O conflito Israel-Palestina é uma questão geopolítica complexa e persistente, marcada por décadas de violência e instabilidade. Em 7 de outubro de 2023, um ataque do grupo palestino Hamas contra Israel desencadeou uma nova escalada de violência. Israel respondeu com bombardeios na Faixa de Gaza, visando bases do Hamas, mas atingindo também alvos civis, como escolas e hospitais. Esse cenário levanta questionamentos sobre a legitimidade das ações israelenses, especialmente sob a ótica do Direito Internacional Humanitário e da teoria da guerra justa.
A presente pesquisa possui caráter exploratório e tem como metodologia a revisão bibliográfica de conceitos como jus ad bellum e jus in bello e das normas do DIH para analisar a falta de eficácia dos mecanismos de defesa humanitária e resolução de conflitos existentes no sistema internacional contemporâneo.

Embora Israel justifique suas ações como autodefesa, a continuidade dos ataques sugere motivações que vão além da segurança, como a expansão territorial e a expulsão da população local da região. O trabalho destaca a fragilidade das normas internacionais e a falta de uma resposta eficaz das instituições internacionais e principais atores para proteger os direitos fundamentais das populações envolvidas, concluindo que o conflito deve ser resolvido sem que haja impunidade a favor dos crimes contra a humanidade cometidos por ambos os lados, mas especialmente contra a população palestina.
INTRODUÇÃO
O conflito entre Israel e Palestina é uma das questões geopolíticas mais complexas dentro do sistema internacional atual, tendo em vista o seu longo histórico de disputas armadas, bombardeios e instabilidade política regional constante. No dia 7 de outubro de 2023, após mais de 70 anos de embates entre as Forças Armadas do Estado de Israel e forças de grupos palestinos, houve mais ataque que deu origem a uma nova escalada de violência na região: o grupo Hamas (Movimento de Resistência Islâmica), organização política e militar palestina, com domínio sobre o território de Gaza, bombardeou o território israelense diretamente, em uma de suas investidas mais ousadas dos últimos anos.
A reação do Estado de Israel, sob o pretexto de legítima defesa, foi direcionar suas tropas para a região da Faixa de Gaza e iniciar uma série de ataques aéreos e terrestres no local, objetivando a dominação da área e a destruição de bases do Hamas. No entanto, os impactos dos ataques em Gaza levantaram uma série de questionamentos quanto à legitimidade da resposta de Israel.
De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (ENUCAH), dados do Ministério de Saúde de Gaza apontaram que, até dezembro de 2024, mais de 45 mil pessoas haviam sido vitimadas, dentre as quais aproximadamente 50% são mulheres e crianças. Além disso, houve cerca de 108 mil feridos e quase 2 milhões de indivíduos foram forçados a se deslocar internamente para fugir das zonas de guerra.
Além disso, grande parte dos alvos dos bombardeios eram não-militares, como escolas, hospitais e locais religiosos. Após meses de investidas e um cenário de destruição e dizimação, Israel não parece ter intenções de atenuar seus ataques militares e parece haver pouca ou nenhuma ajuda de entidades internacionais para a resolução do conflito, especialmente no âmbito humanitário.
A partir desse contexto, e levando em consideração a continuidade dos ataques israelenses ao território palestino e os efeitos disso à população civil de Gaza, o presente trabalho gira em torno da seguinte pergunta: “A ofensiva israelense no pós 7 de outubro de 2023 está de acordo com as normas do direito internacional de jus in bello e jus ad bellum?”. Para respondê-la, o artigo discorre sobre as controvérsias do comportamento de Israel na perspectiva do Direito Internacional Humanitário e da teoria da guerra justa, questionando se as normas existentes são realmente eficazes para conter a ação dos Estados durante conflitos armados.
Para tal, são retomados os conceitos de jus ad bellum (direito de fazer a guerra) e jus in bello (o direito na guerra), expressões utilizadas há séculos na literatura e retomadas mais recentemente por Michael Walzer, como base para levantar a possibilidade de uma fratura nos princípios do direito internacional no conflito Israel-Palestina. Através disso, busca-se refletir acerca dos interesses distintos de diferentes atores na comunidade internacional, em especial em relação à vontade política de grandes potências quanto à continuidade da guerra.
