No dia 24 de outubro de 1970, em segundo turno, Salvador Allende (UP) foi oficialmente eleito presidente do Chile com os votos de mais de 150 parlamentares, o que correspondia a 78,46% do congresso. A confirmação do pleito ocorreu após um primeiro turno apertado, no qual Allende venceu com cerca de 1.075.616 de votos contra 1.036.278 de Jorge Alessandri (PN) e 824.849 de Radomiro Tomic (DC). A estreiteza nos números expressa, em grande medida, uma situação política bastante conturbada, um acirramento da luta de classes, condicionada pela crise do tradicional sistema burguês de dominação do país.
Por decerto, a desestruturação do sistema teve como dois de seus principais sintomas a ascensão e a radicalização das lutas de massas nas cidades e no campo, assim como o aumento das contradições inter burguesas; no entanto, o elemento chave, o qual nos permite efetuar um diagnóstico acertado do processo histórico que desembocou na vitória da Unidad Popular em 1970, reside no deslocamento da pequena-burguesia no decorrer da década de 1960.
Ruy Mauro Marini, intelectual brasileiro e importante militante vinculado ao Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), o principal movimento revolucionário do Chile à época, foi certeiro quando destacou tal elemento. A pequena-burguesia chilena foi um dos cariátides do sistema de dominação burguês consolidado ao final dos anos 1930, o qual se caracterizava pela combinação de “los intereses de la burguesía industrial y la vieja clase terrateniente y financiera sobre la base de una participación mutua en los beneficios del enclave cuprero, controlado por el capital norteamericano, destinando además parte del excedente de allí extraído a la pequeña burguesía urbana” (MARINI, 1976, p. 08). Sua particularidade em relação às classes homólogas na América Latina, o que garante sua maior importância relativa, situa-se no fato de que fora a única, na região, a conseguir manter sua posição conquistada nos processos de extração de excedente e nas camadas da burocracia estatal, enraizando a sua posição como classe para-si na dinâmica da democracia parlamentar burguesa, o que correspondeu, em suma, a um forte apoio ao sistema de dominação vigente.
Na década de 1960, a força da pequena-burguesia expressou-se na eleição de Eduardo Frei, candidato da Democracia Cristiana, em 1964, após os percalços pelos quais passou o sistema durante a segunda metade da década anterior. Frei, amparado nos anseios pequeno-burgueses, não obstante, somente aguçou as contradições que colocavam em xeque o sistema o qual tal classe tanto agiu para a manutenção, ao estimular as fricções inter burguesas mediante o reforço do desenvolvimento dependente. Neste sentido, avança gradativamente o deslocamento do eixo de acumulação de capital desde as indústrias tradicionais, nas quais predominava o controle da média e da pequena-burguesia, até à grande indústria, sobre a qual orbita o desenvolvimento dependente, cujo controle era estabelecido pela conjugação do grande capital nacional e internacional (MARINI, 1976, p. 07). Como pontuou Moniz Bandeira (2011, p. 108), as iniciativas de Frei “en vez de reducir la influencia del capital extranjero y la dependencia económica de Chile, contribuyeron para aumentarlas aun más, en la medida en que subordinaron la política pública, a fin de atraer inversiones extranjeras, a las condiciones impuestas por los Estados Unidos, como la liberalización de las remesas de lucros para el exterior y de los reglamentos de importación, así como ventajas cambiarias”. Como consequência natural do direcionamento da política econômica de Eduardo Frei estava a distribuição regressiva da renda mediante a erosão salarial, elemento fulcral da dialética da dependência, condição esta responsável pela fratura da histórica aliança de classes sobre a qual se erguia o sistema burguês de dominação chileno, a saber, as frações burguesas com a pequena burguesia (MARINI, 1976, p. 49).
A vitória de Allende em 1970 é, neste sentido, fortemente favorecida pelo descompasso gerado no seio do próprio sistema dominante, o qual fez com houvesse a dispersão da pequena burguesia rumo a outros polos políticos, tanto à direita, como no caso do apoio à Jorge Alessandri, quanto à esquerda, com a consolidação da Unidad Popular (UP), gerando um pequeno esvaziamento da frente democrática-cristã.
Certamente, a esta breve análise muito falta, em termos de conteúdo analítico, para que se possa chegar à totalidade histórica chilena do período. Nos carece, sobretudo, uma reflexão maior acerca das contradições entre as frações burguesas e as classes proletárias chilenas e das condições que possibilitaram a criação de uma “vía chilena” para o socialismo, assim como um aprofundamento acerca da influência dos Estados Unidos e de suas empresas transnacionais na política chilena. Buscamos priorizar o conteúdo classista das eleições de 1970 que possibilitou com que Salvador Allende enfim chegasse à presidência, mesmo com uma porcentagem de votos semelhante a que obteve em eleições anteriores nas quais fora derrotado.
Referências
MARINI, Ruy Mauro. El reformismo y la contrarrevolución: Estudios sobre Chile. Ediciones Era, 1976.
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Fórmula para el caos: La caída de Salvador Allende (1970-1973). – 1. ed. – Buenos Aires: Corregidor, 2011.