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Os primeiros 100 dias do poder ilimitado de Trump têm o mundo em suspense
Donald Trump: O Coveiro da Ordem Multilateral e o Parteiro do Protagonismo Chinês no Sistema Internacional
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Donald Trump: O Coveiro da Ordem Multilateral e o Parteiro do Protagonismo Chinês no Sistema Internacional

Resumo

O presente artigo examina o impacto da ascensão de Donald Trump sobre a ordem internacional contemporânea, analisando como suas políticas nacionalistas e isolacionistas contribuíram para o enfraquecimento do multilateralismo e para o fortalecimento do protagonismo chinês no sistema internacional. Parte-se de uma abordagem histórica, traçando a evolução do multilateralismo desde práticas rudimentares na Antiguidade até sua consolidação no pós-Segunda Guerra Mundial, quando instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) surgiram como pilares da governança global.

A vitória de Trump em 2016 marcou uma ruptura paradigmática. A adoção do lema “America First” implicou a retirada dos Estados Unidos de acordos multilaterais relevantes, o enfraquecimento de instituições internacionais e a implementação de políticas protecionistas, como a guerra tarifária contra a China. Essas ações, ao minarem a liderança norte-americana, abriram espaço para que Pequim ampliasse sua influência econômica e diplomática, reposicionando-se como defensora do multilateralismo e promotora de novas alternativas institucionais através de iniciativas como o Cinturão e Rota e o fortalecimento do BRICS+.

Durante seu segundo mandato (2025–2029), Trump manteve o unilateralismo como eixo central, ainda que com ajustes táticos, reforçando a fragmentação da ordem multilateral e aprofundando as rivalidades geopolíticas. Nesse contexto, a China aproveitou as lacunas institucionais para consolidar sua presença global e projetar um modelo de governança alternativo, mais sensível às demandas dos países do Sul Global.

O artigo conclui que o trumpismo acelerou a transição para uma ordem internacional multipolar e pós ocidental, em que os países em desenvolvimento terão papel estratégico. Essa nova configuração desafia os fundamentos da ordem liberal construída no século XX, sob liderança americana, exigindo novas estratégias de articulação e influência para aqueles que desejam moldar os rumos do sistema internacional.

Introdução

A ascensão de Donald Trump ao poder em 2016 marcou um ponto de inflexão na política internacional contemporânea. Com um discurso nacionalista e uma postura explicitamente protecionista, Trump rompeu com a tradição da política externa norte-americana baseada no multilateralismo e na manutenção de uma ordem global liberal. A retórica “America First” em seu primeiro mandato (2017-2021) traduziu-se em uma série de medidas unilaterais, incluindo a retirada dos Estados Unidos de tratados internacionais, o enfraquecimento de organizações multilaterais e a adoção de uma postura beligerante em relação a aliados históricos e adversários estratégicos. Esses movimentos não apenas desestruturaram a ordem global estabelecida no pós-Segunda Guerra Mundial, como também abriram espaço para a ascensão de novas potências, especialmente a China, que rapidamente preencheu as lacunas deixadas pelos EUA.

O impacto da primeira gestão de Trump foi evidente na reconfiguração das relações internacionais, com tensões exacerbadas na Organização Mundial do Comércio, no enfraquecimento da Organização das Nações Unidas e na intensificação da guerra comercial com Pequim. Contudo, sua derrota para Joe Biden em 2020 representou um interlúdio para a tentativa de restauração do multilateralismo. O retorno dos EUA ao Acordo de Paris, a reaproximação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a tentativa de reativação do sistema de comércio global foram algumas das medidas tomadas por Biden para restaurar a credibilidade norte-americana no cenário internacional. Entretanto, a polarização interna dos Estados Unidos e o apelo contínuo de Trump junto a uma parcela significativa do eleitorado culminaram em seu retorno ao poder nas eleições de 2024, reacendendo incertezas sobre a estabilidade da ordem global.

A reeleição de Trump em 2025 sinaliza uma nova fase de ruptura com os princípios do multilateralismo. Com um discurso ainda mais radicalizado e uma postura agressiva contra instituições internacionais, a administração Trump 2.0 (2025-2029) tende a aprofundar a crise da governança global. Enquanto isso, a China, consolidada como potência econômica e tecnológica, avança na construção de uma ordem alternativa, expandindo sua influência por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), do fortalecimento do BRICS e da ampliação de sua presença em organizações internacionais. Diante desse cenário, este artigo busca analisar o papel de Donald Trump como “coveiro” da ordem multilateral e a ascensão da China como protagonista emergente no sistema internacional, avaliando as implicações desse fenômeno para a geopolítica global no século XXI.

Uma Breve Contextualização na Formação da Ordem Multilateral

Quando se aborda o multilateralismo, uma das questões a se debater é: quando nasceu o fenômeno? Geralmente, a explicação está voltada mais especificamente para a Organização das Nações Unidas, criada em 1945 como sendo a expressão máxima das práticas internacionais. Todavia, o Concerto Europeu, criado em 1815 após as guerras napoleônicas pode ser considerado um exemplo embrionário tendo em vista que as potências europeias deliberaram marcar encontros regulares em períodos de paz para o “bem da Europa” (ASH, 2001; DUROSELLE, 1984).  Um outro exemplo histórico a se citar no que concerne ao multilateralismo foi quando o presidente norte-americano Woodrow Wilson, em 1918 enuncia os “14 pontos” que deveriam guiar os termos da paz no final da Primeira Guerra Mundial (Smith, 2017). 

