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Cancillería Ecuador - Flickr Cochabamba (Bolivia), 3 de Junio 2012. En el Coliseo de la Universidad del Valle - Tiquipaya se realizó la inauguración de la 42 Asamblea General de la OEA. Foto: Fernanda LeMarie - Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio e Integración. Cancillería Ecuador - Flickr Cochabamba (Bolivia), 3 de Junio 2012. En el Coliseo de la Universidad del Valle - Tiquipaya se realizó la inauguración de la 42 Asamblea General de la OEA. Foto: Fernanda LeMarie - Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio e Integración.

Disputa entre Bolívia e Chile: Acesso ao Mar, Conflitos Históricos e Decisões da Corte Internacional de Justiça

Cancillería Ecuador - Flickr Cochabamba (Bolivia), 3 de Junio 2012. En el Coliseo de la Universidad del Valle - Tiquipaya se realizó la inauguración de la 42 Asamblea General de la OEA. Foto: Fernanda LeMarie - Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio e Integración.

A disputa territorial e marítima entre Bolívia e Chile é um dos casos mais emblemáticos da América do Sul no que se refere ao direito internacional e à geopolítica regional. Em sua origem, está a Guerra do Pacífico (1879–1884), um conflito que redesenhou as fronteiras entre os países envolvidos e privou a Bolívia de seu acesso soberano ao mar. Desde então, a questão da mediterraneidade boliviana tornou-se central na política externa do país e gerou tensões prolongadas nas relações diplomáticas entre os dois Estados.

Embora a guerra tenha terminado no século XIX, suas consequências permanecem latentes. A ausência de uma saída ao mar para a Bolívia não é apenas uma desvantagem geográfica, mas representa um trauma nacional simbólico e econômico, reafirmado anualmente na celebração do “Dia do Mar” em território boliviano. Por outro lado, o Chile consolidou sua posição como potência regional ao incorporar os territórios litorâneos ricos em salitre e outros minerais estratégicos.

Nas últimas décadas, essa tensão foi transposta para o campo jurídico internacional. A Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas, foi acionada duas vezes pelas partes envolvidas: primeiro pela Bolívia, em 2013, para exigir que o Chile negociasse um acesso soberano ao Oceano Pacífico; e posteriormente, pelo próprio Chile, em 2016, para definir a natureza jurídica das águas do Rio Silala, utilizadas por ambos os países.

Ambos os julgamentos da CIJ — em 2018 e 2022 — terminaram favoravelmente ao Chile, consolidando a interpretação jurídica de que não há obrigação formal de negociar acesso marítimo e que o Rio Silala constitui um curso de água internacional, sujeito aos princípios do uso equitativo e razoável. Ainda assim, a Bolívia mantém viva a reivindicação de uma saída ao mar, demonstrando como o passado continua moldando o presente e como o direito internacional público é mobilizado em disputas profundamente enraizadas em narrativas históricas e identidades nacionais.

A análise desse contencioso exige um olhar atento para três dimensões complementares:

  • a dimensão histórica, centrada na Guerra do Pacífico e nos tratados que se seguiram;
  • a dimensão jurídica, especialmente os argumentos levados à CIJ;
  • e a dimensão geopolítica e simbólica, que revela a disputa como um reflexo das fragilidades e das aspirações nacionais no contexto latino-americano.

Nas seções seguintes, exploraremos com profundidade os principais momentos dessa disputa, suas implicações no direito internacional e os desafios para a reconciliação diplomática entre os dois países.

As Origens do Conflito: A Guerra do Pacífico e a Mediterraneidade da Bolívia

A disputa entre Bolívia e Chile tem raízes profundas na história do século XIX, particularmente na Guerra do Pacífico (1879–1884), também conhecida como a Guerra do Salitre. Este conflito armado envolveu Chile, Bolívia e Peru, sendo desencadeado por disputas econômicas e territoriais no Deserto de Atacama, uma região rica em recursos minerais como o salitre, o guano e, posteriormente, o cobre.