A metodologia utilizada neste artigo possui caráter exploratório e compreendeu uma revisão bibliográfica de temáticas como a teoria da guerra justa, os conceitos de jus in bello e jus ad bellum e as principais normas do Direito Internacional Humanitário, como as Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais, para relacioná-los com o contexto atual do conflito entre Israel e Palestina após os ataques do Hamas em 2023 e a questão de legitimidade das guerras, bem como o posicionamento da comunidade internacional frente a elas.
A NOÇÃO DE GUERRA JUSTA E OS APARATOS LEGAIS INTERNACIONAIS
As discussões sobre a legitimidade da guerra datam de séculos atrás, desde pensadores como Cícero, representante da filosofia jurídica latina que versava acerca da natureza dos conflitos bélicos nas Repúblicas, até Michael Walzer, filósofo contemporâneo que resgata o assunto no contexto de guerras cada vez mais complexas e controversas ao redor do mundo. De acordo com Walzer (2003), a guerra é sempre julgada duas vezes: primeiro, com referência aos motivos que os Estados têm para lutar; o segundo, com referência aos meios que adotam. A partir disso, uma guerra pode ser justa ou injusta, e também pode ser travada de forma justa ou injusta.
As expressões em latim jus ad bellum (a justiça de guerrear) e jus in bello (a justiça no guerrear) são utilizadas para julgar os conflitos e guiar o comportamento dos atores externos em relação a eles, seja interferindo na guerra para cessá-la ou expressando apoio a um dos beligerantes. Jordão (p. 5, 2008) aponta que, para autores como Rawls, Walzer e Habermas, mesmo em uma guerra, onde as situações são extremas, existe e deve existir uma moralidade no campo de batalha.
A própria ONU possui uma resolução versando acerca do uso da força militar contra outros países a partir de certos critérios de legitimidade. Em 1945, a organização estabeleceu em uma carta a regra geral de proibição do uso da força nas relações entre nações, a não ser em caso de legítima defesa ou por meio de medidas militares decretadas pelo Conselho de Segurança como resposta a uma ameaça à paz.
Posteriormente, através da Resolução 688 do Conselho de Segurança da ONU, estabelecida no ano de 1991, os Estados passaram a ter direito de intervir em outros mais diretamente, caso estes criem ameaças para a segurança nacional ou internacional – comumente chamado de direito de ingerência. Tal ação é justificada caso o Estado: 1. Agrida sua própria população; 2. Não garanta a segurança de sua população; 3. Agrida outro Estado (Jordão, p. 5, 2008).
Após a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional passou a angariar esforços para evitar o surgimento de novos conflitos armados de magnitude semelhante. No entanto, apesar de regras estabelecidas na ONU quanto ao uso da força e à intervenção armada, a segunda metade do século XX não escapou das convulsões de guerra. Para Luquini (2003), o “banimento da guerra” pelo ordenamento jurídico internacional não foi suficiente para provocar seu real desaparecimento. Dessa maneira, diz o autor, “tornou-se necessário o estabelecimento de normas reguladoras da condução das hostilidades, impondo às partes em conflito um padrão mínimo humanitário e impedindo o uso descontrolado da força.” (Luquini, 2003, p. 128).
Assim, surge o Direito Internacional Humanitário (DIH), que trata de embasar legalmente essas normas e garantir a adesão das nações ao redor do globo. Tais aparatos servem principalmente para garantir a segurança de civis e beligerantes, evitar o cometimento de crimes de guerra, responsabilizar os Estados e indivíduos em caso de infração de Direitos Humanos, e regular a ação de operações de paz e ajuda humanitária. Com isso, ao invés de simplesmente proibir a guerra como forma de resolução de conflito, estabelecem-se regras para a sua procedência (ou seja, o jus in bello em sua forma pura).
