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O que putin teria a aprender com Nicolau I e Stalin?

Breves reflexões sobre guerra e estratégia na era czarista, na era soviética e na Rússia atual

O que putin teria a aprender com Nicolau I e Stalin? 3

Introdução

Em fevereiro de 2022 o presidente russo Vladimir Putin tomou a decisão de invadir a Ucrânia, no que chamou de “operação militar especial” para a “desnazificação” do país.

Centenas de vozes se insurgiram contra a agressão russa, sob a perspectiva dos preceitos basilares do Direito Internacional e da Carta da ONU, salientando a flagrante ilicitude do ato e a sua própria contrariedade aos compromissos previamente assumidos por Moscou em relação à independência e à integridade territorial ucraniana.

Mas, para além da contrariedade ao ordenamento jurídico internacional e ao imperativo de previsibilidade e segurança na dinâmica mundial, a invasão russa é incompatível também com a própria estratégia de hegemonia transnacional do país.

Para comprovar a hipótese, será delineado um breve estudo sobre guerra e estratégia da era czarista à Rússia atual, com enfoque no dilema força versus assimilação, na fricção entre a atividade política e a militar, na tática contra-ofensiva e nos elementos que compõem a raison d’État – os vetores de racionalidade onipresentes na condução da grande estratégia russa desde a sua formação.

O equívoco estratégico da decisão de Putin em relação à Ucrânia será comprovado mediante um diálogo intertemporal estabelecido com o Czar Nicolau I e Stalin, igualmente equivocados nas suas decisões tomadas na Guerra da Crimeia e na Guerra de Inverno, respectivamente.

Rússia: os ares imperiais e a estratégia de hegemonia transnacional

Desde os seus primórdios, a nação russa mostrou um ímpeto hegemônico comparável ao dos grandes impérios, sem o qual não teria evoluído do reduzido Grão-Ducado de Moscóvia à gigantesca dimensão que atualmente corta os Urais, grande parte da Ásia Central, a Sibéria e o Círculo Polar Ártico.

Entre os séculos IX e XII, a confederação de tribos eslavas orientais – Kievan Rus, da qual fazia parte o Grão-Ducado de Moscóvia – experimentou invasões de hordas tártaras e mongóis devido, em grande parte, à ausência de montanhas elevadas. Nada detinha aquelas hordas, que grassavam desimpedidas pelas planícies e que tudo saqueavam e destruíam à sua passagem.

Essa região germinal da Rússia atual continuou sendo invadida e disputada nos séculos seguintes em constantes guerras com os tártaros, poloneses, cossacos e lituanos (BANDEIRA, 2017, p. 205), o que fez com que a questão da segurança territorial aflorasse cedo como uma das principais preocupações dos czares.

Expandindo-se na direção do oriente para garantir a própria segurança do seu território, o Império Russo passou a assimilar povos, religiões e tradições variados, tornando-se multiétnico, multicultural e multiconfessional e constituindo-se, nas palavras de Leon Trotsky, não como Estado nacional, mas como “Estado de nacionalidades” (BANDEIRA, 2017, p. 206).

Ainda que multicultural e multiconfessional, o Estado russo assimilou predominantemente as tradições bizantinas e dentre elas a própria religião – o cristianismo ortodoxo. Mais do que qualquer outra nação, o Império Russo tinha a religião em seu cerne e fazia dela a sua razão de Estado, a ponto de o sistema czarista classificar seus súditos de acordo com o seu status confessional e compreender suas fronteiras e seus compromissos internacionais quase exclusivamente em termos de fé (FIGES, 2018, p. 25).

Não tardou para que o Estado russo utilizasse a Igreja Cristã Ortodoxa como instrumento para o alcance de fins geopolíticos, especificamente aqueles ligados aos planos de projeção estratégica e de hegemonia. Consolidada a expansão no extremo oriental do território, a Rússia voltou a sua atenção para a Ucrânia, território do qual se apossou no século XVII, e para algumas zonas de amortecimento controladas pelos otomanos, em especial a Moldávia e a Valáquia (FIGES, 2018, p. 27).

A Rússia consolidaria aí uma estratégia transnacional de apelo aos correligionários cristãos ortodoxos no Império Otomano, no intuito de abalar o poder dos turcos. Essa estratégia de hegemonia consistia, em linhas gerais, em um plano de projeção geopolítica da nação russa e de cooptação e aglutinação de diferentes povos sob a égide de Moscou, em nome da religião.

Para que se tenha uma ideia da envergadura dessa estratégia, basta salientar que nas primeiras décadas do século XIX, a Igreja Ortodoxa Russa enviou mais peregrinos a Jerusalém do que qualquer outro ramo da fé cristã (FIGES, 2018, p. 19). A concepção de “Santa Rússia” não era confinada por fronteiras territoriais; tratava-se de um império ortodoxo com santuários espalhados por todas as terras do cristianismo oriental e que mantinha com elas uma forte ligação. Desta forma, além de constituir um elemento de aglutinação interna, a religião passava a funcionar como um eficaz instrumento de política externa para a Rússia.

Esse legado transnacional esculpido pelo Império Russo foi herdado e adaptado com relativo sucesso pela União Soviética. Os eixos da estratégia transnacional de Moscou, formados pela diversidade étnica, religiosa e cultural no plano interno e pela identificação internacional do Estado com a Igreja Cristã Ortodoxa, foram mantidos pelos dirigentes soviéticos no que tocava aos aspectos culturais e às balizas impostas pela doutrina da luta mundial de classes.

A transnacionalidade estratégica de Moscou passou, assim, por uma mudança significativa de feição, mas não de essência. O ateísmo, como pressuposto da ideologia comunista, fez com que o Cristianismo Ortodoxo fosse desvinculado da categoria de vetor estratégico e substituído pela célebre retórica marxista que pregou a união dos trabalhadores de todo o mundo.

Os sentimentos nacionais e culturais dos vários povos que passavam a compor a União Soviética foram legitimados em tudo o que não contrastasse com a luta revolucionária internacional. A exportação da ideologia comunista era o objetivo transnacional que justificava a recusa de independência das várias nações que compunham a União Soviética, mas que, paradoxalmente tolerava, em certo grau, as manifestações de cultura e nacionalidade.

Essa adaptação da estratégia transnacional de Moscou – a substituição da religião pela luta de classes – permitiu que a União Soviética sucedesse o Império Russo em escala maior de hegemonia e que, ironicamente, ela atravessasse a maior parte do século XX como o império europeu remanescente (LUTTWAK, 1983, p. 14). De fato, a União Soviética nasceu, sobreviveu e prosperou em uma época em que a ideologia transnacional fracassava gradativamente em outros impérios, a exemplo do Austro-Húngaro, do Otomano, do Britânico, do Francês e do Português.

Esse ar imperial da nação russa é reflexo de um dilema anexo, de natureza existencial, que coloca em xeque a visão do país como Estado nacional até hoje. Os czares, os dirigentes soviéticos e os dirigentes contemporâneos nunca procuraram estabelecer um Estado nacional no país; ao invés, procuraram preservar nele o império multiétnico, multicultural e multiconfessional. Em outras palavras, não existiu na Rússia, um estadista equivalente ao líder Mutafa Kemal Ataturk, responsável por estabelecer um Estado nacional turco derivado do Império Otomano (KUZIO, 2017, p. 54).

Assim, o apoio ao nacionalismo separatista não foi articulado na Rússia, e o país atravessou os séculos impondo a sua hegemonia transnacional perante as diversas etnias que se encontravam emolduradas dentro das fronteiras do seu gigantesco território, e em desfavor de outras que eventualmente despertassem a cobiça do Kremlin.