Em 1874, Bolívia e Chile assinaram um tratado que estabelecia limites territoriais e impedia o aumento de impostos sobre empresas chilenas operando em território boliviano por um período de 25 anos. No entanto, em 1878, a Bolívia impôs um novo imposto sobre uma empresa chilena de salitre — fato considerado pelo Chile uma violação do tratado. Diante da recusa boliviana em revogar o imposto, tropas chilenas ocuparam o porto de Antofagasta em 1879, então pertencente à Bolívia, marcando o início do conflito armado.

Disputa entre Bolívia e Chile: Acesso ao Mar, Conflitos Históricos e Decisões da Corte Internacional de Justiça 1
Mapa histórico das costas perdidas da Bolívia – Visualiza a região entre Antofagasta e o Pacífico. Fonte: Blog TYWKIWDBI
Link: https://tywkiwdbi.blogspot.com

A guerra rapidamente se intensificou com a entrada do Peru, aliado da Bolívia por meio de um tratado secreto de defesa mútua. No entanto, o poderio militar chileno — em particular sua marinha — rapidamente desequilibrou o conflito. Ao final da guerra, o Chile havia ocupado e anexado os territórios costeiros da Bolívia, incluindo a região de Antofagasta, além da província peruana de Tarapacá. A Bolívia perdeu aproximadamente 158.000 km² de território e tornou-se um país sem litoral, sem acesso soberano ao mar.

O Tratado de Paz e Amizade de 1904, assinado entre Bolívia e Chile, formalizou a cessão dos territórios litorâneos bolivianos ao Chile. Em troca, o Chile comprometeu-se a garantir à Bolívia o livre trânsito de mercadorias por seus portos no Pacífico e a construção de uma ferrovia entre Arica e La Paz. Contudo, apesar dessas concessões, a perda do acesso ao mar foi vivida pela Bolívia como uma humilhação nacional — um trauma histórico que continua a moldar a política externa boliviana.

Além da perda territorial, a Bolívia foi excluída do acesso aos benefícios econômicos provenientes da exploração de recursos marinhos e da exportação via litoral próprio. O impacto da mediterraneidade boliviana não é apenas simbólico: afeta logística comercial, projeção geopolítica e integração regional, colocando o país em situação de desvantagem estrutural frente a seus vizinhos litorâneos.

A historiografia boliviana, e parte da latino-americana, interpreta o conflito como um exemplo de desequilíbrio de poder e intervenção estrangeira. A Guerra do Pacífico se deu num contexto em que empresas britânicas e norte-americanas controlavam partes importantes da cadeia produtiva do salitre e do cobre, e em que os Estados latino-americanos ainda buscavam consolidar suas soberanias. Como bem argumenta Manuel Gutiérrez González, o Chile saiu vitorioso do conflito e foi integrado à economia mundial como fornecedor de matérias-primas — sobretudo ao Império Britânico — enquanto Bolívia e Peru afundaram em crises políticas e econômicas profundas.

A derrota boliviana na Guerra do Pacífico tornou-se um marco identitário negativo, reforçado anualmente pela celebração do “Dia do Mar”, em 23 de março. O evento rememora não apenas a perda territorial, mas reafirma a reivindicação boliviana de reconquistar uma saída soberana ao Oceano Pacífico — objetivo que se mantém central na diplomacia boliviana até os dias de hoje.

No plano jurídico, os desdobramentos dessa guerra lançariam as bases para as futuras disputas levadas à Corte Internacional de Justiça. A questão que se impõe não é apenas a legalidade da cessão territorial, mas se o Chile teria assumido, ao longo do século XX, alguma obrigação internacional de negociar com a Bolívia formas de reparar ou mitigar as consequências de sua mediterraneidade. É neste ponto que o passado militar se entrelaça com as expectativas diplomáticas e jurídicas do presente.

O Caso da Bolívia na CIJ: A Obrigação de Negociar o Acesso ao Mar

Diante da estagnação diplomática e da ausência de avanços bilaterais concretos com o Chile, o governo boliviano decidiu internacionalizar sua reivindicação histórica. Em 2013, a Bolívia apresentou uma demanda contra o Chile na Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia, com base na alegação de que o Estado chileno havia assumido, ao longo do tempo, uma obrigação jurídica de negociar com vistas a conceder à Bolívia um acesso soberano ao Oceano Pacífico.

