Escrever um livro que desvenda e compartilha com milhões de pessoas os segredos mais profundos dos cartéis latino-americanos não é algo que todos os escritores se propõem a fazer, mas Roberto Saviano conhece muito bem essa trajetória. O jornalista e escritor italiano possui uma área de atuação bastante peculiar, conseguindo em toda sua jornada acumular informações muito valiosas sobre a forma de atuação dos grupos mais difusos da sociedade, e conseguindo ainda, como uma abominável cortesia, um acompanhamento permanente de escolta policial, assim como a constante necessidade de mudar-se, a fim de evitar que aqueles os quais tiveram seus segredos revelados consigam cumprir suas promessas de morte direcionadas a ele.
O autor, após publicar um best-seller internacional sobre as máfias italianas chamado Gomorra, novamente cria uma obra que demanda muita coragem e muitos contatos confiáveis. Zero zero zero é um livro que acompanha a trajetória do autor no desvendar de novos tipos de organizações criminosas, dessa vez focado nas Américas e nas rotas comerciais da maconha, do ópio e, principalmente, da cocaína. O livro possui um foco nas dinâmicas entre Estados convencionais e seus paralelos, os narco-estados, abordando todas as vias que não enxergamos mas que passam diante dos nossos olhos diariamente: as vias do narcotráfico. Saviano possui um conhecimento profundo da história desse mercado paralelo, entende desde como começou, até as relações políticas e familiares envolvidas nesse processos, trazendo à tona outros pontos de vista não muito difundidos, ou até mesmo desconhecidos por muitos. Por meio de entrevistas, análises documentais e de conteúdo, assim como uma incessante e interminável investigação, o jornalista consegue criar uma obra cativante e repleta de perguntas e respostas, as segundas não sendo necessariamente complementares às primeiras.
Sobre a obra
A obra é dividida em sete partes, todas denominadas “Cocaína”, e dentro delas existem divisões por capítulos, ao todo são vinte capítulos, cada um com um objetivo de storytelling único, todos esses, dentro de sua etapa na história do narcotráfico, possuem um gancho para o próximo e para o objetivo geral do livro. Fica claro que Saviano não deseja apenas abrir os olhos dos leitores, mesmo que seja uma de suas maiores proezas com sua escrita e suas investigações, mas também deseja que indaguem quais os ciclos que envolvem o narcotráfico, o quanto podem estar contribuindo para isso e o quanto vivemos alienados a situações de miséria e de morte, discutindo sobre liberar ou não entorpecentes considerados ilícitos no momento, mas não entendendo qual o real impacto dessas discussões que muitas vezes são carregadas de discurso sobre moral, mas não sobre saúde e, ainda mais importante, sobre vidas.
O livro se inicia com uma conexão a sua obra Gomorra, trazendo um diálogo entre membros da máfia italiana em uma espécie de palestra, ensinando os modos de ser para latino-americanos responsáveis pelo narcotráfico nos Estados Unidos, a partir desse momento se inicia um processo de mapeamento histórico do início do narcotráfico na América Latina, com ênfase ao México, desde as primeiras fazendas de ópio, com o objetivo de ajudar na Segunda Guerra Mundial ao fornecer morfina aos soldados, até o momento em que esses fazendeiros foram abandonados com plantações imensas de ópio e tiveram que conseguir, de alguma forma, transformar esse insumo em um meio de viver novamente. Por meio da obra é possível não só sentir que conhece pessoalmente todos os pais do narcotráfico, como El Chapo, El Padrino, Don Neto, os Leyva e El Mata Amigos, como também a maior plantação de
maconha já existente, La Bufala.
Além da própria história do crescimento da exportação de narcóticos por parte desses países latino-americanos, outro fator entra em evidência: o Estado falho. As relações entre as populações locais e os narcotraficantes são de extrema proximidade, se respeita muito aquele que traz comida, abrigo e emprego, mesmo que de forma ilícita, e os cartéis, principalmente entre as décadas de 1970 e 2010, são sinônimo de segurança para as populações locais, e onde o Estado não chega com condições básicas de sobrevivência, esses grupos chegam com fartura, ganhando a confiança daqueles ao seu redor, e mesmo que as brigas entre esses cartéis tenham causado milhares de mortes de inocentes e locais, sem contar as perdas nas tentativas de passar a fronteira com mercadoria, brigas com autoridades militares, entre outros fatores, ainda conseguem o apoio popular, como pôde ser visto em 2014 por exemplo, quando El Chapo foi preso e ainda assim era aclamado.
