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A insuficiência africana na pandemia

Foto: OMS Etiópia

Por mais que, no primeiro semestre de 2020, os impactos advindos da pandemia de Covid-19 tenham sido catastróficos no âmbito global como um todo, tendo seu epicentro já passado por três continentes (Ásia, Europa e América do Norte, cronologicamente), é notório que os países centrais do Sistema Mundial Moderno, como os Estados Unidos, atual epicentro do vírus, possuem capacidades de combate muito superiores às de Estados pertencentes à periferia, nesta se englobando todo o continente africano. Dados relacionados ao número de respiradores e leitos de UTI disponíveis em diferentes regiões demonstram essa desigualdade, aliando-se a previsões feitas por especialistas a respeito de futuros picos da doença em solo africano, que, caso eventualmente ocorram, gerarão caos e calamidade pública superiores até mesmo aos casos europeu e norte-americano, elevando exponencialmente suas taxas de pobreza e mortalidade. Este tema foi escolhido devido à atual conjuntura internacional, aliada à negligência rotineira do campo para com o continente africano, sendo que, à luz da teoria mencionada, será explicado ao leitor neste ensaio o motivo desta polarização histórica que provavelmente culminará numa catástrofe sem precedentes.

Núcleos Imperiais e Periferias Dependentes na Pandemia

Segundo Anna Roca, epidemiologista pertencente à London School of Hygiene & Tropical Medicine com atuação em Gâmbia, os países africanos se encontram atrasados em todos os aspectos relacionados ao combate à pandemia. Em entrevista à BBC (2020), a especialista cita diversos fatores analíticos e prevê que “o dano colateral esperado na África é muito maior do que na Europa”. Entre os fatores citados por Roca, talvez o maior motivo de um futuro colapso econômico e sanitário na África seja a precariedade dos sistemas de saúde pública de seus países. Em comparação a países centrais, como os do continente europeu, onde medidas de achatamento da curva de contágio foram imediatamente adotadas no intuito de conter a propagação do vírus, a situação africana se mostra mais complexa, pois seu precário sistema de saúde “ficará saturado muito mais cedo do que nesses países” (BBC, 2020).

Esta precariedade dos sistemas de saúde pública se mostra enquanto um fato alarmante quando comparada a países do núcleo. Segundo a BBC (2020), a situação de infraestrutura sanitária de diversos países africanos é crítica. Os equipamentos respiradores e os leitos de UTI talvez sejam os fatores mais determinantes da sobrevivência ou não de um paciente em estado grave diagnosticado com o novo coronavírus, porém, estes estão muito abaixo do necessário em uma eventual mudança de epicentro para o continente africano.

Os dados coletados a respeito da disponibilidade de respiradores nos países da África (BBC, 2020) são estarrecedores, sendo que, quando comparados aos Estados Unidos, que atualmente possui aproximadamente 160 mil respiradores (JHSPH, 2020), os números de República Centro Africana (3 respiradores para 5 milhões de pessoas), Burkina Faso (11 respiradores para 19 milhões de pessoas) e Serra Leoa (18 respiradores para 7,5 milhões de pessoas) apontam uma discrepância estratosférica no tocante ao combate à pandemia, evidenciando a gigantesca deficiência dos sistemas de saúde africanos neste aspecto. Quando relacionada aos leitos de UTI, também em comparação ao núcleo norte-americano, a desigualdade para com países periféricos africanos também se mostra impactante, que vai de mais de 96 mil leitos nos Estados Unidos (SCCM, 2020) para apenas 55 leitos em Uganda, 25 no Malauí, 15 na Somália e simplesmente nenhum leito de UTI existente em Gâmbia (IRC, 2020 apud BBC, 2020).

Mesmo que cada região do continente possua suas respectivas especificidades e fatores que contribuem para o aumento da pobreza e da consequente falta de estrutura de bens públicos, pode-se constatar que uma das maiores causas desta insuficiência em toda a África seja a massiva dependência de exportação de produtos de baixo valor agregado, como matérias primas, para os núcleos do sistema (EL PAÍS, 2020). Para Gilpin (2002, p. 91) “os Estados do núcleo tendem a especializar-se na indústria, enquanto a periferia é relegada à produção de matérias primas”. Este processo é entendido pelo Sistema Mundial Moderno enquanto “uma unidade com uma única divisão do trabalho e muitos sistemas culturais” (WALLERSTEIN, 1974 apud GILPIN, 2002, p. 88) com base na concepção marxista de realidade social, onde a hierarquização internacional presente no sistema culmina numa luta de classes entre os Estados e suas respectivas economias políticas (MICHALET, 1982 apud GILPIN,2002).