Mas, para que se possa compreender o verdadeiro sentido da referida diretriz transnacional de Moscou, há que dissecar o renitente dilema estratégico que desafiou czares e dirigentes soviéticos, e que ainda se faz presente na atual política internacional russa.

O dilema estratégico russo: hegemonia pela assimilação ou pela força?

Em suas memórias, o Marquês de Custine, escritor e explorador francês, relatou clara e vividamente suas impressões sobre a Rússia no século XIX. Em um de seus registros mais marcantes, ele definiu o país como “um composto monstruoso dos refinamentos de Bizâncio e da ferocidade das hordas das estepes, uma luta entre a etiqueta do Império Bizantino e as virtudes selvagens da Ásia” (KISSINGER, 2014, p. 51).

Essa antítese viva que simboliza o destino da Rússia parece ter replicado nas mentes de seus dirigentes ao longo dos séculos. De fato, os czares, os líderes soviéticos e, na atualidade, Putin, foram desafiados por esse conflito da mentalidade coletiva, representativo do tradicional dilema estratégico russo: a assimilação, por meio da defesa, do refinamento e da diplomacia, ou a força, por meio do ataque, da ferocidade e do exército?

A escolha que se fez nos inúmeros episódios da história russa significou a diferença não apenas entre a guerra e a paz, mas também entre a racionalidade e o caos. O fator geográfico sempre pesou na decisão dos dirigentes russos, que depositaram, de regra, grande confiança na habilidade para derrotar qualquer inimigo que primeiro esgotasse suas forças ao invadir o imenso território do país em profundidade.

Essa característica geográfica – a imensidão do território –, ao lado da rigidez governamental autocrática, sacramentou a dificuldade dos russos para lançar ofensivas contra potências militares de primeira grandeza. É senso comum entre os estudiosos do fenômeno da guerra que a posição defensiva é taticamente mais forte do que a ofensiva, mas no caso russo, há uma grande disparidade entre a formidável força de resistência do país e sua diminuta capacidade para fazer a guerra ofensivamente contra um sério opositor.

A direção autocrática, herdada do czarismo e presente na Rússia até os dias atuais, é um dos elementos que estão por trás do dilema estratégico que atormenta os dirigentes russos desde sempre. É justamente da autocracia que decorre a defasagem gerencial característica da estrutura estatal russa. Em uma sociedade onde, em regra, os dirigentes e o Estado assomam de maneira a apequenar os cidadãos, as técnicas, os talentos e as instituições, não sobram elementos capacitários suficientes para fazer frente às grandes e ricas nações do ocidente e às necessidades decorrentes da evolução do quadro geopolítico mundial. Assim o Império Russo e a União Soviética ruíram.

Essas particularidades da condução autocrática russa refletiram diretamente na qualidade da liderança militar nas várias guerras que o país travou. Em uma sociedade com hierarquia tradicionalmente rígida, na qual a mais estrita conformidade com as regras e ordens é imposta por sanções draconianas, o hábito que se forma é o de aceitar ordens cegamente e deixar todas as decisões para as autoridades superiores.

O pensamento russo contemporâneo herdou a rigidez tática do czarismo e da era soviética, das quais resultou a excessiva centralização de poder – visível mesmo sob um regime oficialmente democrático, na figura de Putin –, e a significativa diminuição do poder ofensivo das forças armadas. É nesse aspecto que os russos estão em grande desvantagem, eis que a vontade para tomar iniciativas sob responsabilidade própria é incentivada em sociedades tolerantes e liberais, mas não em sociedades fechadas e autocráticas.

Ressalvadas as guerras de expansão do seu território, os russos tiveram sucesso em conflitos contra potências militares de primeira grandeza apenas em 1812, contra os franceses, e em 1945, contra os alemães. Em ambos os casos, as vitórias russas se consumaram na contra-ofensiva, após a exaustão das respectivas forças inimigas. Esse fato é capaz de demonstrar que o caráter contra-ofensivo da tática de guerra da Rússia constituiu, constitui, e continuará constituindo um elemento de suma importância no cotejo decisório dos seus dirigentes, frente àquele imanente dilema estratégico que opõe o ataque à defesa.

Essa peculiaridade do caráter nacional russo explica porque a qualidade de liderança militar e, especificamente, a capacidade de iniciativa própria do conjunto castrense do país deixa muito mais a desejar na posição ofensiva do que na defensiva.

É precisamente essa característica – a elevada capacidade defensiva da nação russa, diretamente refletida no incrível lastro de resistência demonstrado pelo seu povo no decorrer de inúmeras invasões – que tradicionalmente constituiu o vetor de racionalidade na estratégia em tempos de guerra.

Aparentemente, tal vetor de racionalidade foi ignorado por Putin em sua recente incursão na Ucrânia, hipótese que será analisada mediante um breve paralelo com Nicolau I e Stalin, no que toca à estratégia de guerra e ao poder decisório desses estadistas.

Estratégia, racionalidade e tática defensiva na guerra: o diálogo entre Nicolau I, Stalin e Putin

 Ao estabelecer que a guerra é a continuação da política por outros meios, Clausewitz, o célebre teórico e estrategista militar prussiano, selou um paradigma sempre atual de compreensão do fenômeno. Esse paradigma inaugurou o diálogo da guerra com elementos e conceitos que ultrapassam as barreiras da ciência militar e que confluem em uma análise sociológica do fenômeno bélico, com ênfase na própria essência do Estado e nos seus valores intrínsecos.

É bem verdade que as tentativas de evidenciar as leis que regem a guerra sempre encontraram óbices, justamente em razão de sua infinita variabilidade – jamais houve duas guerras idênticas. Mas a política, a ação coletiva que reflete os valores de uma nação e a luta pelo poder são os elementos consubstanciais à condição humana responsáveis por manter a relação de interdependência entre guerra e política. Assim, os valores morais e as convicções profundas a respeito de uma determinada causa crucial devem ocupar um lugar central no estudo da guerra e no delineamento de estratégias militares.

O matiz sociológico, refletido no pensamento coletivo russo, age decisivamente sobre a tática e a estratégia de guerra. É justamente esse pensamento coletivo – que parte de uma pressuposição de unidade do múltiplo – o fator que caracteriza a inteligência personificada do Estado russo, e que tradicionalmente determinou o sucesso ou o fracasso do país nas guerras travadas, entendidas em sua totalidade e não apenas em seus aspectos parciais, circunstanciais ou táticos.

Infere-se desse raciocínio que a aplicação de uma política adequada na guerra pressupõe a consideração da inteligência de Estado russa e dos elementos e valores que compõem o núcleo do pensamento coletivo: os próprios objetivos da nação, o significado e o alcance do sentimento nacional russo, o imanente dilema estratégico, o fator territorial, a rigidez governamental autocrática e a ênfase na contra-ofensiva bélica.

Esses elementos e valores refletem o grande legado político-estratégico russo, resumido no preparo e na capacidade da sociedade para a luta defensiva contínua (RICE, 1986, p. 675). Nos últimos 500 anos, o país foi invadido no sentido oeste pelos poloneses em 1605, pelos suecos em 1708, pelos franceses, em 1812, e pelos alemães, em 1914 e 1941. Contando a partir da invasão de Napoleão até 1945, os russos lutaram na planície do norte da Europa uma vez a cada 33 anos em média (MARSHALL, 2018, p. 18).

