O reconhecimento do Estado da Palestina volta ao centro da agenda internacional em 2025, após o anúncio do Reino Unido, França, Canadá, Austrália e Portugal de que passam a tratá-lo formalmente como sujeito de direito internacional. Esse movimento amplia para mais de 150 o número de Estados que já reconheceram a Palestina, consolidando um processo que se desenrola desde a Declaração de Independência proclamada pela OLP em Argel, em 1988. A novidade está no peso dos atores: são as primeiras potências do G7, membros permanentes do Conselho de Segurança e países historicamente alinhados a Israel que agora adotam essa posição.
Sumário
O tema exige análise crítica porque não se trata apenas de uma decisão jurídica ou administrativa, mas de uma mudança na correlação diplomática de forças em torno do conflito israelo-palestino. O reconhecimento por potências ocidentais ocorre em meio à continuidade da ocupação de territórios palestinos, à devastação da Faixa de Gaza e à paralisia de negociações substantivas desde 2014. Nesse cenário, a diplomacia ganha função simbólica e estratégica: reconhecer a Palestina é, simultaneamente, afirmar o compromisso com a solução de dois Estados e enviar uma mensagem de rejeição a qualquer alternativa que implique anexação permanente ou exclusão da identidade nacional palestina.
Há ainda uma dimensão prática incontornável. O reconhecimento abre caminho para que a Palestina estabeleça relações diplomáticas plenas, tenha acesso a acordos bilaterais e fortaleça sua presença em organizações internacionais. Contudo, não resolve os impasses centrais do processo de paz: fronteiras definitivas, status de Jerusalém, direito de retorno dos refugiados e segurança de Israel. Nesse sentido, o reconhecimento é um ato político de grande densidade simbólica, mas com eficácia limitada para alterar, por si só, as condições materiais da soberania palestina.
Por fim, compreender a atual onda de reconhecimentos exige inseri-la em perspectiva histórica e teórica. Desde 1988, a Palestina vem acumulando apoios em ondas sucessivas, inicialmente no mundo árabe e socialista, depois na África, América Latina e mais recentemente na Europa. Do ponto de vista do direito internacional, a controvérsia sobre a condição de Estado persiste: enquanto a teoria declaratória sustenta que basta cumprir os critérios de Montevidéu (população, território, governo e capacidade de relações exteriores), a teoria constitutiva enfatiza que é o reconhecimento que transforma uma entidade em sujeito de direito. A Palestina se encontra justamente nessa encruzilhada, parcialmente cumprindo os requisitos objetivos, mas cada vez mais legitimada pelo reconhecimento político-diplomático.
Assim, analisar o reconhecimento da Palestina hoje é examinar não apenas a evolução de uma causa nacional, mas também as tensões mais amplas das Relações Internacionais contemporâneas: a disputa por legitimidade, o enfraquecimento da centralidade norte-americana na mediação do conflito e a busca de novos arranjos diplomáticos liderados por coalizões diversas, como a iniciativa franco-saudita de 2025.

2. Contexto histórico do reconhecimento da Palestina
O reconhecimento da Palestina como Estado é um processo gradual e marcado por diferentes ondas diplomáticas, refletindo tanto dinâmicas regionais quanto mudanças no equilíbrio das Relações Internacionais.
2.1. A proclamação de 1988 e os primeiros reconhecimentos
Em 15 de novembro de 1988, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) proclamou em Argel a criação do Estado da Palestina. A iniciativa ocorreu no auge da Primeira Intifada e buscava deslocar a luta palestina para o campo diplomático. Argélia foi o primeiro país a reconhecer, seguida por cerca de cinquenta outros – sobretudo membros da Liga Árabe, países do bloco socialista e diversas nações africanas e asiáticas. Essa primeira onda consolidou a identidade palestina como sujeito político no sistema internacional, mas ainda restrita a aliados históricos da causa árabe.
2.2. A segunda onda (2010–2011): América Latina
Entre 2010 e 2011, uma nova etapa ampliou o alcance diplomático da Palestina. A maioria dos países da América Central e da América do Sul anunciou reconhecimento formal. O contexto era marcado pela crise das negociações de Oslo e pela ascensão de governos latino-americanos favoráveis a uma agenda de integração Sul-Sul. Essa onda deu à Palestina uma base sólida fora do eixo árabe e europeu, reforçando sua legitimidade no campo internacional.
