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Sobre a miscigenação na obra “Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal

Castro, Maria Werneck de; No Tempo dos Barões.Rio de Janeiro Bem-Te-Vi Produções Literárias; 2004; p. 171, ISBN 85-88747-08-1 - Scanned Author Unknown author

SOBRE O AUTOR

Gilberto Freyre (1900-1987) nasceu de uma família de classe média alta residida em Recife. Freyre estudou artes liberais com enfoque, escolhido por ele próprio, em disciplinas de letras, nos Estados Unidos da América. Lugar onde, quatro anos depois, em 1922, se tornaria mestre em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais. Logo em seguida, passou um ano viajando pela Europa. Ao retornar para o Brasil, Freyre trabalhou como secretário do governador de Pernambuco. Em 1946, se tornou deputado federal pela UDN. Conquistou reconhecimento internacional depois da tradução de suas obras para diversos países. Casa-grande & Senzala é o primeiro volume da trilogia a respeito da Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil – considerado o subtítulo da obra -, que se completa pelos livros Sobrados e Mocambos (1936) e Ordem e Progresso (1959) (ALVES, 2018).

INTRODUÇÃO

Segundo está descrito na obra, “Esse livro foca no caráter social, que coincide com o sociológico, da colonização portuguesa do Brasil”. Gilberto Freyre utilizava-se de uma ótica culturalista, especialmente, para contra-argumentar questões raciais nascidas no período colonial e que eram abordadas no seio de teorias em voga na época, tal qual o darwinismo social, os determinismos genético e geográfico e até mesmo o racismo como forma de explicar a configuração sociocultural brasileira (ALVES, 2018). 

Freyre é um dos autores que mais explicou o modo como se deu a miscigenação original do Brasil. Em sua obra Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal”, vários pontos são levantados para explicar como, quando, por que e de onde veio essa característica marcante do povo brasileiro.

Desde os primeiros momentos do Brasil colônia, a miscigenação já estava presente nas inúmeras formas de relações no território nacional. Por isso, Freyre teve que retornar e analisar uma série de eventos considerados nevrálgicos do passado português para compreender o que levou esse povo a se misturar tão facilmente entre outros povos, se diferenciando radicalmente dos outros impérios coloniais daquela época. Para elaborar a sua tese, Freyre percebeu ser necessário recordar certos aspectos sociológicos, políticos, geográficos, culturais, étnicos, econômicos e geopolíticos da formação do reino de Portugal.

SOBRE A MISCIGENAÇÃO

Portugal era um Estado completo e unido, tanto política como juridicamente, tendo como base fundadora a religião pregada pela Igreja Católica. Enquanto os espanhóis carregavam para suas colônias a suas diferenças políticas, os ingleses e franceses levavam suas divergências religiosas para as suas colônias. Por outro lado, Portugal era um Estado mais consolidado e satisfeito com as diferenças encontradas em sua sociedade. 

Isso não quer dizer que não haviam desavenças sociais adentro do reino português. A classe comercial advinda principalmente das cidades marítimas, por exemplo, rivalizava com a aristocracia em busca da atenção do rei. Este, pretendendo sair da tradicional pressão da aristocracia, iniciou a fomentar leis de proteção ao comércio marítimo e à construção naval, levando o país a ser o pioneiro das grandes navegações.

No mesmo sentido, Portugal agrupava diversos grupos étnicos em sua sociedade. Ao passar de vários séculos, a Península Ibérica teve grande parte do seu território ocupada pelos mouros, e na subsequente transformação étnica e cultural do seu povo. Ademais, a sua posição geográfica foi um dos motivos – porém não absoluto – que o transformou em um povo marítimo e comercial desde pelo menos o século XIII, o que o fazia receber os comerciantes de várias partes do mundo em seus portos e vice-versa. Com isso, o português costumava não negar a miscigenação, a atração sexual e o intercurso cultural, quando ocorria o contato humano entre Europa, África e Ásia. Quando chegou no Brasil, os colonizadores portugueses já traziam em seu imaginário certos desejos e ambições sexuais como pode-se ver na seguinte passagem:

“O longo contato com os sarracenos deixou idealizado a figura de uma mulher morena e de olhos pretos encantadora, envolta em misticismo sexual, que os colonizadores vieram encontrar parecido entre as índias nuas e de cabelos soltos do Brasil. Essas que por qualquer bugiganga ou caco de espelho, se entregavam de pernas abertas aos portugueses gulosos de mulher.” (FREYRE, 2006)

Em outras palavras, a cultura de miscigenação do povo brasileiro, portanto, começa em Portugal. Dessa forma, a raça passar a ser um elemento de fundação secundário na formação do país. A “bicontinentalidade”, formada pela cultura europeia e a africana, a fé católica e a maometana, “são influências que se alternam, se equilibram e se hostilizam no português. Dessa maneira, é possível entender a formação sui generis da sociedade brasileira a partir da colonização portuguesa.” (FREYRE, 2006).