Essa experiência continuada de ameaças à integridade territorial russa ajudou a moldar o viés estratégico nitidamente defensivo do país. É justamente esse legado defensivo que, a nosso sentir, constitui o elemento nuclear da inteligência personificada do Estado russo, responsável por estabelecer os limites de racionalidade das ações dos estrategistas russos.

Mas, ao mesmo tempo em que a estratégia política da Rússia é defensiva, a sua estratégia militar é inegavelmente ofensiva. É aí que reside o ponto de maior fricção na condução da estratégia de Moscou: a tensão nunca resolvida entre a atividade política, de natureza defensiva, e a atividade militar, de natureza ofensiva (RICE, 1986, p. 675). Essa tensão é nada mais nada menos, que o reflexo direto do dilema estratégico que opõe a assimilação à força.

De uma perspectiva realista, esse legado tomou um papel central na condução da estratégia de guerra, no sentido de que deve representar a expressão da racionalidade e direcionar as pretensões dos dirigentes russos. É dizer, a contrario sensu, que o menosprezo em relação aos elementos e valores reiteradamente estabelecidos na prática geoestratégica russa, levou – e ainda pode levar – a desacertos nos campos de batalha.

É nesse ponto – na fricção entre a atividade política e a atividade militar – que o diálogo intertemporal proposto ente um czar, um dirigente soviético e um presidente da Rússia atual ganha o seu ponto de maior relevo.

O Czar Nicolau I e a Guerra da Crimeia: uma decisão irrefletida

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Nicolau I (1796-1855), Imperador de Todas as Rússias, Rei da Polônia e Grão-Duque da Finlândia

No desenho de sua estratégia, Nicolau I, o principal responsável pela eclosão da Guerra da Crimeia, foi movido em parte por orgulho e arrogância demasiados – um reflexo de sua longa direção autocrática –, em parte por conta de suas pressuposições sobre as reais capacidades da Rússia e dos países vizinhos, e em parte por um erro de cálculo grosseiro acerca da reação das demais potências militares às pretensões geopolíticas russas (FIGES, 2018, p. 15).

Em seu íntimo, O Czar travava uma guerra religiosa para cumprir a “missão” da Rússia – a de defender os cristãos que viviam no Império Otomano – e isso fez com que ele olvidasse dois fatores cruciais: que em uma guerra, o moral do combatente é a chave para a diferença entre a vitória e a derrota, e que a iniciativa e a coragem dos soldados, e não o forte caráter contra-ofensivo da estratégia russa, é que seriam os elementos fundamentais no plano de invasão das províncias turcas no Danúbio.

Porém, tomado pela petulância decorrente de seu poder autocrático, o Czar admitiu como absoluto o mito da invencibilidade russa que remontava a 1812 e teceu conjecturas equivocadas de apoio dos britânicos e dos austríacos na sua incursão contra os turcos. Ocorre que em 1812 o contexto de guerra contra Napoleão era contra-ofensivo; a estratégia que fora adotada à época, a de terra arrasada, era coerente com a inteligência de Estado russa, com a tática militar, com as capacidades do exército, com o moral das tropas e com a própria dimensão do território que os franceses devassavam.

Mesmo adotando uma linha claramente ofensiva contra os turcos, o Czar Nicolau I experimentou, tal como outros dirigentes, o desafio do velho dilema estratégico russo – assimilação e defesa ou força e ataque? Ao mesmo tempo em que declarava a guerra aos turcos, o Czar adotava uma estratégia contra-ofensiva de incitação de revoltas dos sérvios, búlgaros e gregos contra o Império Otomano (FIGES, 2018, pp. 139/140), utilizando claramente o fator de assimilação refletido na oposição da religião cristã ortodoxa à religião islâmica e no sentimento étnico e cultural eslavo.

Em termos táticos, a estratégia do Czar Nicolau I para os Balcãs e para a Crimeia consolidava uma posição defensiva das tropas russas e assinalava a postergação do cerco aos turcos (FIGES, 2018, p. 176). Essa estratégia do “vizinho fraco” era suficientemente flexível para satisfazer as ambições dos nacionalistas, bem como para evitar as preocupações daqueles que queriam evitar uma guerra europeia.

Nessa linha, a religião era sustentada por uma ameaça militar constante, destinada a aumentar a influência russa nos territórios cristãos do Sultão. O problema dessa estratégia que oscilava entre o ataque e a defesa é que ela estimulava a apatia dos comandantes militares e das tropas. Por sua vez, a utilização dos fatores de assimilação em favor dos povos subjugados pelo Império Otomano não se revelou suficiente para conquistar o seu engajamento na declaração de guerra aos turcos, fator que evidencia o erro estratégico da decisão de invasão tomada por Nicolau I.

O desdobramento dessa decisão foi a Guerra da Crimeia, evento que alçou o moral da tropa ao patamar de fator decisivo nos conflitos modernos. Assim, o sprit de corps das tropas da Rússia, baseado na disciplina, no respeito e na confiança, e absolutamente necessário para o êxito do país na guerra, exigiu como nunca que os comandantes militares instilassem sua autoridade em seus subordinados.

Mas a falta de vigor e de iniciativa dos comandantes e dos soldados no decorrer do conflito colocou em xeque as pretensões russas. A rigidez autocrática e a ênfase na contra-ofensiva estratégica, valores indeléveis da mentalidade coletiva russa, não poderiam ter sido simplesmente apagadas com a declaração de guerra aos turcos – uma iniciativa que exigia claro potencial bélico ofensivo.

Por sua vez, os valores relativos ao sentimento étnico-cultural eslavo e ao Cristianismo Ortodoxo – cardeais na estruturação estratégica do regime czarista – não se revelaram suficientes para consolidar a posição russa contra a coalizão que reuniu a Inglaterra, a França, o Reino da Sardenha e a Turquia e que ainda contou com o apoio da Áustria. Inevitável, portanto, o desfecho desastroso que seguiu para a Rússia no conflito.

O revigoramento do nacionalismo russo e a retratação estratégica nas decisões de Stalin entre a Guerra de Inverno e a Segunda Guerra Mundial

Vimos que o sentimento nacional e a religião Cristã Ortodoxa, na qualidade de elementos centrais da inteligência de Estado russa, se revelaram os principais instrumentos de projeção estratégica do regime czarista dentro e fora do país.

A substituição do Cristianismo Ortodoxo pela retórica marxista como vetor estratégico durante a liderança de Lênin, fez com que o regime bolchevique mantivesse firmemente a crença de que, uma vez restaurada a normalidade no Estado soviético, a ideologia comunista teria aceitação em todas as nações que viviam sob o jugo de Moscou, em uma espécie de união consensual ou confederação voluntária, ao estilo do exitoso modelo federativo norte-americano.

Porém, mesmo com a positivação constitucional do direito à independência das nações que constituíam a União Soviética, iniciou-se um processo gradual de supremacia da nacionalidade russa, em detrimento da genuína transnacionalidade que era perseguida como ideal. Nos tempos do czarismo, o nacionalismo era inseparável do Estado e da Igreja, e não seria fácil alterar essa reiterada equação de projeção de poder para outra que colocava os russos e outros povos no mesmo patamar jurídico-constitucional, unidos em nome de uma ideologia universal que era incompatível com a realidade das relações de poder.

A ausência do nacionalismo russo deixava um inevitável vácuo de substância política que logo se fez sentir naquele mosaico de nações que formava o Estado soviético. Ciente desse fenômeno, Stalin passou a apelar, ainda que discretamente, para o nacionalismo russo, de maneira a robustecer a razão de Estado soviética. Ao mesmo tempo, ele abandonou o caráter transnacional da ideologia comunista e estabeleceu prioridades claras para o Estado, em detrimento do movimento revolucionário mundial.