2.3. A terceira onda (2012 em diante): organizações internacionais e a ONU
O momento mais expressivo em termos multilaterais ocorreu em 2012, quando a Assembleia Geral da ONU aprovou a admissão da Palestina como Estado observador não-membro (138 votos a favor, 9 contra e 41 abstenções). No mesmo período, a Palestina ampliou sua presença institucional: ingresso na UNESCO em 2011, adesão ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional em 2015 e participação em outras agências, como a Organização para a Proibição de Armas Químicas em 2018.
Essa fase combinou reconhecimento bilateral com integração institucional, na tentativa de construir soberania jurídica mesmo sem controle territorial pleno.
2.4. A quarta onda (2024–2025): potências ocidentais
A etapa mais recente tem caráter qualitativamente distinto. Em 2024, Espanha, Irlanda e Noruega reconheceram a Palestina, seguidas de Eslovênia, Armênia e México. Já em 2025, o movimento ganhou densidade inédita com a adesão de Reino Unido, França, Canadá, Austrália e Portugal, e a expectativa de que Bélgica, Luxemburgo, Malta, Andorra e San Marino sigam a mesma linha.
Esse avanço é simbólico por três razões:
- envolve membros permanentes do Conselho de Segurança (Reino Unido e França);
- inclui países do G7 (Reino Unido, França e Canadá), até então resistentes;
- conecta-se à iniciativa franco-saudita que resultou na Declaração de Nova Iorque (2025), reafirmando a centralidade da solução de dois Estados e excluindo o Hamas do processo de negociação.
🇵🇸 🇺🇳 “Let’s be clear: statehood for the Palestinians is a right not a reward.” pic.twitter.com/UpPMxkSg95
— State of Palestine (@Palestine_UN) September 22, 2025
2.5. Comparação com Israel
Atualmente, a Palestina soma mais de 150 reconhecimentos formais, enquanto Israel conta com 165 Estados-membros da ONU. A diferença numérica é pequena, mas politicamente significativa: o reconhecimento de Israel é praticamente universal, ao passo que o da Palestina permanece condicionado pelas resistências de atores centrais, como Estados Unidos, Alemanha, Itália e Japão, que defendem que a criação de um Estado palestino só deve ocorrer via negociação direta entre as partes.
3. A Palestina e o Direito Internacional: Estado e Reconhecimento
A questão palestina sempre esteve no centro de debates sobre o que constitui um Estado no Direito Internacional e até que ponto o reconhecimento externo define essa condição.
3.1. Os critérios de Montevidéu
A referência clássica para avaliar a existência de um Estado é a Convenção de Montevidéu de 1933, que elenca quatro elementos básicos:
- população permanente;
- território definido;
- governo efetivo;
- capacidade de manter relações com outros Estados.
Esses requisitos se tornaram padrão de análise em debates jurídicos (Crawford, 2006). No entanto, a aplicação desses critérios ao caso palestino revela ambiguidades. Há uma população palestina claramente identificável e instituições de governo (Autoridade Palestina), mas o território permanece ocupado militarmente por Israel, e a capacidade de relações internacionais depende em grande medida do reconhecimento externo.
3.2. Teoria declaratória e teoria constitutiva
O debate acadêmico costuma opor duas grandes visões:
- Teoria declaratória: sustenta que basta o cumprimento dos critérios objetivos de Montevidéu para que um Estado exista de direito. O reconhecimento por outros países seria apenas o reconhecimento de um fato já estabelecido (Shaw, 2017).
- Teoria constitutiva: afirma que um Estado só se torna sujeito de direito internacional quando é reconhecido por outros. Assim, sem reconhecimento, não haveria personalidade jurídica plena (Worster, 2009).
A prática internacional, no entanto, mostra que nenhuma das teorias é suficiente isoladamente. Estados que cumprem os critérios podem permanecer sem legitimidade internacional, como o caso de Somaliland; por outro lado, entidades com reconhecimento amplo, como a Palestina, conseguem exercer direitos internacionais mesmo sem plena soberania territorial.
3.3. Reconhecimento como ato político e jurídico
Na prática contemporânea, o reconhecimento tem caráter essencialmente político, mas com efeitos jurídicos concretos:
- permite a troca de embaixadas e acordos bilaterais;
- abre caminho para adesão a organizações internacionais;
- garante imunidades e prerrogativas a autoridades estatais.