Portugal possui uma miscibilidade formada pelo seu passado de cunho cosmopolita e heterogêneo. Freyre cita Mendes Correia (1914) para demonstrar como diferentes etnias eram encontradas entre o povo português em certas localidades dos territórios de Portugal, sobretudo nos pontos litorâneos – havia pessoas de raças de médias e altas estaturas, supostamente por influência de “semito-fenício” (judeus e fenícios) e árabe, respectivamente. Mendes Correia também observou a presença de várias famílias mulatas no Concelho de Alcácer do Sal, uma província portuguesa. Ou seja, para o português era normal manter relações sexuais e matrimoniais com diferentes etnias, sem nenhum prejuízo social para o seu povo e seu reino.

Isso é considerado um dos motivos pelos quais era exigido apenas uma coisa para um estrangeiro ser aceito no Brasil colônia: ser católico-romano – a mesma regra seguia-se para a distribuição de sesmarias. Enquanto isso, nas colônias espanholas e inglesas as regras para aceitar um imigrante eram muito mais rigorosas – os ingleses se atentavam até mesmo em conferir se o tipo físico da pessoa era semelhante com a do seu povo. Não à toa, o Brasil foi a sociedade que se construiu de forma mais harmoniosa, no que tange a convivência interétnica.Tal fato não fica restrito à convivência entre portugueses, índios e negros. Na capitania de São Vicente, por exemplo, havia ingleses, franceses, florentinos, genoveses, alemães, flamengos, espanhóis, judeus, entre outros.

Outro ponto que vale a pena notar é em relação ao degredo que ocorria naquela época da metrópole para as colônias. Atualmente, muitas pessoas acham que só imigraram para o Brasil pessoas mau caráter e de má índole, no entanto, Freyre demonstra que as regras não eram bem assim.  

“(…) não há fundamentos nem motivos para duvidar de que alguns fossem gente sã, degredadas pelas ridicularias por que então se exilavam súditos, dos melhores, dos reinos para os ermos. Mais de duzentos tipos de delitos eram punidos com degredo. O direito penal portugueses era muito severo, pois carregava ainda quente os ódios de guerra contra os mouros. No entanto, pelo crime de matar o próximo, de desonrar a mulher, estuprar a filha, o delinquente não ficava, muitas vezes, sujeitos a penas mais severas que a de pagar uma pequena multa.” (FREYRE, 2006).

A “aclimatabilidade portuguesa” é outro ponto fundamental levantado por Freyre para explicar como os portugueses se ambientaram bem no território brasileiro. O português possuía uma “predisposição singular para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos”, por conta do seu passado étnico e cultural. Ao contrário de outros colonizadores advindos de países de clima frio que tentaram se aventurar em terras mais quente da América do Sul e Central, Portugal possui um clima singular na Europa, um clima mais quente e parecido com o africano. Isso pode ser um dos motivos que os imigrantes alemães, poloneses, ucranianos, entre outros da Europa preferiram habitar a região Sul do Brasil séculos depois. 

A plasticidade social do português é outro elemento que compõem a identidade flexível desse povo, o que pode ser observado no seu trato menos cruel com os escravos, na maior compreensão e absorção das culturas dos povos autóctones e escravizados, bem como pela sua maior abertura à miscigenação com os últimos.

A mistura do branco com o ameríndio deu origem ao que chamaram de mameluco; a mestiçagem do negro com o ameríndio formou o cafuzo ou caburé – mestiço de pele muito escura, quase negra, com cabelos lisos; e a combinação do branco com o negro formou os mulatos.

Isso só foi possível por conta da existência da mobilidade e adaptabilidade portuguesa (advinda do seu caráter marítimo comercial, como já comentado) calcadas em ideias de violência e política: conquistavam territórios e deixavam filhos por lá como forma de consolidar a sua vitória, diminuindo algumas atrocidades militares e religiosas tão costumeiras naquela época. 

Diferentemente do que ocorria nos territórios do atual México e Peru, onde as mulheres eram exterminadas ou segregadas do resto da população, na colônia portuguesa, por outro lado, as índias serviam para certas tarefas doméstica e laborais, bem como para a formação da família. Assim, eles conseguiam reverter a desvantagem numérica do português frente aos povos dominados que possuíam um maior número de pessoas, garantindo mais força aos objetivos geopolíticos e econômicos do império português.