O capitalismo da ordem internacional liberal, segundo a teoria, é visto enquanto um sistema econômico unificado, que, devido à distribuição das forças econômicas, acaba por levar o subdesenvolvimento a toda a periferia e a torna dependente do núcleo. “Os defensores do SMM argumentam que o sistema capitalista mundial contribui para o subdesenvolvimento dos países menos desenvolvidos” (GILPIN, 2002, p. 88-89). A relação do centro global para com a periferia africana sempre foi de apropriação de seus recursos e suprimentos para agregar ao desenvolvimento econômico do núcleo, evidenciando uma grande polarização pela falta de acesso da periferia aos seus próprios recursos e gerando dependências econômicas em suas estruturas internas (FRANK, 1969 apud GILPIN, 2002).

A teoria do SMM os vê como um todo integrado, de tal forma que os mesmos mecanismos que no núcleo produzem desenvolvimento e acumulação de capital, na periferia provocam subdesenvolvimento econômico e político (GILPIN, 2002, p. 89)

Se mostrando, então, enquanto uma notória deficiência periférica, a precariedade do sistema de saúde pública dos países africanos deve-se, portanto, ao sistema capitalista e sua necessidade de polarização entre Estados desiguais economicamente. A divisão internacional do trabalho é mantida pela estrutura internacional da economia mundial, que leva à acumulação de capital e recursos nas economias mais avançadas do sistema, como é o caso dos Estados Unidos e seu grande estoque de respiradores e leitos de UTI, e ao atraso, subdesenvolvimento e pobreza nos países da África, cuja infraestrutura disponível no combate à pandemia chega a ser mínima ou até mesmo inexistente (GILPIN, 2002).

Historicamente, a ordem capitalista global, para o Sistema Mundial Moderno, “extrai substância econômica e transfere riqueza da periferia dependente para os centros imperiais” (GILPIN, 2002, p. 91), o que acabou levando ao continente os maiores níveis de extrema pobreza e miséria do mundo (BANCO MUNDIAL, 2018 apud ONU, 2018). Portanto, além da falta de equipamentos médicos no início do caos sanitário advindo da disseminação do novo vírus, cujo número de mortes já apresentou picos de até 60% no continente (OMS, 2020 apud G1, 2020), os países africanos deverão sofrer impactantes consequências econômicas, aproximadamente 100 bilhões de dólares em perdas segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a África, muito por conta da dependência histórica constituída no continente para com os países do núcleo e a crescente recessão de mercado destes na conjuntura internacional atual (EL PAÍS, 2020).

Considerações Finais

Sendo assim, a insuficiência de infraestrutura médica africana na atual crise global é justificada enquanto um resultado histórico da polarização do sistema capitalista e da negligência do núcleo para com a periferia, sendo que a dependência dos subdesenvolvidos para com as economias avançadas se mostra enquanto fator determinante na capacidade de combate à pandemia de Covid-19. A divisão internacional do trabalho leva à desigualdade de acumulação de capital na estrutura econômica global, evidenciando a deficiência dos sistemas de saúde públicos africanos e suas respectivas disparidades para com os centros político econômicos globais em um contexto de crise. Na busca pela consolidação do desenvolvimento econômico, Estados periféricos como os pertencentes ao continente africano deverão futuramente se utilizar cada vez mais de políticas externas independentistas para com o núcleo, como inserções em grupos de países emergentes e alianças regionais do sul global, para que, eventualmente, estas relações desiguais de poder econômico acabem por se dissolver.

Referências Bibliográficas

BANCO Mundial: quase metade da população global vive abaixo da linha da pobreza. Nações Unidas, [S.I.], 17 de out. de 2018. Disponível em <https://nacoesunidas.org/banco-mundial-quase-metade-da-populacao-global-vive-abaixo-da-linha-da-pobreza/>. Acesso em 17 de abr. de 2020.

CORONAVÍRUS: 3 respiradores para 5 milhões de pessoas: o drama da pandemia na África. BBC, [S.I.], 09 de abr. de 2020. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52232601>. Acesso em 16 de abr. de 2020.

GILPIN, Robert. A Economia Política das Relações Internacionais. Brasília, UnB, 2002.

JOHNS HOPKINS BLOOMBERG SCHOOL OF PUBLIC HEALTH. Center for Health Security, 2020. Ventilator Stockpiling and Availability in the US. Disponível em <https://www.centerforhealthsecurity.org/resources/COVID-19/COVID-19-fact-sheets/200214-VentilatorAvailability-factsheet.pdf>. Acesso em 16 de abr. de 2020.

MORTES por Covid-19 na África crescem 60% em uma semana, diz OMS. G1, [S.I.], 16 de abr. de 2020. Disponível em <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/16/mortes-por-covid-19-na-africa-crescem-60percent-em-uma-semana-diz-oms.ghtml>. Acesso em 17 de abr. de 2020.

NARANJO, José. Pandemia e pobreza, o duplo desafio aterrador da África. El País, Dacar, 04 de abr. de 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2020-04-04/pandemia-e-pobreza-o-duplo-desafio-aterrador-da-africa.html>. Acesso em 16 de abr. de 2020.

Confira outro artigo sobre o tema:

A chegada da COVID-19 na África

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