A despeito da oscilação do vetor estratégico da Rússia – do elemento étnico-religioso do czarismo para a retórica marxista da união mundial dos trabalhadores e, após a guinada ideológica de Stalin, dessa retórica para a reabilitação do nacionalismo –, remanesciam intactas as características fundamentais da raison d’État do país – o dilema estratégico refletido na fricção entre a atividade política e a atividade militar, a rigidez autocrática e a ênfase na contra-ofensiva bélica.

Os valores relativos à retórica de exportação da Revolução Bolchevique, tal como os valores étnico-religiosos do regime de czarista, não se revelaram suficientes para superar aqueles elementos indeléveis da mentalidade coletiva russa, e nesse diapasão, tal como ocorreu com Nicolau I em relação aos turcos, Stalin experimentou terríveis reveses em sua investida contra os finlandeses durante a Guerra de Inverno. A investida bélica contra Helsinque ressentiu-se do mesmo potencial ofensivo que se fez necessário na Guerra da Crimeia e, como desdobramento, o desastre militar que a Rússia imperial havia experimentado em 1856 se repetiu para a União Soviética em 1940.

O Pacto Molotov-Ribbentrop ofereceu certa segurança territorial para a Rússia, mas não foi capaz de demover o temor de um eventual ataque alemão. Esse temor aguçou a ânsia de Stalin no avanço da fronteira ocidental da União Soviética, mais especificamente em direção aos Países Bálticos e à Finlândia. Desta última nação os soviéticos exigiram o deslocamento da fronteira comum para o istmo da Carélia, no fito da proteção de Leningrado, além da fixação de uma base naval na costa sul do país e da cessão de algumas ilhotas de valor estratégico. (DIAMOND, 2019, p. 74)

O receio de que o objetivo real de Stalin fosse o de tomar todo o país fez com que os finlandeses não cedessem às exigências soviéticas. Essa resistência induziu o dirigente soviético a um erro substancial de cálculo: ele não imaginou que os finlandeses fossem tão impetuosos a ponto de lutar contra um país com população muito maior que a sua. Os soldados finlandeses sabiam que lutavam por suas famílias, por seu país e pela sua independência, e estavam dispostos a morrer por isso. O moral das tropas finlandesas era, portanto, muito mais robusto que o das tropas soviéticas e, além disso, outros fatores pesavam nessa equação: a iniciativa dos soldados e a flexibilidade das decisões dos comandantes.

Do lado soviético, a indelével rigidez autocrática russa e o inequívoco caráter contra-ofensivo da estratégia militar continuavam a povoar a mentalidade coletiva das tropas mediante a obediência cega às ordens. Assim, a falta de vigor e de iniciativa dos comandantes e soldados, à semelhança do que ocorrera durante a guerra da Crimeia, contrastava vivamente com a flexibilidade que enfatizava as iniciativas e decisões dos soldados e comandantes finlandeses.

O resultado não poderia ter sido mais frustrante para as tropas soviéticas: os estrategistas militares esperavam capturar Helsinque em menos de duas semanas, mas a ferrenha resistência finlandesa deixava claro que a ofensiva de Stalin seria lenta, dolorosa e custosa (DIAMOND, 2019, pp. 78 e 82). E de fato, o fraco desempenho do grande Exército soviético contra o minúsculo Exército finlandês foi um enorme constrangimento, com cerca de oito baixas soviéticas para cada baixa finlandesa (DIAMOND, 2019, p. 83).

O nacionalismo russo que estava sendo gradativamente restaurado por Stalin para suprir a razão de Estado soviética não se mostrou apto para superar o elevado moral das tropas finlandesas, e tampouco o ideal do comunismo. Para a surpresa dos líderes soviéticos, a maioria dos comunistas finlandeses não apoiou a invasão e resolveu lutar ao lado de seus compatriotas contra o inimigo comum.

Como fruto da estratégia de assimilação fundada no ideal marxista, muitos comunistas finlandeses haviam se mudado para a União Soviética nos anos 1930 para auxiliar a construção da ideologia transnacional, apenas para acabarem como vítimas do grande expurgo de Stalin, fato que conduziu à grande desilusão e até ódio contra o regime soviético entre os comunistas finlandeses.

O fiasco experimentado por Stalin na Guerra de Inverno fez com que ele compreendesse que a estrutura de logística e de comando sobre o Exército Vermelho não era servível. E mais do que isso, a ofensiva sobre Helsinque havia deixado claro para ele que o dilema estratégico russo – assimilação e defesa versus força e ataque – continuava vivo e presente como sempre.

Após o conflito, o Kremlin iniciou o processo de reabilitar os oficiais qualificados que haviam sido afastados com o expurgo e de modernizar as suas forças armadas, uma decisão que viria a permitir que os soviéticos resistissem à invasão alemã. Devido aos expurgos de Stalin, os comandantes do Exército Vermelho eram frequentemente substituídos por homens menos competentes, porém leais aos seus superiores – os generais e os comissários políticos, o comando híbrido da hierarquia militar soviética.

Com as habilidades táticas do Exército Vermelho postas em xeque na Finlândia, Hitler se sentiu bastante confortável para lançar a Operação Barbarossa. A invasão nazista em 1941 aceleraria o processo de identificação do regime soviético com a nação russa, tornada novamente objeto de veneração na qualidade de uma entidade mística, e mesmo à Igreja Ortodoxa Russa seria reservado um novo e mais proeminente papel, não como uma instituição espiritual, mas como uma de cunho representativo do nacionalismo russo.

Foi assim que a estratégia política soviética se apresentou durante a Segunda Guerra Mundial. No plano militar, a invasão nazista desencadeou importantes mudanças de percepção na tática defensiva do Exército Vermelho. Nos primeiros estágios da guerra, os soldados soviéticos não sabiam como se movimentar defensivamente, mas essa falta de planejamento defensivo foi revertida com as diretivas de campo de combate lançadas pelo alto comando ainda em 1942 (RICE, 1986, p. 672). As táticas militares defensivas passaram a ser discutidas explicitamente, com a consideração do uso ativo de táticas flexíveis em profundidade – e não mais estáticas, como ocorrera na Guerra de Inverno.

O incremento na tática das operações defensivas deu aos soviéticos a oportunidade de retornar aos planos ofensivos com mais racionalidade – desta feita contra os nazistas, rumo à Europa Oriental e à Berlim. O uso exitoso dos contra-ataques em conjunto com a defesa a partir de 1942 marcou o acerto da estratégia militar adotada. A habilidade para mobilizar a indústria de guerra, ao lado da determinação contra-ofensiva do soldado soviético e da capacidade de adaptação do comando para alocar, treinar e enviar as infindáveis fontes de recursos humanos garantiu a inquestionável vitória da União Soviética no conflito mundial.

Os comandantes soviéticos haviam compreendido que a tática militar contra-ofensiva não tinha que ser necessariamente estática e, com essa guinada na condução tática da guerra contra os nazistas, a estratégia militar passou a igualar o direcionamento da estratégia política, e ambas coexistiram e funcionaram em harmonia para o alcance de um propósito único: a derrota do III Reich e a projeção do domínio soviético no leste europeu.

