O término das hostilidades nos campos de batalha da Grande Guerra encerrou-se no dia 11 de novembro de 1918 com o armistício assinado junto ao Império Alemão de Guilherme II.
Entretanto, a guerra mudou por completo não somente o cenário europeu onde a maior parte dos combates foram deflagrados como também alterou por completo a conjectura internacional e produziu um novo cenário: instável, caótico e turbulento. Os impérios seculares, ou melhor, as Potências Centrais que perduraram anos e se consolidaram com o status quo de grande potência — Império Alemão, Império Austro-Húngaro, Império Russo e o Império Otomano — desmoronaram após a Grande Guerra(HOBSBAWM, 1995, p. 30). As potências vitoriosas da Tríplice Entente, sobretudo Grã-Bretanha e França, também sofreram um desgaste significativo e permanente em seu poder quando se comparadas ao período pré-1914. Por outro lado, os Estados Unidos da América e o Japão ascendem como novos players internacionais relevantes e potências regionais no início do século XX.
Portanto, para se compreender o cenário pós-Primeira Guerra é necessário avaliar primeiro qual foram as principais variáveis cuja mesma afetou os envolvidos e suas reverberações. Primeiramente, os índices demográficos. É importante ressaltar o quão brutal foi a Grande Guerra se compararmos o número de vítimas com outras guerras anteriores a ela. Segundo Hobsbawm (1995, p. 26)
[…] as duas guerras mundiais […] Cada uma delas matou mais de 1 milhão de pessoas em combate. A maior guerra internacional documentada do século XIX pós-napoleônico, entre Prússia-Alemanha e França, em 1870-1, matou talvez 150 mil pessoas uma ordem de magnitude mais ou menos comparável às mortes da Guerra do Chaco, de 1932-5, entre Bolívia (pop. c. 3 milhões) e Paraguai (pop. c. 1,4 milhão). Em suma, 1914 inaugura a era do massacre (Singer, 1972, pp. 66 e 131).
Além disso, há dados de alguns dos Estados combatentes que mostram como a morte foi produzida em escala industrial como nunca antes vista na história. Os EUA entrando no conflito apenas em 1917 — um ano antes do término do mesmo — teve uma perda de 116 mil homens; franceses, 1,6 milhão; britânicos, 800 mil; e alemães, 1,8 milhão (HOBSBAWM, 1995, p. 28).
Em segundo lugar: as rivalidades políticas. É algo notório que algumas das explicações para o início da Primeira Guerra Mundial para além da série de alianças mútuas e a paz armada, sejam as rivalidades políticas. Afinal, o sentimento de revanchismo era pujante entre franceses após o fim da Guerra Franco-Prussiana, visto quão desastroso fora para a França o resultado dessa guerra perante o Império Alemão. Segundo Stancik (2013, p.224):
[A Guerra] Franco-Prussiana resultou não apenas na unificação da Alemanha, que se afirmou como a grande potência continental europeia, mas também em pesadas indenizações a serem pagas pela França, que perdeu ainda os territórios da Alsácia e da Lorena. O desejo de vingança diante da humilhação sofrida passou a ser alimentado desde então, tendendo a impregnar a política, a cultura, o imaginário coletivo, portanto, o cotidiano do povo francês.
Tal revanchismo que causara em partes a Grande Guerra daria vida também a sua continuação mais mortal e retumbante: a Segunda Guerra Mundial.
E um último fator — antes de analisar as consequências advindas da Conferência de Paris (1919) — é a construção da opinião pública a respeito do fim de todas as guerras uma vez que se viram as atrocidades e brutalidade nos campos de batalha, construindo, e transplantando, o utopismo e a Belle Époque do séc. XIX ao séc. XX para garantir algum tipo de alicerce e/ou base sólido na mente das pessoas acerca dessa tão imprevisível realidade que agora se deparavam no novo século (CARR, 2001, p. 38). Um dos expoentes do pensamento utópico e convicto de que a opinião pública era infalível que também esteve presente como um dos destaques das potências ascendentes no pós-Primeira Guerra era o presidente americano Woodrow Wilson. Todos esses fatores além de influenciarem a guerra também influenciaram em maior ou menor medida o pós-guerra e as décadas desastrosas de 1920 e 1930.
A Conferência de Paz Paris (1919) reuniu os vencedores da Primeira Guerra Mundial no que acabara se transformando não em acordos de paz, mas em pazes punitivas para com os vencidos. Foram acordos que não foram nem ao menos discutidos com os vencidos e imputaram toda a causa moral da guerra sobre os mesmos de modo a produzir efeitos sobre a opinião pública e o principal angariar todas as vantagens possíveis de seus oponentes, excluindo os do xadrez geopolítico e de poder. Um exemplo claro foi a criação de um cordão sanitário (cordon sanitaire) com a criação de novos Estados Nacionais — Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia — isolando a então Rússia pós-Revolução Russa com um bloco de países anticomunistas (HOBSBAWM, 1995, p.32). Para além disso, o revanchismo francês imputou severas indenizações à Alemanha no Tratado de Versalhes bem como retomou o território da Alsácia-Lorena em uma clara alusão pela derrota na Guerra Franco-Prussiana. Outros tratados foram firmados para as demais Potências Centrais vencidas a saber: Saint-Germain com a Áustria; Trianon com a Hungria; Sèvres com a Turquia; Neuilly com a Bulgária (HOBSBAWM,1995, p. 465).
