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Por que o Nobel da Paz de 2025 revela mais sobre o Ocidente do que sobre a Venezuela
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Por que o Nobel da Paz de 2025 revela mais sobre o Ocidente do que sobre a Venezuela

O Prêmio Nobel da Paz é frequentemente percebido como a mais alta celebração da virtude humana, sendo uma distinção que transcende fronteiras e reconhece esforços universais em favor da harmonia entre os povos. Contudo, essa imagem idealizada encobre um fato essencial: o Nobel da Paz não é um espelho da humanidade, mas o reflexo das expectativas e valores do comitê que o concede. Sua legitimidade não decorre de uma representatividade universal, mas da autoridade simbólica acumulada por uma instituição que, desde 1901, fala em nome de uma determinada visão de mundo.

Essa distinção é crucial. O Nobel da Paz não traduz o consenso do planeta sobre o que significa paz; traduz uma interpretação política da paz, construída a partir de uma matriz ocidental liberal. O prêmio nasce e se consolida no interior de uma cultura política europeia, cuja definição de paz se confunde com ordem, estabilidade e governança institucional. Desde a Guerra Fria, essa concepção foi incorporada à narrativa de que a paz duradoura depende da difusão da democracia representativa, do livre mercado e do multilateralismo, que são os pilares da chamada ordem liberal internacional (Ikenberry, 2018).

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Medal Nobel Peace Prize” by ProtoplasmaKid is licensed under CC BY-SA 4.0

Sob essa lógica, o Nobel da Paz funciona como um instrumento de soft power: um meio de reafirmar valores, moldar agendas e legitimar atores alinhados a determinado projeto de mundo. Suas escolhas raramente são neutras. Quando o prêmio é concedido a Barack Obama em 2009, a União Europeia em 2012, ou à bielorrussa Svetlana Tsikhanouskaya em 2020, o gesto é menos sobre realizações concretas e mais sobre a reafirmação de uma narrativa. Tratam que a paz coincide com a defesa da democracia liberal contra o autoritarismo. Trata-se de um discurso performativo: ao premiar, o comitê produz a realidade que deseja ver reconhecida.

Essa característica política do prêmio se torna ainda mais evidente em momentos de crise sistêmica. O Nobel da Paz de 2025, concedido à venezuelana María Corina Machado, insere-se exatamente nesse contexto. Diante do enfraquecimento da ordem liberal e do retorno de projetos autoritários e populistas em várias regiões, a escolha do comitê parece menos uma surpresa e mais uma declaração estratégica. Ao premiar uma líder liberal, identificada com a oposição a um regime autoritário na América Latina, o Nobel não apenas homenageia uma trajetória individual; ele envia uma mensagem política ao mundo.

Essa mensagem é clara: reafirmar a democracia liberal como condição indispensável à paz internacional. O próprio comunicado do Comitê Norueguês do Nobel sustenta que “a democracia é uma pré-condição para uma paz duradoura”. Nesse enunciado, condensam-se décadas de continuidade normativa. Paz, aqui, não é entendida como cessação da violência ou promoção da justiça social, mas como o restabelecimento de uma ordem política legítima segundo os parâmetros da governança liberal. Em outras palavras, o Nobel continua a defender uma paz institucional, produzida de cima para baixo, e não uma paz emancipada, construída a partir das margens e dos sujeitos históricos do Sul Global.

No entanto, essa escolha revela também o paradoxo moral do prêmio. Ao privilegiar determinados atores, o Comitê reafirma um campo específico de legitimidade, excluindo outros. A laureação de Machado ocorre no mesmo momento em que jornalistas, trabalhadores humanitários e civis são mortos em zonas de conflito como Gaza e Sudão, em realidades nas quais a paz é uma questão de sobrevivência, não de representação institucional. Essa assimetria de reconhecimento reforça a crítica recorrente de que o Nobel da Paz, ao longo de sua história, tem premiado a paz que preserva a ordem, e não a paz que a transforma (Hobsbawm, 1994).

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Flickr – Government Press Office (GPO) – THE NOBEL PEACE PRIZE LAUREATES FOR 1994 IN OSLO.” by Saar Yaacov, GPO is licensed under CC BY-SA 3.0

Dessa forma, o prêmio de 2025 não deve ser interpretado apenas como um reconhecimento a uma figura política venezuelana, mas como um ato de posicionamento da ordem liberal internacional. Ele reafirma quem tem o direito de definir o que é paz e quem merece representá-la. O Nobel, portanto, não é uma cerimônia moral acima das disputas do mundo, é justamente uma arena simbólica onde as disputas pelo significado da paz se materializam.