Ambos os planos da estratégia soviética – o político e o militar – estavam em sintonia e se adequavam, sem reservas, aos elementos que integravam a inteligência de Estado soviética – o imenso território, a rigidez autocrática, o dilema estratégico, a ênfase na contra-ofensiva militar e principalmente o sentimento nacional. Esse último elemento adquiriu um formato especial, decorrente da mescla entre o nacionalismo russo que se revigorava gradativamente e da ideologia comunista que, embora enfraquecida em termos de instrumento de assimilação, conseguiu cumprir um papel de força adjacente no contexto de oposição ao Nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, e ao bloco ocidental durante a Guerra Fria.

Esse, portanto, foi o legado estratégico que a União Soviética herdou após o fim da era stalinista. A “inevitabilidade da guerra”, abandonada como doutrina político-estratégica a partir de 1956, foi permutada pela concepção de “competição e coexistência pacífica” em relação ao bloco capitalista (RICE, 1986, p. 675), e assim foi consolidada a estratégia político-militar defensiva que orientaria a maior parte dos movimentos dos dirigentes soviéticos no cenário internacional.

O fundamento da contra-ofensiva estratégica da União Soviética durante a Guerra Fria

Durante a Guerra Fria a União Soviética consolidou a sua grande estratégia na preservação das conquistas geopolíticas obtidas com a derrota do Nazismo. O domínio sobre a Europa Oriental no pós-guerra se protraiu por décadas e fez com que a posição defensiva dos soviéticos acumulasse força suficiente para contrapor o bloco ocidental, em uma tática de longa preparação para a esperada vitória no sistema bipolar então vigente.

O duelo entre os Estados Unidos e a União Soviética encerrou uma disputa baseada em uma lógica estratégica contra-ofensiva; cada líder do respectivo bloco exercia seu domínio por meio de manobras indiretas, de guerras “por procuração” e do proveito dos erros táticos da contraparte. Nessa esteira, na organização geral da defesa nacional e das forças armadas, a predominância da política sobre a estratégia era institucionalmente consagrada, e a organização do Estado-Maior soviético subordinava fortemente o elemento militar ao político (SCHNEIDER, 1968, p. 220).

Essa diretiva estratégica ficou evidenciada nas palavras do Ministro da Defesa da União Soviética entre 1957 e 1969, Marechal Rodion Malinovsky:

Nós não somos partidários da tese segundo a qual a melhor forma de defesa é o ataque. (…) Nós a substituímos por essa: a melhor forma de defesa consiste em deixar o inimigo ciente de nossa força e adverti-lo de nossa disposição de aniquilá-lo em sua primeira tentativa de agressão (SCHNEIDER, 1968, pp. 180-181).

Até o advento da Guerra Fria, a estratégia hegemônica transnacional de Moscou não havia ultrapassado as regiões fronteiriças mais imediatas do Império Russo e da União Soviética. O desfecho da Segunda Guerra Mundial deu aos soviéticos o desafio de lidar com o conglomerado de Estados clientes da Europa Oriental e demandou deles o planejamento de uma estratégia sutil de dominação indireta, que teria que se afastar daquela que era praticada no plano interno.

Os dirigentes soviéticos, no contexto da estratégia contra-ofensiva, tentavam evitar repressões violentas dentro da sua área de influência, embora estivessem sempre prontos para reprimir eventuais sublevações nos países satélites da Europa. Novamente o tradicional dilema estratégico mostraria a sua face: assimilação ou força?

Dentro da União Soviética a restauração do nacionalismo russo foi absolutamente necessária para sustentar o esforço de guerra, mas ela cobrou o seu preço na moeda da desagregação interna. Os russos lutaram com mais engajamento por sua própria nação do que pela entidade abstrata da União Soviética, ao passo que os não-russos foram engolidos por esse revigoramento nacionalista que faria deles cidadãos de segunda classe.

A União Soviética, ao contrário do que muitos pensam, foi de fato derrotada em 1941, tendo preferido se render à “Mãe Rússia” a se render aos nazistas (LUTTWAK, 1983, p. 07). Dispor as coisas dessa forma – admitindo a ascendência russa como uma forma de rendição da própria União Soviética – permite enxergar claramente a transição da estratégia de assimilação para a de força, fortemente identificada com a consequente elevação do status de “nacionalidade líder” da Rússia, a essa altura detentora de uma espécie de “licença” para expressar um senso de superioridade sobre todas as outras nacionalidades soviéticas.

A tônica da projeção estratégica russa voltava, assim, para a prática da “russificação” dos povos, tal como ocorrera durante a diretiva czarista de expansão para o oriente. A “sovietização” pretendida por meio da assimilação das nações se tornava um ideal cada vez mais distante, fenômeno que pôde ser atestado com o recrudescimento dos movimentos de consciência cultural e nacional dos povos não-russos.

Esse era o quadro interno da União Soviética. É bem verdade que Stalin esteve ciente do perigo que o nacionalismo russo, que fora incentivado por ele próprio, poderia se tornar potencialmente desagregador assim que a guerra terminasse. Contudo, o esforço que seria feito para meter o gênio da nacionalidade russa de volta na garrafa não surtiria o efeito esperado. O processo antitético de exaltação da identidade étnica e cultural das outras nacionalidades soviéticas já havia começado e Stalin, esgotado pelo esforço de guerra, não detinha mais a energia necessária para cumprir essa difícil tarefa.

No plano externo, a estratégia que os dirigentes soviéticos tentavam impor era um misto de assimilação, por meio do uso da ideologia comunista, e de força, por meio da tática de dominação indireta. Mas, ao fim e ao cabo, os soviéticos se apresentavam como russos para o mundo exterior, especialmente para o leste europeu, o que evidenciava que a estratégia pendia para a força, ainda que taticamente admitisse um viés defensivo.

Dessa forma, o domínio russo seria contestado dentro e fora das fronteiras soviéticas. Internamente, o nacionalismo ucraniano manifestou a mais veemente oposição à “russificação” imposta. Na Europa Oriental, a hegemonia de força dos russos foi contestada pelos alemães orientais em 1953, pelos húngaros em 1956 e pelos tcheco-eslovacos em 1968, e todas essas sublevações foram violentamente reprimidas pelo dito Estado soviético que, em tese, procurava exercer a sua ascendência pela assimilação dos povos e das classes trabalhadoras.

Com esse método repressor, a União Soviética revelava as suas contradições fundamentais, as quais, no decorrer das décadas, contribuiriam para a sua própria derrocada. A hegemonia pela força requereu dos russos investimentos cada vez mais pesados para as forças armadas, diretiva que inviabilizou o desenvolvimento de outras áreas, além da capacidade de competir comercialmente com outras sociedades. A segurança territorial, um tema sensível desde os primórdios da Rússia, gerou atritos e tensões com países vizinhos – que assomam inclusive na recente Guerra Russo-Ucraniana – em razão de uma política inflexível que desprezava a própria segurança alheia.

O mundo comunista, como entidade estratégica homogênea liderada por Moscou, se afastava cada vez mais da realidade, tal como demonstrariam as dissidências da Iugoslávia, com o Titoísmo e da China, com o Maoísmo e sua visão sinocêntrica do comunismo. Assim, a força da ideologia cedia espaço para a força do nacionalismo soviético – ou melhor, russo – e esse direcionamento influenciaria as gerações de futuros dirigentes do Estado russo, dentre eles um obscuro oficial da KGB chamado Vladimir Putin.

A readequação da estratégia transnacional russa na era Putin

Na qualidade de uma ideologia transnacional legitimada por amplas alianças político-militares, o Comunismo não poderia sobreviver sem o elemento de força que o sustentava. Na Europa, esse elemento de sustentação do bloco comunista provinha evidentemente da União Soviética, mas na década de 1980 a superpotência começava a esboçar claros sinais de esgotamento econômico.