No caso palestino, cada reconhecimento acrescenta um peso simbólico à luta pela autodeterminação e um efeito prático de ampliação de sua capacidade de atuar no sistema internacional. Ao mesmo tempo, a ausência de consenso universal limita sua soberania e mantém o país em condição de “Estado sob disputa”.
3.4. O dilema palestino
A Palestina cumpre parcialmente os critérios objetivos de Estado: possui população permanente, instituições de governo e uma identidade nacional consolidada. No entanto, carece de pleno controle territorial e militar, o que alimenta dúvidas jurídicas sobre sua independência efetiva (Pitta, 2018). Por outro lado, o reconhecimento por mais de 150 Estados reforça a tese constitutiva de que, independentemente das limitações, a comunidade internacional progressivamente confere à Palestina o status de Estado.
4. A trajetória da Palestina nas organizações internacionais
O caminho da Palestina rumo à condição de Estado também se reflete em sua integração gradual a organismos internacionais. Cada passo nesse sentido amplia sua legitimidade e reforça a estratégia de transformar reconhecimentos bilaterais em reconhecimento institucional.
4.1. Primeiros avanços e a UNESCO
O primeiro grande marco ocorreu em 2011, quando a Palestina foi admitida como membro pleno da UNESCO. O ato teve repercussões imediatas: os Estados Unidos suspenderam suas contribuições financeiras à organização, como determina sua legislação interna ao admitir um Estado não reconhecido oficialmente por Washington. A medida antecipou o impasse que se repetiria em outras instâncias multilaterais: para uns, a Palestina deveria ser reconhecida como Estado soberano; para outros, a decisão só caberia após negociações diretas com Israel.
4.2. Status na ONU
Em 29 de novembro de 2012, a Assembleia Geral da ONU aprovou, por 138 votos a favor, 9 contra e 41 abstenções, a resolução que concedeu à Palestina a condição de Estado observador não-membro. Essa mudança de status, embora limitada, representou um reconhecimento político coletivo de sua condição estatal. Desde então, a Palestina passou a participar ativamente dos trabalhos da Assembleia, apresentar resoluções e aderir a tratados internacionais, mesmo sem direito de voto pleno.
4.3. Adesão ao sistema de justiça internacional
Em 2015, a Palestina tornou-se Estado parte do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI). Isso lhe deu a possibilidade de apresentar casos de crimes de guerra e crimes contra a humanidade relacionados à ocupação e ao conflito com Israel. A decisão ampliou o debate sobre as responsabilidades jurídicas de ambos os lados e elevou a disputa a um patamar de judicialização internacional do conflito.
Além do TPI, a Palestina se aproximou de outras instituições ligadas à justiça internacional: em 2018, tornou-se membro da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ); já no âmbito da ONU, mantém status de observador em agências como a OMS e a UNCTAD.
4.4. Os limites do reconhecimento institucional
Apesar dos avanços, a Palestina ainda não obteve assento pleno nas Nações Unidas. A razão está na exigência de que a admissão de novos Estados seja aprovada pelo Conselho de Segurança. O apoio majoritário na Assembleia Geral não foi suficiente para superar o veto norte-americano, utilizado em diferentes momentos para bloquear a candidatura palestina. Esse impasse ilustra como o reconhecimento institucional depende não apenas da legitimidade política, mas também da correlação de forças entre grandes potências.
5. O significado político dos reconhecimentos recentes
A onda de reconhecimentos de 2024–2025 não inaugura o processo, mas marca uma nova etapa. Desde 1988, foram sobretudo países do Sul Global — árabes, africanos, latino-americanos e asiáticos — que garantiram legitimidade diplomática à Palestina, com destaque para a onda latino-americana de 2010–2011, liderada por países como o Brasil. Esses reconhecimentos foram decisivos para manter viva a causa palestina no sistema internacional.
O que ocorre agora é distinto: diante da tragédia humanitária em Gaza e da paralisia do processo de paz, potências do Norte — como Reino Unido, França e Canadá — passam, ainda que tardiamente, a somar sua voz. A adesão desses Estados não substitui, mas reconhece a centralidade das iniciativas anteriores do Sul e amplia a pressão sobre Israel e Estados Unidos, ao trazer para o campo do reconhecimento países até então reticentes.