Ao final, compreender o Nobel da Paz é compreender o poder da narrativa. Em 2025, o Comitê não apenas escolheu uma vencedora; escolheu uma versão do mundo. Escolheu defender a democracia liberal como último horizonte civilizatório em meio à crise da globalização. E, com isso, reiterou uma velha lição das Relações Internacionais: a paz, quando institucionalizada, raramente é neutra, ela é, quase sempre, a continuidade da política por outros meios.

A diplomacia simbólica do Comitê Norueguês

Para compreender o alcance político do Prêmio Nobel da Paz, é necessário reconhecer que o comitê responsável por sua atribuição atua como um agente de política internacional, e não como mero júri filantrópico. Seu poder é essencialmente simbólico, mas de enorme repercussão: cada escolha envia um sinal normativo ao sistema internacional sobre quais valores, práticas e atores devem ser entendidos como legítimos promotores da paz.

Diferentemente das demais categorias do Nobel, o da Paz é deliberadamente aberto e ambíguo. Sua formulação original,  onde “à pessoa que mais ou melhor tenha trabalhado pela fraternidade entre as nações”, deixa amplo espaço de interpretação. Ao longo do século XX, essa flexibilidade permitiu ao comitê agir como uma diplomacia moral da Europa, traduzindo tensões em gestos de reconhecimento. Premiar é, nesse sentido, um ato diplomático: um modo de exercer influência sem recorrer ao poder coercitivo.

A história do prêmio revela essa vocação política. Durante a Guerra Fria, a distinção foi usada para afirmar a legitimidade ocidental diante do bloco soviético, celebrando ativistas de direitos humanos e dissidentes que simbolizavam resistência ao autoritarismo comunista. No pós-Guerra Fria, a agenda deslocou-se para o reforço da governança liberal no mundo globalizado, exaltando líderes, instituições e movimentos que reforçassem os padrões eurocêntricos, da democracia representativa e da economia de mercado. O prêmio concedido à União Europeia em 2012 ou ao Quarteto de Diálogo Nacional da Tunísia em 2015 expressa essa continuidade histórica: o Nobel atua como um mecanismo de reafirmação da ordem vigente e de seus guardiões normativos.

Esse caráter performativo faz do Nobel da Paz uma ferramenta de poder simbólico comparável à diplomacia pública. O Comitê Norueguês, embora formalmente independente, posiciona-se dentro de um campo geopolítico preciso: o da Europa Ocidental, socialmente vinculada às instituições transatlânticas e ideologicamente comprometida com o projeto liberal. Suas decisões, portanto, refletem as prioridades e percepções de segurança do Ocidente, que associa a paz à estabilidade institucional e ao equilíbrio do sistema de Estados.

A escolha de María Corina Machado em 2025 insere-se nessa tradição. Num momento em que o liberalismo político enfrenta contestação tanto por regimes autoritários quanto por populismos internos, o Comitê utilizou o prêmio como ato de reafirmação normativa. Premiar uma líder liberal latino-americana que desafia um governo classificado como autoritário é, ao mesmo tempo, um gesto de solidariedade ideológica e uma mensagem política: o Ocidente ainda detém o monopólio de definir o que é “democracia”, “autoritarismo” e, por extensão, “paz”.

Trata-se de uma forma de diplomacia simbólica em que a Noruega — e, por extensão, a Europa liberal — assume o papel de árbitro moral. Ao reconhecer Machado, o Comitê busca restaurar a confiança em uma narrativa em declínio: a de que a democracia liberal continua sendo o horizonte moral do sistema internacional. Em tempos de fragmentação geopolítica e crise do multilateralismo, o Nobel age como voz institucional de resistência, preservando o ideal da ordem liberal como se fosse uma verdade universal.

Mas, ao fazê-lo, o prêmio também revela suas fronteiras: ao celebrar certas vozes, silencia outras. A mensagem de 2025 é clara, e, precisamente por isso, controversa. Ao reiterar que paz e democracia são indissociáveis, o Nobel reafirma sua função histórica de traduzir interesses de poder em linguagem moral, transformando escolhas políticas em virtudes universais. Assim, a cada edição, o prêmio lembra que a paz, tal como o Comitê a enuncia, é sempre um projeto situado, produzido dentro de uma geografia de valores, e não uma verdade compartilhada pela totalidade da humanidade.