Importante destacar que a Bolívia não solicitava a revisão do Tratado de Paz e Amizade de 1904 — que legalizou a cessão do território litorâneo — nem a restituição dos territórios perdidos. O objeto do litígio era mais sutil: segundo a argumentação boliviana, declarações unilaterais e compromissos políticos assumidos pelo Chile em fóruns bilaterais e multilaterais ao longo do século XX teriam criado uma expectativa legítima e vinculante de negociação. Entre as evidências apresentadas estavam trocas de notas diplomáticas, atas de reuniões, declarações de autoridades chilenas e resoluções da Organização dos Estados Americanos (OEA).

A Bolívia buscava, com isso, que a CIJ reconhecesse a existência de uma obrigação internacional contínua, com base no princípio da boa-fé, no direito dos tratados e na prática diplomática reiterada. A criação da Direção de Reivindicação Marítima (DIREMAR), em 2011, foi um passo institucional importante nesse sentido, permitindo a elaboração de um dossiê jurídico robusto com apoio de juristas, historiadores e diplomatas bolivianos.

O Chile, por sua vez, rebateu de forma contundente. A defesa chilena sustentou que nenhum dos atos diplomáticos apresentados pela Bolívia equivalia a uma obrigação jurídica formal. Segundo os argumentos do governo chileno, a corte não poderia transformar manifestações políticas em compromissos legais, especialmente quando não houve ratificação formal, por meio de tratado ou acordo vinculante. A posição chilena também ressaltou que o princípio da soberania impede que um Estado seja juridicamente forçado a negociar questões territoriais que já foram resolvidas por tratado, salvo se o próprio tratado assim previr.

Em 1º de outubro de 2018, após cinco anos de trâmites e sustentações orais, a CIJ divulgou sua decisão. Por 12 votos a 3, o tribunal julgou que o Chile não assumiu uma obrigação legal de negociar um acesso soberano ao mar para a Bolívia. A Corte afirmou que os elementos apresentados, embora demonstrassem diálogos e iniciativas diplomáticas entre as partes, não configuravam um compromisso legal vinculante, e que o direito internacional não impõe, por si só, o dever de negociar demandas de acesso territorial.

Contudo, a CIJ fez questão de destacar que sua decisão não impede as partes de continuar o diálogo. Ao contrário, encorajou a Bolívia e o Chile a manterem canais de comunicação abertos com vistas à cooperação e à resolução de seus impasses históricos. A Corte afirmou que, embora não exista uma obrigação jurídica de negociar, a boa vizinhança e o espírito de cooperação regional devem orientar as relações entre Estados na América do Sul.

A reação boliviana foi de decepção. O então presidente Evo Morales classificou a decisão como “injusta”, mas reafirmou o compromisso de seu governo em seguir buscando alternativas diplomáticas e multilaterais. A questão marítima permaneceu na agenda política interna da Bolívia como símbolo da luta nacional por soberania e dignidade — um elemento que ultrapassa o mero cálculo jurídico e se insere no imaginário coletivo como reivindicação histórica.

Bolívia Chile - Acesso ao mar - Sentimento latente
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A sentença da CIJ marcou um ponto de inflexão importante: limitou o alcance das expectativas bolivianas no plano jurídico, mas também consolidou a narrativa de que o Chile, embora juridicamente vitorioso, continua a enfrentar uma demanda legítima e não resolvida do ponto de vista político e regional. A decisão de 2018 reafirma os limites do direito internacional frente a disputas historicamente enraizadas em guerras e identidades nacionais, evidenciando que a justiça jurídica nem sempre equivale à justiça histórica.