Se antes, os soviéticos haviam substituído a assimilação pela força como elemento cardeal de sua estratégia interna e externa, agora essa mesma força começava a apresentar sinais de decadência em razão do crescente sucateamento do modelo de economia planificada. Gorbachev deixaria assente esse esgotamento da estratégia de força já em dezembro de 1988, quando, por ocasião da Assembleia Geral das Nações Unidas, formalizou as especulações de que a União Soviética não usaria o seu poder para manter os regimes comunistas do leste europeu (HALLIDAY, 1999, p. 52).

Com o colapso da União Soviética em 1991, a Rússia ficou mais longe da Europa, contemplou passivamente o avanço da OTAN e passou a conviver com fronteiras que até então nunca haviam existido. A sensação geral do povo russo era de fraqueza e de derrota com a hegemonia norte-americana na década de 1990. Na mentalidade coletiva russa, o país fora empurrado para a periferia mundial e transformado em uma nação de terceira categoria, o que para muitos cidadãos, dentre eles Putin, equivalia a uma catástrofe geopolítica sem precedentes.

A sintonia entre a estratégia política e a estratégia militar, que havia levado os russos à vitória na Segunda Guerra Mundial e à hegemonia no bloco comunista, se esvaiu no decorrer da Guerra Fria, com a perda da relação de adequação entre o sentimento nacional russo, a ideologia comunista e os elementos que tradicionalmente integram a inteligência de Estado. Em resumo, não havia mais espaço para o patriotismo russo-soviético como elemento de força na estratégia transnacional de Moscou.

Se até o colapso soviético a Rússia era constantemente acossada pelo dilema assimilação versus força, no século XXI, os seus dirigentes seriam desafiados pela ausência de elementos consistentes de projeção transnacional do país. Não havia valores ideológicos, religiosos ou étnico-culturais fortes o bastante para serem instrumentalizados como ferramentas estratégicas nas relações internacionais.

Esse fenômeno, fruto da turbulenta transição da era soviética para a atualidade, prejudicou a coordenação entre ministérios e agências estatais russas, que passaram a seguir políticas desencontradas em matéria de política externa. A combinação do caos na política interna e do declínio internacional durante o governo Yeltsin produziu uma política externa em grande parte incoerente. As perspectivas dominantes sobre a ordem mundial gravitavam desordenadamente entre o liberalismo, o eurasianismo, a multipolaridade e o nacionalismo pragmático regional e não havia uma linha diretiva lógica. (MACFARLANE, 2009, p. 54)

Tal descompasso não era mais que o reflexo daquela ausência de elementos de projeção internacional. Consciente da fraqueza da política externa russa, Putin, assim que investido no poder, iniciou esforços para reverter o declínio dos anos 1980 e 1990 e para restabelecer as bases internas para o retorno da Rússia ao status quo ante de grande potência.

Essa diretiva implicaria necessariamente no plano de restauração da influência russa sobre os antigos territórios soviéticos e de afastamento das potências estrangeiras hostis desse espaço. Para tanto, uma poderosa raison d’État teria que ressurgir do ideário coletivo russo: o sentimento nacional. O próprio Putin, capitaneando a exortação desse elemento da essência nacional russa, descreveria a si próprio como um “puro e absolutamente bem-sucedido produto da educação patriótica soviética” (ALBRIGHT, 2018, p. 143).

Mas o sentimento nacional russo seria utilizado como elemento de força ou de assimilação? O dilema estratégico voltaria a mostrar a sua face no século XXI e, tal como na era czarista e na era soviética, os dirigentes russos seriam desafiados a equilibrá-lo em razão dos valores indeléveis da sociedade russa – a rigidez autocrática, o sentimento nacional, a religião, a ênfase na contra-ofensiva e a imensidão territorial.

A essa altura dos acontecimentos, a estratégia russa centrava-se na solução urgente e pragmática da fraqueza interna, por meio da máxima concentração possível de recursos e esforços na solução das tarefas econômicas e sociais do Estado. Várias jurisdições da Federação Russa usurparam os poderes do Estado em um conflito de legislações regionais e federais que culminaram em um processo de desagregação interna.

Nessa esteira, a Chechênia buscou a separação da Federação Russa, fato que resultou em duas guerras civis debilitantes (1994-1996 e 1999-2005), que colocaram em xeque a capacidade de o Estado manter a coesão interna. As ações das Forças Armadas russas na Chechênia refletiram a necessidade de maior disciplina em suas fileiras, de pessoal mais qualificado, renovação dos equipamentos em funcionamento e investimentos em treinamento, tática e especialização de soldados e oficiais (TROIANOVSKI, SCHWIRTZ, KRAMER, 2022).

A sedição chechena deixou claro para os dirigentes russos que uma reforma militar de base era urgente. E deixou claro também que, em tempos de globalização, de revalorização das liberdades e de ressignificação das identidades nacionais, culturais e religiosas, a manutenção da unidade do multiétnico, multicultural e multiconfessional Estado russo sem elementos de consciência coletiva consistentes seria uma tarefa impossível.

Atento a essa realidade, Putin incrementou a relação íntima entre o Estado e a Igreja Ortodoxa – que já vinha se delineando desde o final da era soviética –, por meio da colaboração entre os altos escalões eclesiásticos e os oficiais da KGB (ZYGAR, 2016, p. 250). Em uma visão racional do papel de guardiã das tradições e dos princípios morais da Rússia, Putin enxergou a Igreja Ortodoxa como legítima representante da essência nacional e como uma fonte de agregação popular muito mais forte que qualquer coligação partidária.

Na qualidade de membro do serviço secreto em uma época em que o nacionalismo russo foi oficialmente encorajado dentro do sistema soviético, Putin foi influenciado pelas tendências que exortavam a superioridade russa, as vitórias militares do país, a autocracia, o sentimento eslavófilo e a ortodoxia cristã em detrimento da cultura ocidental.

Como produto de uma “sovietização” da sociedade russa e de uma “russificação” da cultura soviética (KUZIO, 2017, p. 56), a Rússia surgiu no século XXI como uma incubadora perfeitamente adequada para a gestação de um nacionalismo ofensivo e de um regime autoritário. Essa contradição da identidade nacional russa – havida entre a ideologia política soviética e a essência histórica e cultural do país – remete àquela antítese viva captada pelo Marquês de Custine, tão representativa do tradicional dilema estratégico russo.

Não à toa Putin, tal como Nicolau I e Stalin, tem sido continuamente desafiado por esse dilema, e ele optou por responder a esse desafio assumindo o papel de autocrata secundado pela religião, pelo nacionalismo ofensivo e pela indelével consciência nacional que retrata o Ocidente como a antítese de Moscou e que se coloca como contraponto aos valores ocidentais.

Em princípio, Putin adequou a estratégia transnacional de Moscou à razão de Estado russa e aos anseios que a geopolítica do século XXI impôs. Os reveses experimentados na Chechênia e posteriormente na Geórgia, durante o conflito por territórios de maioria russa ocorrido em 2008, demandaram de Moscou a necessidade de sofisticação das Forças Armadas, no sentido de torná-las letais e capazes de rápida mobilização.

O investimento maciço do Estado russo nas Forças Armadas possibilitou a aquisição de armamentos de precisão, tais como os foguetes Iskander-M e os mísseis de cruzeiro Kalibr, além de máquinas sofisticadas, tais como os tanques T-72B3, detentores de sistema ótico térmico para combate noturno, e os caças SU-35S. O efetivo de soldados profissionais foi aumentado significativamente, e todas essas inovações permitiram operações militares bem-sucedidas, a exemplo da captura da Crimeia em 2014, da intervenção na guerra civil síria e da manutenção de paz no recente conflito armado que decorreu entre a Armênia e o Azerbaijão (TROIANOVSKI, SCHWIRTZ, KRAMER, 2022).