O DIH possui nas Convenções de Genebra seus maiores dispositivos para a regulação de conflitos militares. Qualquer país signatário de tais tratados que descumpra alguma das normas estabelecidas é considerado criminoso de guerra e pode ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional. Para o escopo deste artigo, haverá um foco na Quarta Convenção de Genebra, adotada em 1949, e que trata especificamente da proteção de civis em tempos de guerra. Conforme o Art. 3° deste tratado, estabelece-se que:
As pessoas que não tomem parte directamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas e as pessoas que tenham sido postas fora de combate por doença, ferimentos, detenção, ou por qualquer outra causa, serão, em todas as circunstâncias, tratadas com humanidade, sem nenhuma distinção de carácter desfavorável baseada na raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo. (1949)
Além disso, também merece destaque o Protocolo Adicional I, assinado em 1977 durante a Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos conflitos armados. Este protocolo visa atualizar certas normas das Convenções previamente adotadas e aprofundar algumas temáticas, focando no tratamento das vítimas de conflitos internacionais e no respeito ao pessoal médico envolvido no resgate e cuidado de tais vítimas. Há também a garantia da proteção de bens civis, como unidades hospitalares, escolas e locais de culto, respectivamente presentes nos artigos 12°, 52° e 53° do Protocolo Adicional I.
Também presente no Protocolo Adicional I está a proibição dos chamados “ataques indiscriminados”, definidos no artigo 51° como ataques em que a) não há um objetivo militar determinado; b) sejam utilizados métodos ou meios de combate que não possam ser direcionados exclusivamente a um objetivo militar específico; c) sejam utilizados métodos ou meios de combate cujos efeitos não possam ser controlados e limitados. Assim, estabelecem-se limites para a atuação bélica das nações em caso de conflitos, evitando a utilização de armas de extermínio em massa e a ameaça à segurança de partes não envolvidas diretamente no confronto.
Apesar da existência desses aparatos legais internacionais para regular conflitos armados, é importante analisá-los de forma crítica e perceber se sua aplicação está sendo eficaz nas diversas guerras que já ocorreram após seu surgimento. No caso deste artigo, a análise será voltada às ações de Israel durante as diversas escaladas do embate entre esse Estado e a região da Palestina, principalmente com o grupo militar Hamas. Antes disso, é importante retomar o histórico dessas tensões e como elas foram construídas ao longo das décadas.
O conflito entre árabes e judeus na região da Palestina já existe há mais de um século, sendo marcado por disputas de cunho territorial, político e religioso. Ainda no final do século XIX, surgiu o movimento sionista em diversas comunidades judaicas pela Europa, defendendo a criação (ou restauração) de um Estado judeu independente localizado na Palestina. O território foi escolhido por sua intensa ligação com os escritos bíblicos, sendo considerado um símbolo de esperança para um povo que não possuía local fixo.
Com o crescimento de movimentos nacionalistas na Europa, como os que levaram à criação da Alemanha e da Itália, cresceu a perseguição de populações judaicas no continente europeu e em outras partes do mundo. Como resposta, houve o fortalecimento do sionismo, representado pelo slogan “Uma terra sem povo para um povo sem terra”, referenciado primeiramente por Israel Zangwill, autor britânico da vanguarda sionista. Tal movimento político era uma tentativa de fortalecer o espírito nacionalista dos judeus, e tomou como base a percepção de que os árabes palestinos não deveriam ser considerados residentes legítimos do território, que deveria ser dado por direito à população judaica.
Durante o Mandato Britânico da Palestina (1922-1948), ocorreram diversas ondas de migração judaica na região, fator que atiçou tensões entre esse grupo e os habitantes árabes já residentes no local. Nesse contexto, insurge a Revolta Árabe de 1936-1939, motivada principalmente pela ascensão dos sentimentos nacionalistas de ambos os lados. De acordo com Ghassan Kanafani (2024), o relatório da Comissão Real emitido sobre o conflito atribui a erupção dele a duas causas principais: o desejo dos árabes de conquistar independência nacional e sua aversão e receio do estabelecimento de um “lar nacional judeu” na Palestina.