5.1. O valor simbólico e diplomático
O reconhecimento por Estados historicamente próximos a Israel transmite uma mensagem clara: a solução de dois Estados permanece o único horizonte considerado legítimo para a resolução do conflito. Para a França, por exemplo, o ato foi explicitado como uma “rejeição ao Hamas” e um gesto de confiança na Autoridade Palestina como interlocutora válida. Assim, o reconhecimento não é apenas formal, é também uma tentativa de isolar atores armados e fortalecer a via diplomática.
5.2. O papel dos países do G7 e do Conselho de Segurança
O ingresso do Reino Unido, França e Canadá no rol de Estados que reconhecem a Palestina possui forte impacto sistêmico.
- São os primeiros membros do G7 a fazê-lo, rompendo o consenso de não reconhecimento dentro do grupo.
- Com os reconhecimentos de Reino Unido e França, quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, ao lado de Rússia e China, já reconhecem a Palestina. Apenas os Estados Unidos, agora isolados entre os 5 membros plenos, sustentando uma posição contrária que reforça seu papel como principal fiador de Israel.
Essa alteração cria um novo constrangimento diplomático: cada vez mais, a recusa em reconhecer a Palestina tende a ser vista como exceção, não como regra.
5.3. A iniciativa franco-saudita e a Declaração de Nova Iorque
O contexto dos reconhecimentos de 2025 não pode ser dissociado da Declaração de Nova Iorque, aprovada em setembro pela Assembleia Geral da ONU com 142 votos a favor, 10 contra e 12 abstenções. O documento, fruto de uma conferência co-organizada por França e Arábia Saudita, representou dois movimentos simultâneos: (i) a recomposição de uma maioria internacional em torno da solução de dois Estados e (ii) a exclusão explícita do Hamas como ator político legítimo no processo.
A resolução não é juridicamente vinculante, mas sua densidade política é inegável. O texto condena os ataques de 7 de outubro, exige a libertação de reféns e pede que o Hamas entregue armas e controle administrativo à Autoridade Palestina (AP). Além disso, prevê a possibilidade de uma missão internacional temporária de estabilização em Gaza, o que sinaliza um roteiro operacional: cessar-fogo, transição política e fortalecimento da AP como contraparte.
O resultado do voto explicitou o isolamento de Israel e dos Estados Unidos diante de um consenso que uniu europeus, árabes e grande parte do Sul Global. Cria-se, assim, um novo custo reputacional para governos que insistem em prolongar o conflito sem horizonte político. França e Arábia Saudita emergem como protagonistas dessa engenharia diplomática, abrindo espaço para que reconhecimentos ocidentais, como os de Reino Unido, Canadá e Portugal, deixem de ser gestos isolados e passem a integrar uma estratégia coordenada.
O significado vai além do plano formal. A Declaração de Nova Iorque restaura a centralidade da Autoridade Palestina, redefine os parâmetros de quem deve sentar à mesa de negociações e reposiciona a questão palestina no centro da diplomacia internacional. Em termos jurídicos, não altera o status da Palestina na ONU, mas em termos políticos, estabelece um roteiro verificável e um novo preço para o isolamento.
6. Reações internacionais
O reconhecimento do Estado da Palestina por potências ocidentais provocou reações imediatas e contrastantes entre os principais atores envolvidos no conflito e a comunidade internacional em geral.
6.1. Israel
O governo israelense foi o mais contundente opositor. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu acusou os países que reconheceram a Palestina de “recompensar o terrorismo” e enfraquecer os esforços de libertação dos reféns ainda mantidos em Gaza. Israel insiste que qualquer reconhecimento “prematuro” mina o incentivo para negociações diretas, além de questionar a legitimidade da Autoridade Palestina como parceira de paz. Setores da política israelense chegaram a defender medidas punitivas, como a retenção de receitas fiscais destinadas à Autoridade Palestina, já adotadas em situações anteriores.
6.2. Autoridade Palestina e Hamas
A Autoridade Palestina celebrou os reconhecimentos como vitória diplomática e reforçou a narrativa de que não busca um Estado militarizado, mas sim soberano e reformado. O presidente Mahmoud Abbas anunciou compromisso com reformas políticas, inclusive a realização de eleições previstas para 2026.
