Há alguns meses nos perguntávamos se a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos poderia representar uma ameaça real para a democracia americana.
Vários indícios sugeriam que sim. Em 2020, Trump não aceitou sua derrota eleitoral. E não se tratou apenas de declarações retóricas: ele tentou subverter o resultado por meio de ações concretas, pressionando e ameaçando funcionários públicos para que não certificassem os resultados. Quando essa via falhou, incitou uma insurreição popular que culminou no ataque ao Capitólio.
Posteriormente, na campanha de 2024, anunciou que, se vencesse, perseguiria seus inimigos políticos, uma ameaça sem precedentes em uma democracia onde a estabilidade depende do consentimento dos perdedores e de que a derrota não implique custos excessivos.
Portanto, mesmo antes de sua vitória em 2024, já havia sinais claros de que Trump poderia representar um risco para a ordem democrática, mesmo em sua versão mínima: aceitar os resultados eleitorais.
O governo de Trump é democrático?
Esses indícios se confirmaram após cem dias de governo? Para avaliar, é importante precisar que a definição padrão de democracia não inclui apenas a realização de eleições, mas também a proteção dos direitos civis e políticos e o Estado de direito.
Embora o conhecimento convencional frequentemente associe a democracia ao governo da maioria, ela não é simplesmente um sistema que permite que as maiorias governem. É também um sistema que impõe limites ao poder da maioria. Esta não pode violar os direitos das minorias nem transgredir a lei, que existe, entre outras coisas, para garantir esses direitos.
Os limites institucionais ao poder da maioria se concretizam no que se conhece como “instituições contramajoritárias”, chamadas assim justamente porque têm a capacidade de bloquear decisões apoiadas por uma maioria se estas violarem os princípios constitucionais ou os direitos fundamentais.
Entre essas instituições destacam-se os tribunais de justiça, e em particular o de mais alto escalão — o Tribunal Constitucional ou a Suprema Corte —, encarregado de zelar pelo cumprimento da Constituição.
Também cumprem um papel essencial os meios de comunicação, na medida em que podem denunciar e tornar visíveis os abusos de poder. O papel do Congresso como salvaguarda democrática é mais ambivalente: com a crescente disciplina partidária, evoluiu de ser um poder fiscalizador para um cada vez mais subordinado ao executivo.
Pois bem, nestes primeiros cem dias — que se completarão em 30 de abril —, Donald Trump tem se comportado como se não existissem limites ao seu poder. Ele atropelou direitos básicos, transgrediu normas e realizou ações de constitucionalidade duvidosa. Entre outras coisas, ordenou deportações em massa de imigrantes em situação irregular, acessou bancos de dados com informações protegidas de funcionários federais e demitiu arbitrariamente funcionários públicos. Também desmantelou agências-chave como a USAID, colocou pessoas leais — e de competência duvidosa — à frente de instituições públicas e ameaçou escritórios de advocacia com processos criminais contra eles.
Além disso, perseguiu e ameaçou rivais políticos, deslegitimou meios de comunicação, atacou universidades e desobedeceu ordens de juízes federais e estaduais.
Tudo isso não só é inédito em uma democracia que se acreditava sólida — uma das mais estáveis do mundo, precisamente pela força de suas instituições e meios independentes —, mas também reproduz padrões observados em outros países que passaram de democracias plenas para regimes autoritários competitivos, como a Hungria de Orbán ou a Turquia de Erdoğan.
Para qualquer observador familiarizado com a política americana e seu sistema de “freios e contrapesos” — sistema que zela pela separação de poderes característica do Estado de direito —, a perplexidade é enorme. Onde ficaram esses contrapesos institucionais tão sólidos e elogiados? Acreditávamos que eram robustos, mas Trump demonstrou que sua eficácia dependia, em última instância, da vontade política de respeitá-los.
Essa constatação leva a uma reflexão mais profunda. Primeiro, não existem verdadeiros poderes contramajoritários capazes de frear efetivamente um líder popular se seus abusos contam com o apoio da maioria. Na prática, as instituições contramajoritárias só podem se impor aos governantes se estes o aceitarem. A capacidade de resistência dessas instituições está condicionada ao consentimento daqueles que detêm o poder político e contam com legitimidade popular.
Segundo, o único freio real ao poder dos governantes é exercido pela cidadania, pelo menos naqueles sistemas onde ainda se pode decidir nas urnas. Essa ideia remete ao artigo clássico de Barry Weingast, que propõe que o respeito à lei e o equilíbrio democrático só são possíveis se os governantes anteciparem uma reação cidadã diante de qualquer abuso.
Em outras palavras, o cumprimento das normas depende de um equilíbrio autoimposto: os governantes obedecem porque temem que a cidadania se revolte se não o fizerem. Mas se essa ameaça deixa de ser crível, os incentivos para respeitar as regras também desaparecem.
O problema dessa lógica é que a cidadania tem limitações importantes para exercer um controle efetivo sobre o poder. Além disso, os governantes podem adotar estratégias deliberadas para dividi-la. Por exemplo, podem fazer com que seus abusos beneficiem uma parte significativa do eleitorado — seja por meio da distribuição de rendas, privilégios ou apelando a identidades polarizadoras —, garantindo a lealdade desse segmento e reduzindo assim o risco de uma revolta generalizada. Nesse cenário, a ameaça se dilui, e com ela, o principal freio ao poder.
Possíveis cenários para frear sua autoridade
Disso tudo deriva uma conclusão inquietante: a única forma de frear a deriva autoritária de Trump é que sua base de apoio se erosione. E isso poderia acontecer, em teoria, sob dois cenários principais.
O primeiro, um confronto com a Suprema Corte que implique uma desobediência aberta por parte de Trump. Mas, nesse caso, cabe perguntar: o que fará a cidadania se Trump ignorar uma decisão do tribunal? Se mobilizará? Será suficiente? Duvidoso. Não só porque os temas institucionais estão longe das preocupações cotidianas das pessoas.
Também porque a distância oferece uma clara vantagem a Trump para construir uma narrativa que mantenha seus eleitores convencidos da culpa do Tribunal. Até agora, os seguidores de Trump demonstraram um apoio incondicional e uma confiança cega em seu líder. Nada indica que desta vez seja diferente.
O segundo cenário seria uma recessão econômica que afete diretamente sua base eleitoral. O “voto econômico” poderia ter um efeito maior, já que o bolso continua sendo um fator decisivo. No entanto, há um risco: quando os efeitos econômicos se materializarem, Trump poderia já ter consolidado o controle das instituições-chave — judiciário, forças de segurança, aparato estatal — e estar disposto a usá-las para neutralizar qualquer resistência.
Em conclusão, é pouco provável que, a curto ou médio prazo, ocorra uma erosão significativa na base eleitoral de Trump que limite seu poder. Um conflito com a Suprema Corte dificilmente minaria seu apoio ou provocaria uma fratura entre seus eleitores. Uma recessão econômica poderia ter um impacto maior, mas seus efeitos demorariam a se manifestar e, quando isso acontecer, talvez as próximas eleições já não sejam uma preocupação para Trump.
Texto traduzido do artigo Los 100 primeros días del poder sin límites de Trump tienen en vilo al mundo, de Ana Sofía Cardenal Izquierdo publicado por The Conversation sob a licença Creative Commons Attribution 3.0. Leia o original em: The Conversation.