A Nobel da Paz María Corina Machado e Sua Agenda

María Corina Machado consolidou-se como a principal liderança liberal da oposição venezuelana após décadas de deterioração institucional sob Chávez e, sobretudo, sob Maduro. Sua projeção recente decorre de três vetores: (i) a vitória expressiva nas primárias oposicionistas de 2023, organizadas pela sociedade civil mesmo sob intimidações; (ii) a inelegibilidade imposta em 2024, que a levou a transferir capital político para uma candidatura de unidade; e (iii) a capacidade de mobilização e coordenação territorial com redes cívicas, observadores e comitês locais, mantendo a disputa no registro eleitoral. Isto é, convertendo indignação em rito institucional e não apenas em protesto difuso. É essa conversão do conflito em procedimento que o Comitê tende a valorizar.

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María Corina Machado perfil” by SantanaZ is licensed under CC CC0 1.0

O que o Comitê premia, substantivamente. A justificativa central de 2025 articula a tese de que “democracia é pré-condição da paz”. Na leitura do Comitê, Machado encarna a resiliência cívica diante de um aparato de repressão e manipulação eleitoral: persiste em disputar regras do jogo, sustenta a unidade opositora quando pessoalmente excluída da competição, e aposta em mecanismos de verificação e pressão internacional para reabrir canais de alternância de poder (Nobel Committee, 2025). A mensagem não é sobre um acordo de paz tradicional, mas sobre restauração institucional como caminho para reduzir violência política e fragmentação social.

Por que ela teve votos?

Em um ambiente de colapso de serviços, hiperinflação anterior e migração em massa, três razões ajudam a entender a aderência popular:

  1. Cansaço estrutural com o autoritarismo e com a crise econômica prolongada;
  2. Legibilidade programática: Machado oferece um enredo simples de reconstrução — Estado de Direito, reancoragem macroeconômica, reinserção internacional e recomposição de serviços — que fala a amplos estratos sociais urbanos;
  3. Capilaridade cívica: seu campo organizou primárias, centros de votação, cadeia de custódia e monitoramento cidadão, convertendo simpatia em comportamento eleitoral. Mesmo barrada, ela transferiu voto com eficiência, sinal de liderança consolidada. Em síntese, seu voto não é apenas anti-governo; é voto pró-procedimento: a crença de que urnas, fiscalização e coordenação social ainda podem produzir mudança.

Pontos de atrito e ambivalências

A mesma trajetória que sustenta a premiação alimenta críticas: acusações de proximidade com Washington, defesa de sanções e retórica dura contra o regime; opositores argumentam que isso securitiza a política e prolonga sofrimentos materiais (Ellner, 2025). Em termos analíticos, o Nobel reconhece a paz como ordem (regras, eleições, limitação do poder) e não a paz como distribuição de bem-estar imediato. Essa diferença conceitual explica por que setores do Sul Global a veem como paz liberal, enquanto movimentos humanitários demandam reconhecimento de atores no terreno de conflitos abertos.

Impacto geopolítico imediato

Há quatro efeitos de primeira ordem:

  1. Pressão reputacional sobre Caracas. A outorga aumenta o custo internacional de práticas repressivas e endurece a vigilância externa sobre eleições, detenções e perseguições a opositores. Ao mesmo tempo, pode levar o governo a fechar fileiras, elevando o risco de retaliações domésticas no curto prazo.
  2. Rearranjo de coalizões diplomáticas. A premiação ancora a narrativa ocidental (UE, EUA, OEA) de que a estabilidade venezuelana depende de eleições competitivas e de liberação de presos políticos, e cria incentivos para condicionalidades calibradas em negociações sobre sanções e licenças petrolíferas. Países mediadores, nisso inclui-se o Brasil, ganham tração para propor salvaguardas eleitorais e calendários verificáveis.
  3. Mercados de energia e migração regional. Qualquer sinal de destravamento institucional tende a repercutir em expectativas no mercado de petróleo e em fluxos migratórios intra-regionais. A mensagem do Nobel, ao elevar a probabilidade percebida de transição pactuada, pode reduzir prêmios de risco de médio prazo; inversamente, uma reação repressiva eleva incertezas e pressiona fronteiras na Colômbia, Brasil e Caribe.
  4. Disputa pela gramática da paz no sistema internacional. Em nível sistêmico, o prêmio reafirma a ordem liberal em um ano de múltiplas guerras e retrocessos democráticos, contrapondo-se a narrativas iliberais que dissociam soberania de direitos. Para potências revisionistas, o gesto é lido como instrumentalização normativa; para democracias liberais, como sinal de compromisso com eleições e liberdades civis (Ikenberry, 2018).

