documentos internacionais e o aparecimento da noção do Estado Social é que ocorreu a vinculação do princípio da dignidade da pessoa humana nas Constituições Federais. A posteriori, a presente pesquisa versou sobre a contextualização econômica/geopolítica do Catar no Sistema Internacional destacando seu papel extremamente relevante na geopolítica do Oriente Médio. A parte final do trabalho foi dedicado as questões referentes as violações de Direitos Humanos cometidas pelo Estado catariano, país sede da Copa do Mundo de 2022, principalmente em relação aos trabalhadores imigrantes que se deslocaram ao país para trabalhar nas obras que ergueram os estádios do Mundial. Durante este escrito, foi constatado diversas denuncias de abusos de Direitos Humanos cometidos pelo Catar, inclusive com o registro de mortes na execução destas obras.
Diversos atletas e ex-atletas têm reforçado um coro coletivo contra a realização da Copa no Catar, algo que fez a FIFA, responsável pelo evento, tomar medidas de extrema relevância para que os próximas sedes tenham esse cuidado ao respeito aos Direitos Humanos, pela qual em 2017 foi lançada a política de Direitos Humanos da entidade. Como avanço trazido por essa política, há que se destacar a Copa de 2026, com sede em três países – Canadá, México e Estados Unidos será a primeira a ter no contrato com os países-sedes cláusulas de direitos humanos. Como parte dessas medidas, os Estados-sedes do Mundial precisam se comprometer a seguir obrigatoriamente os princípios orientadores da ONU sobre empresas e direitos humanos e a desenvolver estratégias nessa proteção.
Quando a FIFA decidiu realizar a Copa do Mundo no Catar, sabia ou deveria ter o conhecimento que existiam riscos inerentes para os Direitos Humanos e, que os trabalhadores imigrantes envolvidos em projetos relacionados com o Mundial sofreriam graves abusos para tornar este projeto factível. A pressão que ocorreu contra a Copa do Catar acaba por trazer para o ambiente esportivo o debate necessário e contemporâneo indispensável à sociedade, aos Estados e aos organismos internacionais. Afinal, o esporte não se afasta do direito e o direito não se afasta da custódia dos Direitos Humanos.
Referências
BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: LTC, 2020.
DARN, Telma. Reflexões sobre o território do futebol e a copa do mundo FIFA 2014 no Brasil. Tese (Doutorado em Geografia) – Programa de pós-graduação em Geografia, UNESP. 2011.
HENDERSON, Abby Maeders. Mega Sporting Events procedures and human rights: Developing na inclusive framework. American Indian Law Review. v. 41. n. 2. 2017.
IMMANUEL, Kant. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 1997.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2013.
REGUEIRO, Raquel. Shared Responsibility and Human RIghts Abuse: The 2022 World Cup in Catar. Tilburg Law Review. v. 25 (1). 2020.
SAMPAIO, Lucas Monte de Macedo. A ATUAÇÃO DA FIFA NA PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO TERRITÓRIO DOS PAÍSES SEDE DAS COPAS DO MUNDO DE FUTEBOL. Natal, 2021.
TER HAAR, Beryl. FIFA, Catar, Kafala: Can the World Cup create a better world of work? International Labor Rights Case Law. V. 4. 2018. P. 130.
TURLEY, Trista. When the ‘Escape Ends Responsibility of the IOC and FIFA at the Intersection of Sports Law and Human Rights. Notre Dame Journal of International & Comparative Law. Vol. 6. Ed. 1. 2016.