Outro conceito “freyriano” encontrado nessa obra é o que caracteriza o português como um contemporizador. Um exemplo da contemporização pode ser observado na relação entre os jesuítas e os indígenas, estes que adaptaram as canções e danças daqueles para atraí-los ao cristianismo, bem como compartilhavam a mesma educação de suas escolas para os filhos dos índios e dos portugueses, bem como a troca cultural que ocorria com os brinquedos das crianças, nos jogos, superstições, o bodoque de caçar passarinhos dos índios, o papagaio de papel, a bola de borracha, etc. Em outras palavras, a contemporização significa que o colonizador português não havia ideais absolutos, podendo se flexibilizar para conseguir realizar o processo de aculturação com outros povos.

Outro exemplo de contemporização pode ser observado na estratégia portuguesa de utilizar-se do homem nativo para o trabalho, para a guerra, para o desbravamento e conquista do território.

Como os territórios coloniais ocupados a partir do governo-geral não eram torrencialmente diferentes entre si no quesito clima e altitude, isso ajudou com que não houvesse o desenvolvimento desigual entre as capitanias no que tange à cultura nacional. Essa característica geográfica se aliou à língua portuguesa e à fé católica como catalisadores da união entre as diferentes capitanias hereditárias.

Como resultado dessa contemporização, surgiu uma variedade de elementos nacionais próprio da cultura brasileira. Por exemplo, há alimentos utilizados e transformados pela integração entre colonizadores e escravizados. Logo nos primeiros momentos coloniais, a farinha de mandioca substituiu o pão de trigo e se tornou a base do regime alimentar do português. Da farinha de mandioca surgiu o mingau, a tapioca, a canjica, a pamonha e a “pokeka” – composta pela técnica de embrulhar o peixe em folha de bananeira – que, depois de se mesclar com a cultura africana, se tornou a famigerada moqueca.

Graças à influência da ameríndia na base familiar brasileira, foi introduzida uma série de elementos à cultura nacional, como: o caju, as drogas e remédios caseiros, utensílios de cozinha, a rede para dormir, o óleo de coco para o cabelo das mulheres, os processos de higiene tropical (banho diário), entre diversos outros elementos.

Os ameríndios, assim como ocorria na culinária afro-baiana, abusavam muito da pimenta em seus alimentos. Eles também foram os responsáveis pelo início a comercialização e uso do tabaco pelos portugueses.

Os africanos, por sua vez, foram quem trouxeram o feijão, a banana, o quiabo para terras brasileiras. As plantas alimentares trazidas da África ajudaram em muito na adaptação do negro no território brasileiro, por conta da quase manutenção de seu regime alimentar. Vale ressaltar também que o cuscuz é de origem norte-africana (mouros).

Já o português, enfim, foi o responsável por trazer o boi, o carneiro, a cabra, a cana-de-açúcar de suas ilhas portuguesas no Atlântico. Além disso, o português trouxe consigo experiências e conhecimentos adquiridos em suas viagens e conquistas na África e na Ásia durante o século XV, como: “o conhecimento de plantas úteis, alimentares e de gozo para serem transplantadas aqui, certas vantagens do sistema de construção asiático e a capacidade do negro para o trabalho agrícola.” (FREYRE, 2006)

CONCLUSÃO

A valorização da miscigenação é fundamental para o Brasil, na medida em que isso nos torna um povo com uma cultura recheada de elementos oriundos de outros povos, aumentando substancialmente o potencial criativo do brasileiro. Além de Freyre, outros teóricos da nossa sociologia vão ao encontro dessa tese, como Darcy Ribeiro e Manuel Bonfim. Como observado por Freyre, o brasileiro não é mestiço apenas no sangue, mas também na cultura, na literatura, na culinária, na música, no esporte. A literatura, por exemplo, é marcada pelo mestiço e pelo caboclo, como o sertanejo de Euclides da Cunha, o jagunço do João Guimarães Rosa, o vaqueiro do Graciliano Ramos são todos personagens mestiços que marcaram grandes clássicos da literatura nacional e supostamente estão impregnados no imaginário do povo brasileiro, ou deveriam estar.

FICHA TÉCNICA

  • Título: Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal
  • Autor: Gilberto Freyre
  • Editora: Global
  • Local: São Paulo, Brasil
  • Ano de Publicação: 2006 (51ª Edição)
  • Páginas: 728
  • ISBN: 978-85-260-0869-4

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Leonardo Marcondes. Resumo de Casa-grande & senzala. Ensaios e Notas, 2018. Disponível em:<https://wp.me/pHDzN-4NS>. Acesso em: 04 ago. 2022.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51ª.edição. São Paulo: Global, 2006.

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