O livro mostra, dentro de diversos exemplos, que mesmo com os grandes esforços, dando ênfase inicial às estratégias dos Estados Unidos e do México, para que se controle o narcotráfico e que se coloque limites no controle dos cartéis sobre as regiões, ainda assim esses grupos se mostram mais fortes e com influência cada vez maior, passando por cima de qualquer barreira imposta. Além disso, existe um alto índice de compra do silêncio, e até mesmo das informações, de pessoas do governo que controlam cidades e Estados inteiros ora coagindo seus governantes a se manterem cegos às movimentações existentes, ora deliberadamente comprando com enormes cachês as informações e ações necessárias para que o mercado de drogas ilícitas não pare por fiscalizações ou queimadas de plantações.
Fica claro, também, que Saviano conhece todas rotas, os chefes, as investigações governamentais, as relações diplomáticas da cocaína e até mesmo a técnica do seu plantio por um vício na droga, mas não um vício físico e metabólico, não é um usuário da coca em si, mas sim de todo o seu ciclo, ele relata que não consegue se desvencilhar do ciclo vicioso que é cada vez mais possuir mais e mais informações, participar dos eventos, conhecer pessoas e entender suas rotas. Esse vício, por sua vez, é capaz de transbordar as páginas do livro e prender o leitor, ao ponto de nos sentirmos presos à narrativa, assim como se alimenta uma enorme sede de saber mais e mais onde cada detalhe leva, e sempre leva à algum lugar mais próximo do que poderíamos imaginar. Dentro disso, o autor relata que como antropólogo sempre teve a necessidade de observar e anotar os fatos que se ocorrem à sua frente, tentando ao máximo não intervir nos resultados e rituais que
se passam, dito isso, infelizmente não conseguiu fazer com que a recíproca fosse verdadeira, já que sua perigosa profissão hoje lhe custa a sua liberdade, assim como a de sua família.
O jornalista destaca, entre muitos aspectos, como os grupos do narcotráfico são famílias, no sentido de uma comunhão de interesses e um ciclo de proteção
além do próprio vínculo de sangue, todos se conhecem e se protegem, a família de um vira a família de todos dentro de um cartel, anulando o indivíduo e vivendo para o propósito daquele coletivo específico. O que torna esse ponto de vista ainda mais interessante é o quanto essa dinâmica, quase que contraditoriamente, se aproxima do funcionamento de grupos militares especializados, nesse ínterim, ao se aproximar de membros de grupos táticos, assim como de milícias, o autor observa que a dinâmica familiar e de proteção mútua funciona da mesma forma com os grupos que caçam cartéis, com os espiões, e dentre outros inimigos que os Estados possam vir a constatar. De qualquer forma, o que fica mais claro é que são dois lados de uma mesma moeda, mas que, talvez por estarem de costas uns para os outros, não se reconhecem como tais.
É impossível não notar, além disso, que para essas personagens do tráfico, esses pais dos cartéis, a sua importância para a sociedade ao ser redor era muito clara, e a narrativa faz com que nos questionemos o tempo todo sobre nossos valores pessoais e o quanto concordamos, ou não, com algumas das ações desses grupos. Eles se entendem como mártires, muitas vezes abarcando obrigações que deveriam ser dos governos as quais eles não conseguem cumprir, daí sua denominação de narco-estado. Aos poucos o narcotráfico evoluiu, investindo cada vez mais na educação e na tecnologia para seu funcionamento, outra falha de muitos governos do sul global e que as populações sentem falta fortemente, contudo a dinâmica familiar e autoritária se mantém a mesma, apenas mudam alguns detalhes do seu funcionamento, é muito mais barato contratar militares ou ex-militares que já possuem todo o treinamento tático do que ter de treinar aqueles que nunca se quer seguraram uma pistola na mão, o foco se mantém na produção e aprimoramentos logísticos, praticamente terceirizando as vias operacionais básicas, como as de segurança.
Roberto Saviano se coloca em constante perigo ao escrever esse livro, assim
como já estava com o lançamento de Gomorra, mas não é apenas a sua publicação que o deixa nesse estado de vulnerabilidade, o próprio ato de buscar informações, indagar nomes e ações, expor movimentos de personalidades públicas de apreço que anterior a isso poderiam manter sua reputação intacta, assim como entrar nas mais diversas instituições e lhes desafiar pelo mero fato de possuir as informações privilegiadas que consegue angariar com suas testemunhas, isso é o que mais o coloca em perigo, e a sutileza desse fato quase torna a leitura de um texto investigativo e informativo, para um texto de terror. O observar adentrando todos os aspectos do narcotráfico, e expondo a si mesmo nesse processo, a fim de informar ao mundo de como as coisas realmente funcionam é uma atividade agoniante, em cada nova entrevista relatada, cada nome citado, cada localização exposta é possível se observar apenas torcendo para que no final o autor esteja seguro.