Já o Hamas, explicitamente excluído da Declaração de Nova Iorque, viu sua margem de manobra reduzida. O isolamento do grupo é interpretado por potências ocidentais como parte de uma estratégia para fortalecer a Autoridade Palestina como único interlocutor legítimo.
6.3. Estados Unidos
Os Estados Unidos mantiveram sua posição histórica de não reconhecer a Palestina fora de um acordo negociado diretamente com Israel. Washington criticou as decisões europeias e canadenses e anunciou restrições de visto a membros da OLP e da Autoridade Palestina, sob o argumento de que tais gestos “prejudicam as perspectivas de paz”. O contraste é claro: ao mesmo tempo em que a maioria das potências do Conselho de Segurança reconhece a Palestina, os EUA permanecem isolados, mantendo o poder de veto sobre qualquer candidatura palestina à condição de membro pleno da ONU.
6.4. Mundo árabe e organizações regionais
A Liga Árabe e a Organização da Cooperação Islâmica receberam com entusiasmo os novos reconhecimentos, reforçando que o consenso árabe permanece em torno da solução de dois Estados. A Arábia Saudita, copatrocinadora da conferência de 2025, reiterou que sua normalização com Israel só ocorrerá mediante a criação de um Estado palestino viável.
Na África, o apoio também é quase unânime: apenas Eritreia e Camarões ainda não reconheceram a Palestina. A União Africana, como organização, confere status de observador ao Estado palestino e mantém posição firme em defesa de sua autodeterminação.
6.5. Europa e América Latina
Na Europa, a divisão interna da União Europeia se tornou evidente. Se por um lado França, Irlanda, Espanha, Noruega e outros membros defendem o reconhecimento, países como Alemanha, Itália, Hungria e Tchéquia resistem, seja por proximidade com Israel, seja por interpretar que a medida deve ser vinculada a negociações diretas.
Na América Latina, o reconhecimento da Palestina é praticamente consensual desde 2010–2011, reforçado por países como México, que aderiu mais recentemente. A região consolidou-se como aliada histórica da causa palestina no plano diplomático.
7. Implicações estratégicas
O reconhecimento recente da Palestina por potências ocidentais altera incentivos, custos e narrativas em torno do conflito, com efeitos diretos sobre a diplomacia, a segurança e o direito internacional.
7.1. Reconfiguração do jogo diplomático
Ao deslocar o eixo de contenção para pressão por dois Estados, os novos reconhecimentos:
- elevam o custo reputacional de políticas de anexação de facto e de expansão de assentamentos;
- fortalecem a Autoridade Palestina como interlocutora preferencial para reformas institucionais e segurança civil;
- reduzem a assimetria nas mesas de negociação, ao aproximar a condição jurídica palestina do padrão esperado para um sujeito de direito.
Resultado: cria-se um ambiente de constrangimento diplomático para atores que rejeitam a solução de dois Estados sem apresentar alternativa viável.
7.2. Segurança e governança no terreno
O reconhecimento não produz, por si, mudanças militares ou policiais; porém, abre janelas de financiamento e cooperação para:
- reforma da segurança nos territórios ocupados (profissionalização, coordenação civil-policial, controle de armas);
- governança municipal e serviços públicos (água, energia, saúde), mitigando vácuos explorados por grupos armados;
- programas de integridade e eleições sob monitoramento internacional, ampliando a responsividade do aparato estatal.
Esses vetores podem reduzir a violência difusa e aumentar a previsibilidade — condição necessária (ainda que não suficiente) para qualquer cessar-fogo sustentável.
7.3. Efeitos jurídicos e judiciais
No plano contencioso, maior reconhecimento facilita a adesão e o uso de instrumentos internacionais (tratados, cortes, órgãos técnicos). Isso eleva o custo jurídico de violações graves e padroniza expectativas de conduta de todas as partes. Em paralelo, o ativismo judicial sem trilha política pode gerar reações defensivas. O equilíbrio produtivo requer articulação entre pressão jurídica e horizonte negociado (Crawford, 2006).
7.4. Dilemas europeus e transatlânticos
A decisão de França, Reino Unido e Canadá expõe a fratura transatlântica: parte do núcleo ocidental se move por reconhecimento; os EUA mantêm a lógica de “negociações primeiro”. Na prática, isso:
- multiplica vetores de mediação (Paris–Londres–Ottawa, com Arábia Saudita e UE) e relativiza a centralidade exclusiva de Washington;
- obriga a coordenação de calendários: reformas palestinas, garantias de segurança para Israel e passos graduais de normalização regional.