No Oriente Médio, ainda antes do término da Primeira Guerra Mundial em 1916 fora firmado secretamente o Acordo de Sykes-Picot entre a Grã-Bretanha e a França na hipótese de uma derrota do Império Otomano — que se comprovou — dividindo seus territórios entre as duas potências em mandatos. Esse acordo, entretanto, só veio a público aos EUA devido a um vazamento do governo bolchevique dos documentos do antigo czar e não pelos seus próprios aliados, gerando irritação ao presidente Wilson e indo em contramão aos postulados dos 14 pontos de Wilson (NEILBERG, 2019, p. 18). Além disso, outras complicações surgiram através da não aceitação do Tratado de Sèvres e consequentes embates entre as forças locais e as mandatárias — inclusive com repercussões até hoje em certas regiões do Oriente Médio.
A Alemanha e a Rússia de Lênin encontravam-se excluídas da economia europeia com graves dificuldades econômicas: a primeira devido as indenizações excessivas e a consequente desvalorização de sua moeda — algo que ficará ainda mais notável com a Grande Depressão de 1929 —; e a segunda devido ao processo revolucionário e posterior Guerra Civil. A Alemanha constituía elemento central para estabilização da Europa pós-guerra como nos alerta Hobsbawm (1995, p. 31):
Se a Alemanha não fosse reintegrada na economia européia, isto é, se não se reconhecesse e aceitasse o peso econômico do país dentro dessa economia, não poderia haver estabilidade. Mas essa era a última consideração na mente dos que tinham lutado para eliminar a Alemanha.
O Império Austro-Húngaro desmembrava-se em Estados Multinacionais, como: Iugoslávia e Tchecoslováquia; além de uma grande porção de seu território ser cedida à Romênia; e, por fim, separando o que viria ser Áustria e a Hungria. O Império Russo cedia espaço à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas com seu espaço geográfico reduzido devido ao acordo de Brest-Litovsk em 3 de março de 1918 firmado ainda com as Potências Centrais (BURIGANA, 2014, p.47).
Para além das significativas perdas territoriais e de um profundo isolamento realizado para com os vencidos pelos vencedores há a criação da Liga das Nações. Essa organização fora fundada com base nos 14 pontos de Woodrow Wilson que via nela uma alternativa as armas e ao confronto direto através da negociação e diálogo entre as partes litigantes. Todavia, tais ideais e pensamentos não refletiam a realidade política da época como bem elucida Carr (2001, p. 39):
Quando as teorias da democracia liberal foram transplantadas, por um processo puramente intelectual, a um período e a países cujo estágio de desenvolvimento e cujas necessidades práticas eram tremendamente diferentes dos da Europa ocidental no século dezenove, esterilidade e desilusão foram a sequela inevitável
E continua “As democracias liberais espalhadas pelo mundo, devido ao acordo de paz de 1919, foram o produto da teoria abstrata, não lançaram raízes no solo e rapidamente murcharam” (CARR, 2001, p.39). De fato, a Liga das Nações não logrou êxito algum em prevenir confrontos nem mesmo tomar as medidas necessárias quando os mesmos aconteceram — como a invasão japonesa à Manchúria em 1932 — acreditando que tão somente a coerção moral e a opinião pública mundial seriam mais que suficiente para conter quaisquer ímpetos contra o “correto” (CARR, 2001, p. 49).
Em um mundo fragilizado e instável por um confronto de proporções incomensuráveis nunca antes vistas na história com um desfecho punitivo e revanchista dado aos vencidos, aliados a exclusão dos mesmos do campo econômico e político internacional junto da perda de territórios somente plantaram as sementes para outra guerra e para a ascensão de extremismos que viriam a nascer na década de 1930. Como Hobsbawm (1995, p. 34) ressalta “Qualquer pequena chance que tivesse a paz foi torpedeada pela recusa das potências vitoriosas a reintegrar as vencidas”.
Desse modo fica perceptível a catástrofe que fora a Grande Guerra e os impactos duradouros da mesma marcando transformações geográficas, políticas, econômicas, sociais e mentais para todos os envolvidos no conflito direta ou indiretamente. A Grande Guerra marca peremptoriamente o fim de uma era e o começo do turbulento, violento e instável século XX.
Referências Bibliográficas
BURIGANA, R. A Grande Guerra: a Primeira Guerra Mundial (1914-2014), Evento e Memória. História Unicap. [S. l.], v. 1, n. 1, p. p. 41–55, 2014. DOI: 10.25247/hu.2014.v1n1.pp. 41-55. Disponível em: https://www1.unicap.br/ojs/index.php/historia/article/view/435. Acesso em: 30 out. 2023.
CARR, Edward Hallet. Vinte Anos de Crise: 1919-1939. Uma Introdução ao Estudo das Relações Internacionais. 2° ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2°ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MUNDO. Veja como a Primeira Guerra mudou o mapa da Europa. Folha de São Paulo. Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/mundo/2008/11/466294-veja-como-a-primeira-guerra-mudou-o-mapa-da-europa.shtml. Acesso em: 5 nov. 2023.
NEILBERG, Michael S. The Inquiry:An Experiment with Fourteen Points. Despojos de Guerra: as Consequências e Sequelas da Primeira Guerra Mundial. Lisboa, nº34, p. 13-23, outubro, 2019. Disponível em: https://www.idn.gov.pt/pt/publicacoes/idncadernos/Documents/Texto%20integral/idncadernos_34.pdf. Acesso em: 1 nov. 2023.
STANCIK, Marco Antonio. Imagens sentimentais, mensagens belicistas: o imaginário francês em postais pré Grande Guerra (1914-1918). Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.36, n.2, p. 219-244, jul./dez. 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1809-58442013000200011. Acesso em: 8 nov. 2023.