A escalada dos embates armados entre esses dois povos, bem como o genocídio de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, propiciaram a legitimação ainda maior do movimento sionista, consequentemente, impulsionaram a mobilização internacional para a criação de um Estado judaico. Assim, no ano de 1947, as Nações Unidas se reuniram na Assembleia Geral e estabeleceram através da Resolução 181 a partilha da Palestina em dois estados, um árabe e um judeu. A decisão se firmou mediante votação de todos os países-membros, e contou com 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções.
Entre os votos contrários, destacam-se os seis Estados árabes integrantes da ONU na época: Egito, Síria, Líbano, Iraque, Arábia Saudita e Iêmen, além de quatro países muçulmanos não árabes: Afeganistão, Paquistão, Irã e Turquia.
A declaração de Israel como um Estado judeu independente aconteceu em 14 de maio de 1948, juntamente com o fim do Mandato Britânico na Palestina. No dia seguinte, mais um conflito irrompeu: a Guerra Árabe-Israelense de 1948, conhecida pelos residentes de Israel como “Guerra da Independência”. De acordo com o Institute for Middle East Understanding, após essa guerra, Israel expandiu suas terras em mais de 20 mil km2, expulsando cerca de 750.000 palestinos de suas casas e obrigando-os a viver como refugiados (IMEU, 2023). O instituto também caracteriza essa onda de migração forçada como uma espécie de “limpeza étnica” coordenada pelas forças israelenses.
O processo de criação do Estado de Israel iniciou um período denominado pelo povo palestino como “Nakba”, palavra em árabe que significa “catástrofe” ou “desastre”. A Nakba foi marcada pelo êxodo de quase um milhão de palestinos devido às investidas militares do exército israelense ao longo dos territórios ainda não dominados. Segundo o IMEU, mais de 400 vilas e cidades palestinas foram destruídas ou repopuladas por judeus entre 1948 e 1950. Os principais destinos dos palestinos foram Jerusalém Oriental, Cisjordânia, Líbano, Síria e a Faixa de Gaza, e atualmente grande parte dessa população está em campos de refugiados, impossibilitada de viver normalmente e forçada a lidar com a opressão e domínio de Israel em níveis diversos.
A partir do estabelecimento do Estado de Israel, a região foi terreno de disputas constantes, com destaque para a Guerra dos Seis Dias de 1967, na qual os territórios da Faixa de Gaza, Península do Sinai, Jerusalém Oriental, Cisjordânia e as Colinas de Golã foram dominados por Israel, sendo que alguns deles estão sob tutela do país até hoje.
Além disso, é válido citar as revoltas populares palestinas, conhecidas como Intifadas, caracterizadas por tentativas da população árabe residente em áreas dominadas por Israel de se libertar dessa situação, em busca de melhores condições de vida e do reconhecimento da Palestina como um Estado soberano, assegurando seus territórios e existência do seu povo. Foram revoltas de cunho espontâneo, que rapidamente ganharam atenção internacional por conta da resposta violenta de Israel aos levantes populares, resultando em diversas mortes de civis.
A ESCALADA DO CONFLITO EM 2023
Em um contexto mais recente, a região da Faixa de Gaza é particularmente um dos principais focos do conflito Israel-Palestina. Concentrando mais de 2 milhões de palestinos em seu território, foi palco da mais recente escalada da guerra, ocorrida em 7 de outubro de 2023.

Neste dia, combatentes do grupo militar palestino Hamas lançaram centenas de foguetes e realizaram uma invasão ao território israelense, matando quase mil pessoas e sequestrando outras centenas como reféns. Como resposta à invasão, o primeiro-ministro israelense declarou sua pretensão de eliminar os líderes do grupo militar inimigo e destruir suas bases militares. A partir de então, a Faixa de Gaza e os demais locais onde o Hamas se estabelece receberam inúmeros ataques aéreos e terrestres, pondo início a um momento sem precedentes na história do conflito árabe-israelense.