Essa série de vitórias russas no tabuleiro geopolítico mundial atestou o acerto de Putin na condução da estratégia transnacional de Moscou, mediante o reequilíbrio entre a atividade política e a atividade militar, a adequação aos elementos que integram a inteligência de Estado, a adoção de uma linha coerente de política externa e a consolidação da força como vetor estratégico, ainda que dotada de um viés taticamente contra-ofensivo.

Em particular, a fricção entre a atividade militar e a atividade política na condução da estratégia russa – reflexo do dilema que opõe a assimilação à força – foi meticulosamente dosada por Moscou para que o país pudesse continuar enfrentando os desafios que assomavam. A Doutrina Militar (2014), a Estratégia de Segurança Nacional (2015) e o Conceito de Política Externa (2016), documentos de Estado, consolidaram a tática de defesa ativa na condução da grande estratégia de Moscou, a qual pode ser sintetizada no conceito de “coerção de domínio cruzado” (ADAMSKY, 2015, pp. 31-37).

Essa tática de defesa ativa fundada na coerção de domínio cruzado mescla o uso real da força, ou sua ameaça, com a diplomacia e com instrumentos de guerra não-convencional, no intuito de alcançar objetivos geopolíticos e geoestratégicos, prevenir conflitos, impedir a vitória decisiva do inimigo no período inicial de uma eventual guerra e preparar condições adequadas de contra-ofensiva.

Todas essas diretrizes estabelecidas na era Putin colocaram a estratégia transnacional russa de volta aos eixos, justamente porque ajudaram a retomar a sintonia entre a atividade política e a atividade militar e a diminuir o atrito decorrente do dilema força versus assimilação.

Contudo, tal como Nicolau I na Guerra da Crimeia e Stalin, por ocasião da Guerra de Inverno, Putin cometeria o equívoco de desconsiderar o legado estratégico contra-ofensivo da Rússia ao decidir invadir a Ucrânia em fevereiro de 2022.

Putin e a invasão da Ucrânia: a decisão que desconsiderou o legado estratégico russo

Durante a incursão militar na Síria, os estrategistas do Kremlin experimentaram uma tática de maior flexibilidade na atuação dos oficiais de nível inferior, conferindo a eles um grau de autonomia que contrastou com a estrutura tradicional das Forças Armadas russas, baseada na rígida hierarquia e na obediência cega às ordens superiores.

Essa mudança de paradigma tático foi um grande ensaio para a investida militar que exigiria grande capacidade ofensiva das tropas – a invasão da Ucrânia. Mas essa experiência não bastaria para assegurar o êxito dos russos na empreitada.

Em termos militares, a Rússia supera a Ucrânia de longe, e Putin acertou ao vaticinar que a OTAN não enviaria tropas para socorrer Kiev e que a dependência dos recursos naturais russos (óleo e gás) refrearia, ao menos inicialmente, a imposição de sanções duras.

Baseado nessas premissas, Putin formou a sua pretensão inicial na guerra que travaria com a Ucrânia: um ataque forte e rápido o bastante para decapitar o governo de Zelensky, instalar um regime simpático a Moscou e fazer um contrapeso geopolítico e geoestratégico ao Ocidente.

Houve, contudo, um grave erro de percepção na formulação dessa estratégia. Tal como Nicolau I, que errou ao esperar o apoio dos impérios europeus contra os turcos, cuja força subestimou, e tal como Stalin, que errou ao acreditar em uma vitória rápida contra a Finlândia para fazer do país um satélite da União Soviética, Putin também errou ao acreditar que o potencial ofensivo das Forças Armadas russas seria suficiente para colocar a Ucrânia de joelhos e aniquilar o moral de suas tropas.

Talvez inebriado pelo sucesso da captura da Crimeia em 2014, Putin tenha pensado que a investida militar sem oposição se repetiria em 2022, com a invasão do resto do país. Mas desta feita o desdobramento foi distinto, justamente porque os planos de invasão da Ucrânia não observaram o conteúdo do legado estratégico da Rússia. Em 2014, a tomada da Crimeia obedeceu às balizas da estratégia possível para Moscou – o caráter contra-ofensivo, o sentimento nacional, a religião e a natureza político-militar – os vetores de racionalidade para a movimentação tática dos estrategistas russos.

A decisão de invadir a Ucrânia não respeitou nenhuma dessas balizas; na verdade, atropelou-as. A afirmação do nacionalismo ucraniano, a franca contraposição a Moscou, a cisão entre as Igrejas Ortodoxas da Rússia e da Ucrânia, as aspirações democráticas e pró-Ocidente de Kiev e a improvisação de uma tática militar ofensiva incomum para as Forças Armadas russas revelaram um quadro absolutamente oposto ao verificado na Crimeia em 2014, quando a tática contra-ofensiva empregada, conformada ao sentimento étnico, cultural e religioso russo e à política autocrática de Putin, se adequou perfeitamente aos anseios estratégicos de Moscou.

Em suma, em 2014, os estrategistas russos mantiveram o equilíbrio entre a atividade política e a militar, em uma tática contra-ofensiva de afirmação do poder geopolítico de Moscou. Na ofensiva contra a Ucrânia, ainda em curso, a sucessão dos reveses experimentados pelas tropas russas indica a clara falta de coordenação entre o plano político e o militar, situação que, desde o início da Guerra Fria, só encontrou paralelo na malsucedida invasão do Afeganistão em 1979.

As sucessivas readaptações dos planos de guerra dos comandantes militares russos no teatro de operações da Ucrânia corroboram essa evidência de dessintonia entre a estratégia política e a estratégia militar. O baixo moral dos combatentes russos, a lentidão dos avanços, os problemas com suprimento e logística, o número significativo de baixas – segundo algumas fontes, equivalente a três vezes o montante de mortes de soldados em dez anos de confronto no Afeganistão (KULEBA, 2022) –, a necessidade de incorporação de tropas sírias, chechenas e de mercenários do Grupo Wagner, e as vitórias ucranianas nas batalhas iniciais da guerra, foram fatores que contribuíram para que os estrategistas de Moscou alterassem a perspectiva da pretensão inicial que acalentavam na fase de planejamento da invasão.

Por mais que Putin envide esforços para reverter esse quadro desfavorável, acreditamos que nenhuma medida poderá consertar o erro fundamental da invasão à Ucrânia. Talvez seja precipitado ou temerário defender que a Rússia invariavelmente perderá a guerra contra a Ucrânia, mesmo que colecione estupendas vitórias em todas as batalhas que ocorram daqui para o final do conflito. Mas tudo parece indicar que a vitória russa na guerra, caso ocorra, será pírrica, não somente por conta dos reveses sofridos e do planejamento em desacordo com as possibilidades estratégicas disponíveis para Moscou, mas principalmente em razão da impossibilidade de conservar a própria vitória.

A história militar mostra que é sempre muito mais fácil conquistar um país do que mantê-lo dominado, e no longo prazo, cada tanque destruído e cada soldado russo morto fortalecerão a coragem dos ucranianos para resistir à ocupação inimiga. E cada ucraniano morto intensificará o ódio que os ucranianos sentem pelos invasores. O ódio é a mais cruel das emoções e, para nações oprimidas como a Ucrânia, é um verdadeiro tesouro enterrado no fundo da consciência coletiva do povo, capaz de conservar a resistência viva por gerações (HARARI, 2022).

