Na revolta “Mulher, Vida, Liberdade” de 2022–2023 no Irã, os corpos das mulheres se tornaram, literalmente, campos de batalha.
O movimento de protesto eclodiu após a morte sob custódia de Mahsa (Jina) Amini, de 22 anos, presa pela polícia da moralidade do Irã por usar incorretamente o hijab.
Sua morte tornou-se um símbolo poderoso do controle patriarcal do governo sobre os corpos das mulheres e incendiou protestos que expuseram o uso da violência sexual como arma de repressão pelo regime.
Testemunhos de sobreviventes, compartilhados apesar do estigma e do medo, revelaram abusos aterrorizantes: mulheres manifestantes foram espancadas, agredidas sexualmente, estupradas (inclusive em grupo e com objetos), despidas e torturadas durante as prisões, transferências e detenções em locais oficiais e não oficiais, e durante interrogatórios.
Esses não foram atos isolados, mas técnicas calculadas para punir a dissidência e instaurar o terror.
Marcar, punir, controlar mulheres
Um dos testemunhos mais assustadores é de uma jovem detida durante os protestos:
“Minhas amigas e eu tiramos o véu em público e estávamos gritando palavras de ordem. Nunca me passou pela cabeça que as forças de segurança nos prenderiam… Desde o momento em que fomos presas, eles nos espancaram violentamente… Disseram: ‘Aqui não há Deus. Nós somos o seu Deus.’”
Ela foi posteriormente submetida a um violento estupro coletivo.
O governo iraniano aparentemente vê os corpos das mulheres como territórios a serem marcados, disciplinados e punidos. Sua ideologia patriarcal reduz as mulheres a portadoras da honra familiar e da pureza religiosa, legitimando o controle estatal sobre sua aparência, comportamento e movimentação.
Como teorizou a feminista materialista francesa Colette Guillaumin com o conceito de “sexagem”, sistemas patriarcais reduzem as mulheres a “objetos naturais” — seres cujos corpos, tempo e sexualidade são apropriados e controlados. Nicole-Claude Mathieu também destacou como essa apropriação opera em diversos contextos de dominação.
No Irã, essas análises ajudam a explicar como o Estado instrumentaliza os corpos das mulheres como símbolos de dominação ideológica e como recursos a serem regulados e explorados. Cobrir ou descobrir as mulheres à força, como argumentou Guillaumin, simboliza a posse pública de seus corpos, transformando sua visibilidade e autonomia em objetos de controle estatal.
A política da violência sexual
O Estado iraniano parece perceber as mulheres sem véu não apenas como cidadãs desobedientes, mas como corpos que escaparam do controle e recusaram o status designado de posse.
Por essa transgressão, a punição visa aniquilá-las: por meio da humilhação, da tortura e do estupro. Relatos da mídia indicam que as forças de segurança têm como alvo deliberado os olhos e genitais das manifestantes, o que exemplifica ainda mais como as mulheres são reduzidas a meros objetos sexuais e reprodutivos.
Essa violência direcionada expõe como, aos olhos das autoridades, a identidade das mulheres é brutalmente reduzida a seus rostos e genitais — símbolos de sua visibilidade e sexualidade.
Longe de serem atos isolados, os estupros e a violência sexual cometidos por forças do Estado iraniano durante a revolta “Mulher, Vida, Liberdade” encarnam o que a teórica feminista Catharine MacKinnon define como um “sistema de terrorismo sexual”, no qual a violência sexual não é nem privada nem acidental, mas um instrumento metódico de dominação política.
O estupro permite às autoridades disciplinar as mulheres que se opuseram, humilhá-las e reafirmar o controle sobre aquelas que ousaram reivindicar seus corpos e vozes.
Estigma, silêncio e abandono jurídico
Mas a violência sexual não termina com o ato em si. Suas consequências deixam cicatrizes profundas e duradouras na vida das sobreviventes.
No Irã, sobreviventes de estupro enfrentam não apenas trauma, mas também exclusão social, estigma e abandono judicial. O sistema jurídico iraniano, que define estupro de maneira restrita sob o conceito de “zina” (fornicação), frequentemente pune a vítima caso ela não consiga apresentar quatro testemunhas masculinas. Isso costuma silenciar as sobreviventes.
Como declarou outra sobrevivente, entrevistada pela Anistia Internacional:
“Eu nunca mais serei a mesma pessoa… Mas espero que meu testemunho traga justiça, e não só para mim… talvez possamos evitar que eventos tão amargos se repitam no futuro.”
A obsessão do governo iraniano com o controle das mulheres vai além de seus corpos e chega aos sistemas de vigilância. Em 2025, autoridades de Teerã implantaram 15 mil novas câmeras de vigilância com tecnologia de IA, além de drones e sistemas de reconhecimento facial, explicitamente para fazer cumprir as leis do hijab obrigatório.
No Irã, o uso do véu não é apenas religioso, mas profundamente político — um sinal público de submissão ao domínio patriarcal.
Enquanto isso, as execuções no Irã dispararam para níveis alarmantes, com pelo menos 972 pessoas executadas em 2024, o maior número em oito anos. Entre os alvos estão mulheres ativistas, especialmente de minorias étnicas, enfrentando sentenças de morte por sua resistência.
O relatório de 2025 da Missão de Apuração de Fatos da ONU destaca os casos em andamento de Pakhshan Azizi, Sharifeh Mohammadi e Varisheh Moradi, todas condenadas à morte.
Seus casos, junto com o crescimento vertiginoso das execuções no Irã, revelam um padrão aterrorizante de feminicídio de Estado: a execução de mulheres que ousam lutar por justiça de gênero e direitos humanos.
Responsabilidade internacional
Esses não são assuntos internos do Irã — são crimes contra a humanidade.
Como nos lembra MacKinnon, a violência sexual não é privada: é uma arma política e uma violação dos direitos civis. O mundo deve agir impondo sanções direcionadas aos perpetradores, oferecendo asilo às sobreviventes e apoiando os movimentos feministas iranianos que exigem justiça.
Permitir que esses crimes fiquem impunes é entregar os corpos das mulheres à impunidade. As mulheres iranianas demonstraram uma coragem extraordinária. A resposta internacional deve corresponder à sua bravura com ações concretas.
Texto traduzido do artigo How Iran’s government has weaponized sexual violence against women who dare to resist, de Mina Fakhravar publicado por The Conversation sob a licença Creative Commons Attribution 3.0. Leia o original em: The Conversation.