O Litígio pelo Rio Silala: O Caso Chileno e o Reconhecimento do Curso de Água Internacional

Após a decisão desfavorável à Bolívia no caso sobre o acesso soberano ao mar, uma nova disputa entre os dois países chegou à Corte Internacional de Justiça — desta vez com o Chile na posição de demandante. Em 2016, o governo chileno acionou a Corte para que esta reconhecesse o Rio Silala como um curso de água internacional, sujeito ao regime jurídico do direito internacional consuetudinário e, portanto, de uso compartilhado com a Bolívia.

O Rio Silala nasce em território boliviano, no departamento de Potosí, e flui naturalmente em direção à região de Antofagasta, no norte do Chile. Entretanto, a Bolívia alegava que parte do fluxo havia sido artificialmente intensificado por uma série de canalizações construídas no início do século XX, quando a empresa anglo-chilena Ferrocarril de Antofagasta a Bolívia (FCAB) obteve concessão para desviar parte das águas para abastecer a rede ferroviária. Segundo a Bolívia, isso transformava o fluxo que alcançava o Chile em um curso hídrico artificial, e, portanto, sujeito à soberania exclusiva boliviana (Bahia, 2021).

Essa controvérsia refletia tensões acumuladas desde os anos 1990, quando a Bolívia começou a contestar publicamente o uso das águas por parte do Chile. A situação escalou em 2016, com o presidente Evo Morales ameaçando levar o caso à CIJ — o que motivou o governo chileno a se antecipar e ajuizar a demanda, buscando afirmar juridicamente o caráter internacional do rio e evitar a imposição de restrições unilaterais por parte da Bolívia (Álvarez, 2016).

A posição chilena baseava-se em critérios hidrológicos e jurídicos. Tecnicamente, o Chile argumentava que, mesmo antes das intervenções artificiais, as águas do Silala já fluíam em direção ao território chileno por força da topografia local. Juridicamente, o país defendia que a caracterização do Silala como curso de água internacional implicava no reconhecimento do princípio do uso equitativo e razoável, consagrado na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito dos Cursos de Água de 1997 (International Court of Justice, 2022).

Por outro lado, a Bolívia mantinha uma posição híbrida. Embora tenha inicialmente negado o caráter internacional do rio, ao longo do processo passou a reconhecer que parte do fluxo natural poderia ser internacional, mas insistia que os canais artificiais aumentavam o volume de água que chegava ao Chile. Por isso, o país passou a exigir compensação pelo uso adicional das águas, especialmente aquelas direcionadas por engenharia humana (International Court of Justice, 2018a).

Durante o julgamento, ambos os países convergiram em diversos pontos técnicos. A Bolívia admitiu que parte das águas do Silala fluía naturalmente ao Chile, e o Chile aceitou discutir eventuais compensações por fluxos artificialmente intensificados, caso se comprovassem. Com esse avanço, a controvérsia tornou-se mais limitada, o que influenciou o teor do veredicto.

Em dezembro de 2022, a CIJ proferiu sua decisão. O tribunal concluiu que o Rio Silala constitui um curso de água internacional, devendo ser gerido conforme os princípios do direito internacional consuetudinário, sobretudo o uso equitativo e razoável e a obrigação de notificar previamente em caso de usos que possam afetar significativamente o outro Estado. A CIJ declarou que não havia base suficiente para exigir compensações financeiras do Chile, uma vez que não ficou comprovado que as canalizações haviam alterado substancialmente o regime natural do rio (International Court of Justice, 2022).

Diferente do caso anterior, a decisão sobre o Silala foi bem recebida por ambos os países. A Bolívia enfatizou que o julgamento reconheceu sua soberania sobre o território de origem do rio e a necessidade de acordo para usos artificiais, enquanto o Chile celebrou a confirmação de que se trata de um recurso compartilhado, reafirmando a legalidade de seu uso histórico.

Esse episódio demonstrou uma evolução na postura das partes. Ao contrário da rigidez do litígio marítimo, no caso do Silala houve maior abertura ao diálogo técnico e ao reconhecimento mútuo de argumentos válidos, mesmo em um ambiente de disputa judicial. Ainda que a CIJ não tenha imposto obrigações financeiras ou redefinido limites soberanos, o caso estabeleceu precedentes importantes sobre a governança de recursos hídricos transfronteiriços na América do Sul.