A tática contra-ofensiva da estratégia soviética permitiu que Stalin e Kruschev assegurassem a independência das então repúblicas soviéticas da Ucrânia e da Bielorrúsia e sua representação na ONU, sem que o Kremlin deixasse de exercer o domínio sobre elas, e semelhante estratégia foi adotada em relação aos países satélites da Europa Oriental. Havia, em suma, sintonia entre os objetivos políticos, a estratégia e a tática militar.

Mesmo com a derrocada do sistema soviético, Gorbachev, obediente ao legado estratégico de Moscou, assegurou o equilíbrio geopolítico entre russos e ucranianos e selou os laços de irmandade entre os dois povos. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, Stalin já havia entendido que a captura de novos territórios – em uma estratégia ofensiva – não ajudaria a União Soviética na construção do seu poder. Os seus sucessores até o último líder soviético compreenderiam perfeitamente a essência desse legado estratégico contra-ofensivo condizente com os anseios de Moscou.

Putin, na direção oposta, apostou em uma premissa arcaica de projeção de poder com a invasão da Ucrânia: a de que quanto mais territórios uma nação obtiver, mais poderosa ela será. Além de haver ignorado as bases estratégicas da própria Rússia, Putin olvidou também o destino comum de esfacelamento dos muitos impérios que se arvoraram na captura desenfreada de territórios, dentre eles o Reich Nazista, cuja ideologia ele diz combater na Ucrânia.

Claro está, portanto, que a investida de Putin na Ucrânia repetiu erros já superados pela consolidação da grande estratégia de Moscou, em especial os cometidos por Nicolau I e Stalin, além de ter violado uma regra cara ao Kremlin: a de que a hegemonia por meio da força não é uma estratégia racional para a Rússia.

A “lição” de Nicolau I e Stalin para Putin: a hegemonia pela força não cabe na estratégia transnacional possível para a Rússia

Nas palavras do teórico russo Alexandr Svechin, “não há, e por absoluta decorrência lógica, não deve haver regras para a estratégia ou para os estrategistas” (GRAY, 2016, p. 144). De acordo com essa visão, o estrategista seria frequentemente instado a enfrentar questões que, por sua natureza, não podem ser prudentemente antecipadas seja por meio do contexto histórico, ou por qualquer outro.

Esse é um ponto de vista extremo que, a nosso sentir, não pode ser aplicado indiscriminadamente – e tampouco na análise estratégica dos desdobramentos da recente invasão da Ucrânia. Por óbvio, as situações que ensejam o trabalho meticuloso dos estrategistas são únicas em seu conteúdo e sua originalidade demanda o manejo inédito dos elementos e instrumentos envolvidos na disputa.

Isso não significa, contudo, que a atividade estratégica seja infensa a princípios e valores basilares, perenes e imutáveis, justamente porque ignorá-los seria o equivalente a tolher de racionalidade o próprio plano tático adotado pelos dirigentes e comandantes. É dessa premissa, e da análise do legado estratégico russo, que retiramos a conclusão segundo a qual Putin deveria ter “ouvido” Nicolau I e Stalin antes de haver tomado a decisão de invadir a Ucrânia.

Nicolau I e Stalin estão mortos e obviamente não podem falar, mas os livros de história e estratégia militar “falam” por eles e não mentem.  Basta um pouco de paciência para “ouvir”, e um pouco de perspicácia para analisar. Como fatores de assimilação, Nicolau I tinha em seu favor a religião e o sentimento de união dos povos balcânicos oprimidos pelos turcos, ao passo que Stalin tinha a mescla entre o nacionalismo russo e a ideologia comunista que se espalhou para metade do mundo bipolar da Guerra Fria.

Putin, ao seu turno, não conta com elementos ou valores que possam servir de alicerce para suas pretensões na Ucrânia, a não ser a força bélica que, como visto, depende de um grande dinamismo e poder ofensivo de que os meios militares se ressentem. Além disso, os aliados europeus de sentimento eslavófilo fora do espectro da OTAN se resumem à Sérvia e à Bielorrússia. Sem elementos de assimilação na estratégia para a Ucrânia, Putin reavivou valores transcendentais traduzidos na herança imperial da Rússia.

A reputação de Nicolau I foi restaurada, e por ordem do próprio líder russo, o retrato do Czar foi afixado na antecâmara de seu escritório presidencial no Kremlin (FIGES, 2018, pp. 473/474). Putin nutre admiração também por Alexandre III, em sua visão o “Czar da pacificação e um excelente estadista e patriota”, tendo inclusive inaugurado uma estátua em sua homenagem em um parque da Crimeia em 2017, e recentemente comparou a si próprio com Pedro o Grande. Já o flerte com Stalin sobreveio da nostalgia soviética, lembrada como uma época de vitória e ordem, sobretudo o triunfo na Grande Guerra Patriótica.

O apelo de Putin ao passado russo é o reflexo daquele dilema anexo a que nos referimos no início do texto, que trata da própria natureza do Estado russo – um Estado nacional ou um império? Moscou não consegue se libertar de suas raízes imperiais e, na falta de uma raison d’État forte, essas raízes surgem como supridoras das lacunas abertas.

Putin, convicto da força do resgate dos valores tradicionais russos, parece inclinado a levar o conflito com a Ucrânia até as suas últimas consequências e a tendência é que o líder russo amargue reveses geopolíticos ainda piores do que os experimentados no teatro de guerra, caso continue nessa toada.

Em razão da agressão russa, Finlândia e Suécia, países tradicionalmente neutros na disputa entre a Rússia e o Ocidente, acenam agora para a adesão à OTAN. A efetiva adesão desses países tornará o entorno estratégico do Mar Báltico extremamente instável e perigoso, tendo em vista a existência de um sistema de mísseis com capacidade para ogivas tanto nucleares quanto convencionais no exclave de Kaliningrado.

Se considerarmos que os outros países do referido entorno – Polônia, Lituânia, Letônia e Estônia – já são membros da OTAN e que a Bielorrússia, nação simpática a Moscou e bastante próxima ao entorno, poderá abrigar armamento nuclear russo no caso da concretização de uma escalada armamentista, estará montado o cenário de desequilíbrio geopolítico na Europa, que só fará comprovar o desacerto da estratégia de força adotada contra a Ucrânia.

Nicolau I e Stalin, como muitos outros dirigentes russos, foram desafiados pela herança imperial e pelo dilema estratégico assimilação versus força. O que os distingue é o fato de que souberam reconhecer o equívoco de suas ações quando elas ultrapassaram os limites da racionalidade da estratégia transnacional russa. Eles compreenderam que a ofensiva bélica em prol da captura de mais territórios não atenderia aos anseios da geopolítica russa, justamente porque ela ia de encontro aos elementos e valores da grande estratégia do país.

Putin sabe que o destino imperial da Rússia é inevitável. O que ele não consegue discernir é que esse destino deve passar pela consideração muito sábia do dilema assimilação versus força. Na qualidade de produto de uma cultura soviética “russificada”, o presidente russo enxerga o sentimento nacional como legitimador da projeção do país em uma ofensiva – bélica, se ele achar necessário – contra o Ocidente.

A lição deixada por Nicolau I e Stalin, síntese do legado estratégico russo, desmente claramente essa percepção; se vivos fossem, eles jamais endossariam a investida contra a Ucrânia, justamente porque o fracasso da operação lhes soaria como inevitável. Mas Putin segue fazendo ouvidos moucos aos “dizeres” de seus predecessores. Resta saber até quando. E a que preço.

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