7.5. Impactos regionais
A mensagem captada nas capitais árabes é que há espaço para pacotes integrados: normalização com Israel condicionada a marcos verificáveis rumo à soberania palestina, com garantias de segurança plurilaterais. Esse acoplamento aumenta a alavancagem de Riyadh, Cairo, Amã e Doha para travas de escalada e passos econômicos (corredores logísticos, energia, reconstrução).
7.6. Cenários de médio prazo
- Cenário de convergência controlada: reconhecimentos + reformas da Autoridade Palestina + pacote de segurança/normalização → negociações faseadas sobre fronteiras, Jerusalém e refugiados.
- Cenário de atrito prolongado: reconhecimentos sem reformas ou com escalada no terreno → judicialização intensa e boicotes setoriais, com deterioração humanitária.
- Cenário de reversão: backlash político em capitais-chave → congelamento do reconhecimento prático e retorno à gestão de crise ad hoc.
Ponto-chave: o reconhecimento é alavanca, não solução. Seu efeito depende de engenharia de implementação (sequências, garantias, métricas) e capacidade de governar no terreno.
Conclusão
O reconhecimento da Palestina por potências ocidentais, em 2024–2025, não cria um Estado no terreno, mas muda o campo de possibilidades. Até então, Israel e Estados Unidos conseguiam enquadrar a questão como marginal ou restrita a alianças regionais. Agora, essa posição deixa de ser majoritária e passa a ser defensiva. O isolamento norte-americano no Conselho de Segurança, somado à convergência de europeus, árabes e países do Sul, reorganiza o debate diplomático: quem se opõe à criação de um Estado palestino precisa justificar-se contra uma maioria internacional mais coesa.
O que muda, de fato, é a distribuição de custos e pressões. Israel enfrenta maior desgaste reputacional e riscos crescentes de sanções políticas e econômicas; os Estados Unidos passam a pagar um preço diplomático por vetar o consenso; e a Autoridade Palestina ganha novo espaço de legitimidade para reivindicar governança sobre Gaza e Cisjordânia. Mesmo sem efeito imediato no fim da violência, cada novo reconhecimento estreita a margem de impunidade.
Por outro lado, o reconhecimento não altera a realidade concreta do genocídio em Gaza: mais de 40 mil mortos, dois milhões de pessoas sob bloqueio e risco de fome, destruição sistemática da infraestrutura civil. Tampouco resolve a expansão de assentamentos na Cisjordânia ou a fragmentação política palestina. Nesse sentido, o reconhecimento funciona mais como alavanca política e moral do que como instrumento direto de cessar-fogo ou reconstrução.
A eficácia, portanto, não está em “criar” a Palestina — que já existe como entidade reconhecida por mais de 150 países —, mas em modificar o equilíbrio diplomático e normativo. O reconhecimento ocidental, ainda que tardio, consolida a ideia de que não haverá paz sem Estado palestino e cria condições para que futuras negociações deixem de ser vistas como concessão e passem a ser tratadas como obrigação internacional.
Referências
- Reuters. UN overwhelmingly endorses two-state solution declaration that condemns Hamas. 13 de setembro de 2025. In: Reuters. Disponível em: https://www.reuters.com/world/middle-east/un-overwhelmingly-endorses-two-state-solution-declaration-that-condemns-hamas-2025-09-12/.
- Press release da ONU. General Assembly Endorses New York Declaration, Charting … 12 de setembro de 2025. United Nations. Disponível em: https://press.un.org/en/2025/ga12707.doc.htm.
- Al Jazeera. UN General Assembly backs two-state push for Israel and Palestine. 12 de setembro de 2025. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2025/9/12/un-general-assembly-backs-two-state-solution-for-israel-and-palestine.
- InfoMoney. Tanto Israel quanto a Palestina têm o direito de existir, diz Lula na ONU. 22 de setembro de 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mundo/tanto-israel-quanto-a-palestina-tem-o-direito-de-existir-diz-lula-na-onu/.
- Poder360. Na ONU, Lula acusa Israel de aniquilar sonho de nação Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-governo/lula-critica-tirania-do-veto-na-onu-sobre-questao-palestina/.
Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br