Além dos ataques bélicos, Israel impôs diversos bloqueios à região de Gaza como forma de enfraquecer as forças do Hamas, porém o efeito decaiu sobre toda a população palestina da região. Água, comida, energia, remédios e combustível tornaram-se ainda mais escassos, e o acesso dos civis a tais suprimentos só é possível mediante missões humanitárias, embora estas também encontrem diversas dificuldades para adentrar na região.
Apesar dos discursos de representantes políticos israelenses reforçarem o objetivo nacional de destruir o Hamas, os bombardeios e investidas realizadas ao longo dos últimos meses de 2023 e do primeiro semestre de 2024 atingiram diversas escolas, abrigos civis e regiões urbanas comuns, afetando milhares de cidadãos, especialmente mulheres e crianças.
Nesse contexto, é imperativo perceber como a represália israelense deixou de ser apenas um ato de legítima defesa para se tornar uma série de ataques sistematizados objetivando desestabilizar a região de Gaza e impor ainda mais seu domínio na região. Isso se deu a partir do entendimento por parte do Estado de Israel de que a resposta internacional seria limitada, restrita ao Eixo Hezbollah-Síria-Irã, ou seja, nações fronteiriças e já conhecidas pelas forças nacionais, e que apesar de possuírem capacidade bélica significativa, não se comparam à força dos Estados Unidos e outros aliados importantes da nação judaica.
Através dessa conjuntura política e, principalmente, da evolução das hostilidades a partir de 2023, é perceptível que tal situação representa uma fratura grave no Direito Internacional Humanitário, visto que o Estado de Israel atua fora das regras do DIH, desrespeita diversas normas de Direitos Humanos e vai contra quaisquer princípios de guerra justa previamente estabelecidos na sociedade internacional, utilizando o ataque do Hamas ao seu território para promover interesses regionais de expansão e domínio por meio de ataques sucessivos à Faixa de Gaza, sem diferenciar alvos militares e civis. A seguir, busca-se voltar a atenção para essa fratura ocasionada pelas ações israelenses em relação à Palestina e aos povos árabes.
A FRATURA NO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO
Em primeira instância, deve-se considerar a questão entre Israel e Palestina como um tópico amplamente debatido por acadêmicos e em fóruns políticos e, ao mesmo tempo, uma grande falha dos atores internacionais no âmbito de resolução de conflitos. Há mais de 70 anos, diversas tentativas foram feitas para atenuar a situação por meio de tratados e resoluções, como a própria criação do Estado de Israel e os famosos Acordos de Oslo em 1993.
No entanto, os períodos de paz foram breves, e as tensões só aumentaram com o passar do tempo. O teor identitário e religioso do conflito o torna extremamente complexo, visto que uma solução que abarque os interesses de ambos os lados de maneira satisfatória e justa é extremamente difícil de ser elaborada.
No contexto dessa guerra, é preciso entender como as duas partes foram legitimadas ao longo da história, apoiadas por potências e atores com interesses políticos específicos na região, e de que forma esse apoio pode ser percebido na situação atual do conflito. Por um lado, Israel é reconhecida internacionalmente como um Estado de facto e de jure, possuindo estrutura política, jurídica e econômica bem estabelecidas e grandes aliados militares, a exemplo do Egito e dos Estados Unidos.
Isso lhe garante um maior poder de influência em tomadas de decisão feitas por nações estrangeiras em seu território, além de acesso facilitado a canais de comunicação internacionais para defender seus interesses e possibilidade de participação ativa nas Assembleias da ONU, com direito a voto e eleição nos principais órgãos das Nações Unidas.
Enquanto isso, os palestinos, além de terem seu território reduzido a pequenas faixas de terra constituídas atualmente por assentamentos e cercos militares israelenses que dificultam o deslocamento de uma região para a outra, também encontram diversas dificuldades dentro do cenário político global já que, mesmo com um grupo expressivo de países e entidades internacionais reconhecendo seu Estado, a pressão dos EUA e de potências ocidentais para o não reconhecimento ainda dificulta sua participação nos fóruns mundiais. Essa participação limitada é exemplificada por sua condição de Estado Observador na ONU, com seus representantes sentando-se ao fundo do salão da Assembleia Geral e sem possuir poder de voto durante as discussões realizadas.