Depois de muitas viagens, tanto fisicamente quanto de informações, a
diversos países do mundo, encontramos o jornalista retornando à Itália, abrangendo as relações de interdependência dos atores difusos responsáveis pelo narcotráfico internacional. Assim como destrinchou o narcotráfico americano, ele retorna às suas origens, demonstrando as relações dos americanos com os Italianos, acompanhando o primeiro desembarque destes no continente, o que remete, novamente, em uma narrativa excepcional, ao início da obra e ao seu best-seller. O mundo é regrado por governos e empresários, e com o mundo das drogas não seria diferente, as maiores personalidades do narcotráfico são verdadeiros empresários, e Saviano consegue relatar com precisão e maestria quais suas qualidades profissionais e seu estilo de vida, lembrando do seu grande apelo social. O autor ainda explicita algo que muitos já sabem -mas o óbvio precisa ser dito- aqueles grandes, realmente grandes, não irão ser presos, pelo menos não da mesma forma e com as mesmas sentenças longas que os seus empregados e subalternos, isso ocorre em todas as esferas sociais do mundo contemporâneo. Novamente, o autor consegue criar um apelo para a indagação ao leitor, trazendo pontos latentes e de discussões recorrentes do mundo contemporâneo, fazendo com que aquele que lê se sinta parte da produção intelectual do livro.
Zero zero zero possui um potencial imensurável, é um arquipélago de
informações históricas, sociais, antropológicas, econômicas e das mais variadas formas de conhecimento que podem existir, a obra se conecta com todos os aspectos da vida do leitor, e em algum momento sempre terá um momento com o qual alguém se identifica, algum fato conhecido, algum objeto de estudo do interesse, ou até situações mais pessoais podem ser gatilhos para consumar essa produção como indispensável ao ser humano do século XXI. A abordagem crítica, a forma que Saviano consegue trazer todos os pontos de uma realidade paralela à vida de muitos, mas que possui muito mais pontos de convergência com a realidade de muitos do que se imagina, é de ser admirada. Aos poucos o leitor se apega na narrativa, nas personagens -pessoas reais- e, principalmente, na trajetória do autor, aos poucos se perguntando cada vez mais sobre o bem estar deste e sobre quais
caminhos traçou para estar tão fundo dentro dessa complexidade.
Conclusão
Por fim, a obra é viciante, assim como o autor é possível ficar addicted às
histórias: são fatos, contos, lendas, dados e retóricas dos mais variados tipos. Nesse sentido, o autor não nos deixa esquecer que todas as moedas possuem dois lados as instituições são corruptas, e os esforços de bancos para um possível controle do narcotráfico se limita à fiscalizações brandas, afinal, não podem perder seus maiores investidores, muito menos seus mais pesados fundos. Em um mundo em que pessoas em um país precisam comprar ossos de gado para sopa, enquanto outros gastam o salário anual de um trabalhador em um vinho, Saviano observa que “os centros de poder financeiro mundial sobrevivem graças ao pó”, o pó que movimenta o banqueiro, que movimenta o motorista de ônibus, que movimenta navios de carga e que movimenta, enfim, os eixos econômicos e de comércio do mundo. A Mafija Russa, a Máfia Italiana, os Cartéis Americanos, os bancos internacionais, as empresas de fachada, o mercado transatlântico de drogas, todos trançando uma trama intrincada sobre o maior rio do mundo, o do narcotráfico.
Referências Bibliográficas
SAVIANO, Roberto. Zero Zero Zero. 1. ed. São Paulo: Editora Schwarcz, 2013.
Palavras-chave: Narcotráfico; Narco-estado; Relações Internacionais; Investigação.
Ficha Técnica:
Livro: Zero Zero Zero
Número de páginas: 396
Data de publicação: Abril de 2013
ISBN: 978-85-8086-785-5
Sobre o autor: Roberto Saviano é jornalista investigativo e escritor, nasceu em Nápoles, em
1979, na Itália, mas vive mudando de localização em função da realidade da sua profissão.
O autor possui outras obras de renome, como Gomorra (2006) e Os Meninos de Nápoles
(2019). Atualmente o livro Zero Zero Zero possui uma adaptação em série criada pela
Amazon Prime Video.