Por fim, o litígio sobre o Silala indica que, mesmo em contextos marcados por rivalidades históricas, a institucionalização jurídica do conflito pode favorecer soluções técnicas e menos politizadas, especialmente quando os temas envolvem bens naturais compartilhados e sensíveis às mudanças climáticas — como a água.

Geopolítica, Identidade e Limites do Direito: A Disputa como Conflito Histórico-Simbólico

Apesar de terem sido julgadas com base em argumentos jurídicos bem definidos, as disputas entre Bolívia e Chile — tanto pelo acesso soberano ao mar quanto pelo uso das águas do Rio Silala — não podem ser compreendidas exclusivamente sob o prisma do direito internacional. Trata-se, acima de tudo, de um conflito geopolítico de longa duração, enraizado em narrativas nacionais, percepções de injustiça histórica e disputas por reconhecimento.

Na memória coletiva boliviana, a perda do litoral após a Guerra do Pacífico é mais do que um fato histórico: é um trauma nacional constituinte. O Estado boliviano emergiu da independência já marcado por vulnerabilidades geográficas, políticas e institucionais. Como apontam Sá Neto e Campos (2015), a mediterraneidade da Bolívia não apenas restringe seu comércio internacional, mas simboliza uma exclusão estrutural da ordem internacional vigente, que favorece Estados com acesso ao mar e capacidade de projeção regional.

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Mar para BOlívia #cumbredelospueblos2013” by Cintia Barenho is licensed under CC BY-NC-SA 2.0

Esse ressentimento geográfico alimenta um nacionalismo defensivo, que encontra eco em políticas externas de reafirmação soberana. Presidentes como Evo Morales mobilizaram a questão marítima como instrumento de coesão interna, reforçando a legitimidade política e conectando a diplomacia internacional com a identidade indígena e popular do país. A retórica do “direito inalienável ao mar” passa, assim, a ocupar lugar central na gramática política da Bolívia contemporânea (Costa, 2017).

Do lado chileno, a perspectiva é radicalmente distinta. A vitória na Guerra do Pacífico é percebida como um marco de afirmação nacional e expansão estratégica. A incorporação do deserto de Atacama e de seus recursos minerais, como o salitre e o cobre, permitiu ao Chile consolidar uma economia voltada para a exportação e integrar-se ao capitalismo internacional, sob a órbita do Império Britânico no final do século XIX (Gutiérrez González, 2021). Nesse contexto, a posição chilena diante das reivindicações bolivianas tende a se ancorar na legalidade dos tratados vigentes e na estabilidade territorial.

Esse descompasso entre narrativa histórica e estrutura jurídica evidencia uma tensão recorrente nas relações internacionais: o direito internacional, mesmo em sua vertente mais progressista, possui limites evidentes quando confrontado com identidades coletivas ofendidas, traumas históricos e desigualdades estruturais entre Estados. Como destacou a própria Corte Internacional de Justiça, não cabe à instituição reescrever a história ou impor soluções políticas — seu papel é jurídico, técnico e interpretativo (International Court of Justice, 2018b).

Adicionalmente, a disputa entre Bolívia e Chile revela como as relações centro-periferia ainda moldam as possibilidades de ação dos Estados sul-americanos no sistema internacional. A Bolívia, país sem litoral, enfrenta obstáculos não apenas geográficos, mas também infraestruturais, logísticos e diplomáticos. Apesar de contar com tratados que garantem o livre trânsito por território chileno (como o Tratado de 1904), o país denuncia entraves práticos, tarifas elevadas e dificuldades no uso autônomo de portos — um problema recorrente para Estados em posição geográfica desvantajosa (Sá Neto e Campos, 2015).