Para além das questões de legitimidade e poder de articulação internacional, há também uma disparidade clara na relação entre as duas partes, especialmente levando em consideração o regime de ocupação militar construído por Israel nas regiões da Cisjordânia e da Faixa de Gaza ao longo das décadas. No ano de 2022, a Anistia Internacional (AI) publicou um relatório intitulado “O apartheid israelense contra os palestinos: um sistema cruel de dominação e crimes contra a humanidade”, no qual são apontadas diversas evidências da ação sistemática do Estado de Israel para não apenas expulsar os palestinos dos territórios dominados, mas também realizar uma verdadeira “limpeza étnica” com o intuito de tornar a região exclusivamente judaica.
Segundo o relatório, sucessivos governos israelenses têm considerado os palestinos uma “ameaça demográfica”, impondo medidas para controlar e diminuir sua presença e acesso a terras em Israel e nos TPOs (Territórios Palestinos Ocupados). Tais objetivos demográficos são bem ilustrados pelos planos oficiais de “judaizar” áreas de Israel e da Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, que continuam a colocar milhares de palestinos em risco de transferência forçada (Anistia Internacional, 2022).
O relatório exemplifica essa discriminação sistemática através do próprio ordenamento jurídico de Israel, que diferencia cidadãos judeus da população palestina, os quais não apresentam nenhum status de nacionalidade definido. A partir disso, a parcela não judaica residente em Israel e nos territórios próximos não dispõe de muitos direitos e liberdades que são garantidos aos judeus israelenses. Ademais, desde meados da década de 1990, as autoridades israelenses têm imposto restrições de movimento cada vez mais rigorosas aos palestinos residentes nos TPOs. Segundo a AI, uma rede de postos de controle militares, bloqueios de estradas, cercas e outras estruturas controla o movimento dos palestinos dentro dessas áreas e restringe suas viagens para Israel ou para o exterior.
De acordo com Maha Nassar (2023), especialistas da ONU apontam que tais bloqueios são ilegais de acordo com o direito internacional, pois configuram uma espécie de punição coletiva dos palestinos de Gaza, desrespeitando normas internacionais que versam sobre a proteção de civis em tempos de guerra, como as Convenções de Genebra.
Antes de analisar as reações internacionais a tais violações, é necessário apontar que o Estado de Israel não é signatário de diversos mecanismos internacionais defensores dos Direitos Humanos, a exemplo das já citadas Convenções de Genebra, além de não ter assinado o Estatuto de Roma, tratado responsável por estabelecer um dos órgãos mais importantes para a regulação do direito internacional, o Tribunal Penal Internacional. Nesse viés, o país não pode responder diretamente pela violação desses acordos, porém um fator central ainda o posiciona como um infrator: a existência das normas jus cogens do direito internacional.
Tais normas são elaboradas a partir de diversos princípios universais, e objetivam defender os direitos fundamentais dos indivíduos e nações, independentemente da assinatura de tratados ou convenções. Segundo Garcia (2017), as Nações Unidas reconhecem como jus cogens: o direito à autodeterminação de cada povo, a proibição de uso agressivo da força, o direito de legítima defesa, a proibição de genocídio, tortura, escravidão, discriminação racial e hostilidades direcionadas à população civil e os crimes contra a humanidade. Dessa forma, analisando as ações do Estado de Israel durante o conflito contra os palestinos, é possível observar a violação de diversas dessas normas, intensificada após as respostas aos ataques do Hamas em 2023.
Apesar disso, não foram aplicadas sanções significativas ou outras expressões fortes de retaliação internacional em resposta aos atos israelenses. Israel ainda participa ativamente das reuniões da Assembleia Geral, e seus líderes políticos recebem forte apoio de autoridades norte-americanas e europeias.
