A realização da Cúpula do G20 de 2024 no Rio de Janeiro marcou um ponto central para o Brasil no cenário internacional em um momento de crises múltiplas e transformações rápidas na ordem mundial. Sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, o evento buscou abordar questões cruciais como a reforma da governança internacional, a erradicação da fome, a redução das desigualdades e a transição energética. Para o Brasil, sediar a cúpula foi uma oportunidade de reafirmar sua relevância, articular as demandas do Sul Global e reforçar sua posição como porta-voz das economias emergentes.
Sumário
Porém, o evento ocorreu em um cenário mundial de crescentes tensões geopolíticas e desafios econômicos e climáticos. Rivalidades entre potências, como Estados Unidos e China, moldaram as dinâmicas nos bastidores, enquanto conflitos como a guerra na Ucrânia e a crise Israel-Hamas destacaram as falhas da governança internacional. O Brasil buscou equilibrar suas relações com as grandes potências e promover uma agenda inclusiva, mas enfrentou desafios, como tensões com a Argentina, que ilustraram as dificuldades de construir uma liderança unificada entre os países em desenvolvimento. Este artigo analisa os principais aspectos da cúpula, seus resultados e as lições para a política externa brasileira.
O Brasil como anfitrião e líder do Sul Global?
A presidência brasileira do G20 em 2024 destacou o desejo do país de reposicionar-se como um ator central nas discussões internacionais, alinhando-se às demandas do Sul Global e articulando propostas que desafiam a ordem mundial estabelecida. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva utilizou a cúpula como plataforma para criticar os desequilíbrios do sistema internacional e propor um modelo de governança mais inclusivo. Em seu discurso de abertura, Lula foi enfático ao declarar que “a globalização neoliberal fracassou”, responsabilizando-a pela perpetuação de desigualdades e pela marginalização de economias emergentes, como as da América Latina e África.
A presidência brasileira buscou apresentar o país como uma liderança progressista capaz de articular as demandas dos países em desenvolvimento e propor soluções viáveis para os problemas contemporâneos. Contudo, a cúpula também expôs as contradições e limitações dessa ambição, incluindo questões internas, tensões regionais e o equilíbrio geopolítico entre grandes potências.
Reformas e a agenda internacional brasileira
Um dos pilares centrais da agenda brasileira foi a proposta de reformas na governança internacional, com foco na representatividade das economias emergentes em instituições-chave. Lula criticou duramente o uso do veto pelos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, qualificando-o como um dos principais obstáculos para a promoção da paz e segurança internacional. Ele defendeu a convocação de uma conferência global para revisar a Carta da ONU, com base no artigo 109, destacando que o atual sistema não reflete mais as realidades geopolíticas do século XXI.
Outro alvo das críticas brasileiras foram as instituições de Bretton Woods, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Lula apontou que essas instituições frequentemente impõem condições que agravam a desigualdade em países em desenvolvimento, especialmente na África. Ele argumentou que a reforma dessas entidades é fundamental para garantir que sua atuação esteja alinhada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e com as necessidades das economias emergentes.
Justiça social e tributária: uma visão progressista
Um dos destaques mais significativos da presidência brasileira foi a proposta de taxação das grandes fortunas. O plano, que sugere uma alíquota de 2% sobre os patrimônios dos super-ricos, foi apresentado como uma solução prática para gerar cerca de US$ 250 bilhões anuais. Esse recurso seria destinado ao enfrentamento de desafios globais como a fome, a pobreza extrema e as mudanças climáticas.
A proposta brasileira foi amplamente elogiada por sua ousadia, mas também encontrou resistência, especialmente de líderes que defendem políticas econômicas mais liberais, como o argentino Javier Milei. Ainda assim, o Brasil manteve sua posição, apresentando a medida como parte de um esforço mais amplo para construir um sistema tributário global mais progressivo e alinhado aos princípios de justiça social.
Ação climática e a transição energética
No campo ambiental, o Brasil reafirmou seu compromisso com o Acordo de Paris e com a meta de neutralidade de carbono até 2050. Lula utilizou a cúpula para destacar o papel do Brasil como potência ambiental, mencionando a Amazônia como peça central na luta contra as mudanças climáticas. Além disso, o país defendeu a ampliação do financiamento climático para os países em desenvolvimento, argumentando que as nações ricas têm responsabilidade histórica e moral de financiar a transição energética global.
A defesa brasileira incluiu a necessidade de uma transição energética justa, que considere as realidades econômicas e sociais dos países do Sul Global. O apoio à COP30, a ser realizada em Belém do Pará em 2025, também foi ressaltado como um marco para consolidar o Brasil como líder ambiental.