Efeito doméstico

Dentro das fronteiras venezuelanas espera-se que o prêmio traga legitimidade e coordenação. No plano interno, o Nobel eleva a legitimidade internacional da oposição e produz um escudo diplomático parcial para lideranças e redes cívicas. Isso pode:

  • Melhorar coordenação entre facções oposicionistas e reduzir custos de cooperação;
  • Aumentar custos de repressão visível para o governo, sobretudo em ciclos eleitorais;
  • Ampliar riscos de radicalização de setores do regime que se opõem à abertura política, e que podem reagir preferindo medidas de força em vez de concessões graduais

Como ler a premiação: três chaves analíticas.

Institucionalista → o Comitê privilegia capacidade de transformar conflito em regra; o prêmio busca tracionar uma transição, não sancionar moralmente o passado.

Geopolítica → o Nobel reposiciona a América Latina como fronteira normativa da disputa liberal versus autoritária, aproximando agendas de UE/EUA e testando a autonomia diplomática regional.

Sociopolítica → ao celebrar Machado, a mensagem ao eleitor venezuelano é que procedimentos contam; ao aparato estatal, que custos de manipular procedimentos subiram.

O Nobel de 2025 escolhe uma estratégia, e não um fim. Aposta que regras e competição política são o caminho mais provável para reduzir violência e reconstruir confiança social. Seus críticos lembram que paz sem justiça material é frágil e que sanções produzem danos reais (Ellner, 2025). Ambas as posições podem ser verdadeiras. 

A sociedade deve entender o prêmio como política pública simbólica: um instrumento de engenharia normativa que busca alterar cálculos de custo-benefício de atores domésticos e externos. Em 2025, essa engenharia mira Caracas, mas seu alcance reordena expectativas de Brasília a Bruxelas.

Considerações Finais

O Prêmio Nobel da Paz de 2025 não pode ser compreendido como um episódio isolado, mas como sintoma da fase atual da ordem liberal internacional. Diante do desgaste do multilateralismo, da ascensão de regimes autoritários e da crise de legitimidade das democracias representativas, o Comitê Norueguês recorreu ao gesto que domina sua história: reafirmar a fé na democracia liberal como a única via legítima para a paz global.

A escolha de María Corina Machado consolida esse movimento. Seu nome não representa apenas a resistência venezuelana a um regime autoritário; simboliza o esforço de manter viva a narrativa de que a paz é inseparável de eleições competitivas, da economia de mercado e da inserção no sistema internacional liderado pelo Ocidente. Nesse sentido, o prêmio atua como uma intervenção discursiva, como uma forma de diplomacia moral que tenta estabilizar o campo liberal em um momento de erosão de sua autoridade simbólica.

Mas há uma ironia inerente a esse gesto. Ao reafirmar a centralidade da democracia liberal como horizonte da paz, o Nobel revela também a crise de universalidade desse ideal. O prêmio não fala por toda a humanidade, e sim por uma geografia de valores, um eixo institucional que insiste em preservar sua hegemonia normativa. 

Assim, enquanto o Comitê proclama a paz como condição da democracia, parte significativa do mundo observa o prêmio como expressão de um poder desigual de definir o que é paz, quem é legítimo e quem é condenado ao silêncio.

Do ponto de vista das Relações Internacionais, a premiação de 2025 é duplamente significativa. No plano estrutural, reafirma o papel do Ocidente como árbitro moral do sistema, como o centro que distribui legitimidade e define parâmetros de civilidade. No plano estratégico, reintroduz a América Latina no imaginário geopolítico do liberalismo, não como sujeito autônomo, mas como fronteira moral entre liberdade e autoritarismo, um terreno simbólico de disputa pela continuidade da ordem liberal.

O Nobel da Paz, portanto, não é apenas um prêmio. É um ato de poder narrativo, um instrumento de política internacional que transforma moral em política e política em moral. Sua força não está em mudar realidades materiais, mas em preservar a arquitetura simbólica do mundo ocidental. E enquanto o Comitê continuar a operar sob essa lógica, cada edição do prêmio será menos sobre a paz, e mais sobre quem tem o direito de defini-la.

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Analista de Relações Internacionais at ESRI | Website |  + posts

Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor. Contato profissional: guilherme.bueno(a)esri.net.br

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