Disputa entre Bolívia e Chile: Acesso ao Mar, Conflitos Históricos e Decisões da Corte Internacional de Justiça 2
Antofagasta Centro-Sur” by fG! is licensed under CC BY-NC 2.0

A mobilização da CIJ pelas duas partes mostra que, embora a judicialização das disputas internacionais represente um avanço institucional importante, ela não substitui a necessidade de vontade política e mecanismos de integração regional mais robustos. A América do Sul carece de instâncias multilaterais eficazes para lidar com conflitos interestatais de longa duração — e, nesse vazio, as disputas acabam sendo transferidas ao plano judicial, o que nem sempre favorece soluções duradouras.

Nesse sentido, o litígio entre Bolívia e Chile deve ser visto como um espelho da fragilidade da governança regional, da persistência de legados coloniais nas fronteiras sul-americanas e da dificuldade em articular diplomacia, direito e memória histórica. A superação definitiva do conflito exige mais do que sentenças: requer imaginação política, compromisso com a integração e reconhecimento mútuo das feridas que moldam o presente.

Conclusão: Justiça Jurídica e Justiça Histórica em Disputa

A trajetória da disputa entre Bolívia e Chile, marcada por guerras, tratados, rupturas diplomáticas e litígios judiciais, é mais do que uma controvérsia territorial: trata-se de um caso exemplar sobre os limites do direito internacional diante de conflitos identitários e geopolíticos históricos.

As duas ações apresentadas à Corte Internacional de Justiça — uma pela Bolívia, reivindicando a obrigação do Chile de negociar um acesso soberano ao mar, e outra pelo Chile, buscando o reconhecimento do Rio Silala como curso de água internacional — representam momentos distintos, mas interligados, dessa longa tensão bilateral. Em ambas as ocasiões, o Chile saiu juridicamente vitorioso, reafirmando a legalidade dos tratados existentes e o seu direito de uso dos recursos naturais compartilhados. Por outro lado, a Bolívia reafirmou sua estratégia de internacionalização da causa marítima e de construção simbólica de soberania.

As decisões da CIJ evidenciam um padrão: o direito internacional tem capacidade limitada para lidar com assimetrias estruturais, traumas históricos e disputas de legitimidade. Embora ofereça estabilidade normativa e previsibilidade jurídica, o sistema não necessariamente responde às expectativas de justiça de Estados historicamente marginalizados, como é o caso da Bolívia.

Ao mesmo tempo, o uso da CIJ como mecanismo de resolução de conflitos reflete um amadurecimento institucional das relações interestatais sul-americanas. O fato de Chile e Bolívia aceitarem submeter suas divergências a um tribunal internacional demonstra o reconhecimento da centralidade do direito nas disputas internacionais, mesmo quando os resultados não atendem integralmente às demandas políticas de uma das partes.

Do ponto de vista geopolítico, os litígios reforçam o papel da América do Sul como um continente onde as fronteiras herdadas dos séculos XIX e XX continuam a gerar instabilidade latente. A Guerra do Pacífico, ainda que distante no tempo, segue viva na imaginação coletiva boliviana, projetando-se nas políticas de Estado, nas manifestações públicas e na diplomacia internacional.

O futuro das relações entre Bolívia e Chile dependerá, portanto, de ações que transcendam os limites formais do contencioso jurídico. Caminhos possíveis incluem o fortalecimento da cooperação regional, o aprimoramento dos mecanismos de integração física e logística, e o desenvolvimento de acordos bilaterais criativos e mutuamente benéficos, como zonas de livre comércio, uso compartilhado de portos e iniciativas conjuntas para o desenvolvimento sustentável da região andino-pacífica.

Além disso, será necessário avançar em uma reconciliação simbólica, baseada na escuta das memórias nacionais e no reconhecimento das desigualdades herdadas. Como ensina o direito internacional contemporâneo, a paz duradoura não se constrói apenas com tratados e sentenças — mas também com gestos de reconhecimento, dignidade e reparação (Sá Neto e Campos, 2015).

Assim, o caso Bolívia-Chile permanece como um laboratório de lições duras, mas valiosas: sobre a persistência do passado, sobre a resiliência dos Estados sem litoral, e sobre a busca — ainda inacabada — por justiça em um sistema internacional que oscila entre a norma e o poder, entre o precedente e a memória.

Referências

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Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor.

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