Declaração Final: Um marco de inclusão e sustentabilidade
A Declaração Final do G20, aprovada por consenso, foi elogiada como um marco histórico em diversos aspectos. Com 85 tópicos, o documento refletiu o multilateralismo e trouxe compromissos importantes, como:
- Transição energética: Apoio à eliminação gradual de subsídios ineficientes a combustíveis fósseis e ao financiamento de soluções energéticas limpas e sustentáveis nos países em desenvolvimento.
- Reformas na governança internacional: Defendeu a modernização da arquitetura financeira, maior representatividade para as economias emergentes e a promoção de um comércio internacional inclusivo.
- Justiça social: Pela primeira vez, foram firmados compromissos com o financiamento para saneamento básico e ações para enfrentar o racismo como elemento central no combate às desigualdades estruturais.
- Tecnologias emergentes: A regulação de big techs e inteligência artificial ganhou destaque, com um apelo por transparência e responsabilidade para minimizar os danos sociais, incluindo a desinformação e o discurso de ódio.
Esses compromissos consolidaram a agenda brasileira como promotora de inclusão e sustentabilidade, reafirmando o papel do país como ator relevante nas discussões internacionais.
Argentina e divergências regionais
Apesar das conquistas, a cúpula também expôs fragilidades na integração regional. A Argentina, sob a presidência de Javier Milei, destoou da abordagem brasileira em temas como a Agenda 2030 da ONU, igualdade de gênero e tributação de grandes fortunas. Em suas declarações, Milei argumentou: “A solução para a fome e a pobreza é reduzir o tamanho do Estado e liberar os mercados”. Essa posição ilustra as diferenças ideológicas entre os dois países e as dificuldades de alinhar uma estratégia comum no Sul Global.
A resistência inicial de Milei à assinatura da declaração final evidenciou a polarização política e os desafios para a construção de um bloco regional coeso. Essas tensões não apenas enfraquecem a integração sul-americana, como também limitam a capacidade do Brasil de liderar uma agenda regional alinhada com suas propostas internacionais.
China, EUA e o desafio da multipolaridade
A cúpula ocorreu em um momento de intensificação da rivalidade entre China e Estados Unidos, forçando o Brasil a buscar um equilíbrio delicado. A presença de Xi Jinping reforçou os laços sino-brasileiros, especialmente no comércio e nas iniciativas pela multipolaridade. Por outro lado, Joe Biden, em um momento de transição política nos EUA, utilizou o evento para reafirmar o compromisso norte-americano com o financiamento climático e a regulação tecnológica.
A declaração de Lula de que “o futuro será multipolar” reflete uma visão estratégica, mas também as dificuldades de conciliar os interesses das duas maiores potências. Economicamente, o Brasil depende da China, mas culturalmente e politicamente mantém proximidade com o Ocidente. Essa ambiguidade é característica de países emergentes que buscam afirmar sua autonomia em um cenário internacional polarizado.
Omissões e limites do G20
Uma das principais críticas ao evento foi a ausência de discussões aprofundadas sobre conflitos internacionais. A guerra na Ucrânia e a escalada da crise Israel-Hamas receberam apenas menções genéricas, refletindo a natureza econômica do G20, mas também sua incapacidade de tratar de questões centrais de segurança internacional.
Para o Brasil, essa ausência representou uma oportunidade perdida de articular sua posição como mediador internacional. Embora tenha buscado evitar divisões entre os membros, a falta de um posicionamento mais incisivo limita a credibilidade do país como um ator influente em temas de paz e segurança.
Legado e o futuro do Brasil no G20
A Cúpula do G20 de 2024 no Brasil deixou um legado misto de avanços e desafios. Entre os pontos positivos, destacam-se o lançamento da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, os compromissos com a tributação progressiva e a liderança nas discussões climáticas. O apoio à COP30 em Belém do Pará reforça o protagonismo do país na agenda ambiental e climática. No entanto, tensões regionais, ambiguidades geopolíticas e a ausência de discussões sobre conflitos internacionais destacaram as limitações da política externa brasileira.
Para transformar sua aspiração por liderança em impacto concreto, o Brasil precisará superar desafios internos e externos. Internamente, deve fortalecer suas instituições e buscar maior consenso sobre a importância de uma política externa consistente. Internacionalmente, é necessário articular posições mais assertivas e construir alianças que fortaleçam sua voz nos fóruns multilaterais.
Conclusão
A presidência brasileira do G20 simbolizou tanto as ambições do país como líder do Sul Global quanto as contradições da ordem mundial contemporânea. O evento foi um espaço de conquistas importantes, mas também de revelação de limitações. O desafio do Brasil será consolidar as propostas apresentadas e transformá-las em resultados tangíveis.
O legado dessa cúpula dependerá da capacidade do país de equilibrar ambições com pragmatismo, mantendo sua posição como promotor do diálogo e da cooperação internacional. Em um mundo fragmentado, o Brasil tem a oportunidade de liderar por meio de uma agenda de inclusão, justiça e sustentabilidade, deixando um impacto duradouro tanto para si quanto para o sistema internacional.