A continuidade dos ataques ao longo de 2024 fizeram com que o procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional solicitasse a emissão de mandados de prisão contra líderes israelenses e do Hamas, incluindo o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu, por supostos crimes de guerra cometidos durante o conflito em Gaza. No entanto, mesmo que os mandados sejam aprovados, não há qualquer garantia de que tais indivíduos serão julgados, levando em conta a esfera de ação do TPI e o não reconhecimento da jurisdição do tribunal por parte de Israel.
A partir dessa conjuntura, é possível inferir que a existência das normas do DIH, do TPI e da Corte Internacional de Justiça, quando não amparadas por interesses políticos internacionais, não parecem ser efetivas para garantir que violações aos direitos humanos ou aos princípios da guerra justa sejam punidas propriamente. Soma-se isso à discrepância de poder e de influência dos dois atores beligerantes, e é criado um cenário de perpetuação do conflito, que se caracteriza atualmente muito mais como uma questão de dominação racial e limpeza étnica do que uma simples disputa por território.
Sendo assim, embora sejam feitos ataques a alvos civis, e milhares de famílias sofram com bombardeios e dificuldade de acesso a serviços básicos ou refúgio, as iniciativas humanitárias se ausentam cada vez mais, seja por falta de iniciativa ou pelas limitações impostas por Israel às autoridades de serviço médico e auxílio internacional. Ao mesmo tempo, os posicionamentos das demais nações não possuem um senso de urgência verdadeiro, e as discussões feitas na Assembleia Geral parecem não levar a lugar algum por conta do posicionamento estadunidense favorável à causa israelense.
CONCLUSÃO
Por fim, fica claro que a questão da legitimidade das guerras e a noção de guerra justa vão muito além de discussões morais e humanitárias, sendo muito mais relacionadas a aspectos geopolíticos e econômicos e refletindo diretamente nas relações de poder existentes entre os atores do sistema internacional.
Os conceitos de jus in bello e jus ad bellum encontram-se traduzidos em conferências, acordos e cartas que visam regular os conflitos entre Estados, porém são frequentemente utilizados como instrumentos para justificar ações violentas de nações mais fortes nas mais fracas. Tais termos deveriam servir como pilares para a deliberação coletiva das nações frente a cenários de guerra, a fim de que houvesse mobilizações para proteger os direitos fundamentais das populações envolvidas e também esforços conjuntos visando o cessar-fogo. Infelizmente, essa não é a realidade em muitos dos casos, principalmente aqueles que não envolvem países do Norte Global.

Com a expansão da crise humanitária na Faixa de Gaza, o apoio à Palestina aumentou e várias manifestações ao redor do globo emergiram, principalmente por conta da continuidade dos bombardeios e bloqueios israelenses mesmo após grande parte da Faixa de Gaza ter sido destruída. Ainda assim, não há perspectivas de uma resolução duradoura ou de punições efetivas contra as forças israelenses frente às violações cometidas aos civis.
A noção de “guerra justa” denota um juízo de valor coletivo da comunidade internacional a partir de certos critérios que tecnicamente seriam impessoais, mas na prática nada mais são do que o resultado de outros fatores – como a posição de determinado país na dinâmica econômica mundial ou sua relação com potências da comunidade internacional. Nesse viés, a legitimidade dos conflitos na verdade não reflete os valores morais previamente estabelecidos como princípios fundamentais das relações internacionais, mas sim a vontade política dos demais atores.
A partir disso, é necessário analisar de maneira crítica e objetiva o estado atual do conflito na Faixa de Gaza, especialmente levando em conta que diversas normas do Direito Internacional Humanitário estão sendo feridas, com ataques diretos a alvos não militares e milhares de vítimas. A falta de ação da comunidade internacional frente a desrespeitos tão diretos às convenções estabelecidas demonstra um senso majoritário de abstenção das entidades humanitárias e dos próprios governos, situação já comum no histórico na disputa Israel-Palestina, revelando a fragilidade das instituições existentes e o afastamento de um futuro mais pacífico.
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Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual do Maranhão.