Após 1945, no contexto da Guerra Fria, o investimento dos Estados Unidos na construção de uma ordem internacional pautada no multilateralismo destacou-se como um elemento fundamental para a consolidação de um sistema favorável às potências vitoriosas da Segunda Guerra Mundial. Esse modelo institucional buscava refletir seus princípios e normas, moldando as diretrizes do novo cenário global (Ikenberry, 2000).

O novo equilíbrio de poderes instaurado no pós-Segunda Guerra Mundial, que daria origem à Guerra Fria, reverberou intensamente na criação de diversas organizações internacionais voltadas à manutenção da segurança coletiva, da estabilidade econômica e da cooperação regional. Além da já mencionada Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945 para promover a paz e evitar novos conflitos globais, surgiram também instituições de caráter estratégico e econômico, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), fundada em 1949, destinada a garantir a defesa mútua dos países ocidentais frente à expansão soviética. No mesmo ano, estabeleceu-se a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), considerada o embrião da futura União Europeia, ao buscar integrar economicamente a França, a Alemanha Ocidental, a Itália e os países do Benelux, reduzindo rivalidades históricas e estimulando a reconstrução econômica da Europa Ocidental. Essas organizações não apenas refletiam a polarização ideológica entre capitalismo e socialismo, como também moldaram as bases institucionais da ordem liberal internacional que perduraria até o fim da Guerra Fria.

Nas décadas de 1970 e 1980, observou-se uma intensificação das interações entre os Estados em diversas áreas, como economia, finanças, meio ambiente, migrações e segurança internacional. Diante desse cenário, o multilateralismo passou a ser concebido como um mecanismo essencial para a cooperação global, proporcionando espaços de negociação, estabelecendo normas comuns e viabilizando a governança compartilhada frente aos desafios transnacionais.

Aprofundando essa perspectiva, Robert Keohane (1986;1989) analisou as possibilidades que o multilateralismo oferece para a gestão compartilhada da interdependência, não apenas por meio de instituições formais, mas também através da criação de regimes e normas que promovam previsibilidade e transparência nas relações internacionais. De acordo com Caporaso (1992) e Ruggie (1993), o multilateralismo é uma forma específica de reunir atores internacionais para apoiar a cooperação, assente em princípios de não discriminação, reciprocidade difusa (jogo de soma positiva) e estruturas institucionais generalizadas. O multilateralismo demonstra-se atualmente como um baluarte nas relações internacionais, que se solidifica no século XX e que se conceitua como “a prática de coordenação de políticas nacionais de três ou mais Estados, através de arranjos ad hoc ou de instituições (HEOHANE, 1990, p. 731).

Em sua notável obra a respeito do multilateralismo, John Ruggie descreve que as relações multilaterais apresentem uma dimensão qualitativa, a qual reverbera que os Estados envolvidos coordenem suas ações conforme determinados princípios e que respeitem esses princípios (Ruggie, 1993). Por consequência, a definição de Ruggie implica dois corolários: a indivisibilidade e a reciprocidade difusa. Á indivisibilidade corresponde ao comportamento estatal como membro de uma coletividade. A reciprocidade difusa, conceito desenvolvido por Keohane explana acerca da expectativa de um Estado em um arranjo multilateral com benesses auferidas se tornando equivalentes com o decorrer do tempo. 

Em virtude disso, Ruggie apresenta uma definição mais ampla do multilateralismo ao redigir que “multilateralismo é uma forma institucional que coordena as relações entre três ou mais estados com base em princípios ‘gerais’ de conduta (…) sem levar em conta os interesses particulares das partes ou as exigências estratégicas que possam existir em qualquer caso específico” (Ruggie, p. 571. Tradução nossa). 

Com base no conceito apresentado, pode-se estabelecer uma relação entre o multilateralismo e as formas institucionais que este adquire no plano prático, o que explica sua associação frequente às Organizações Internacionais Governamentais (OIGs). De acordo com Herz, Hoffmann e Tabak, as OIGs constituem espaços sociais fundamentais e disponibilizam os recursos necessários para o fortalecimento e a operacionalização do multilateralismo. 

A análise dessas organizações permite compreender a evolução histórica do multilateralismo nas Relações Internacionais, observando-se, assim, o papel central das instituições internacionais nesse processo. Nesse contexto, os autores sistematizam uma tabela que apresenta os principais marcos institucionais e os eventos mais relevantes, delineando a trajetória do multilateralismo ao longo dos séculos.

Breve histórico das OIGs

Fato Histórico Período Abrangência 
Liga de Delos 478 a.C. – 338 a.CGrécia Antiga (cidades-estado)
Liga HanseáticaSéculos XI-XVIICidades do norte da Europa 
Paz de Vestfália1648Estados europeus 
Congresso de Viena1815Estados europeus 
I Conferência Pan-Americana de Washington  1889-1890Mundial 
Conferências da Haia1899 e 1907Mundial 
Liga das Nações1919-1939/1946Mundial
Organização das Nações Unidas (ONU)1945Mundial
Organização Mundial do Comércio (OMC)1995Mundial 
Organização dos Estados Americanos (OEA)1948Países das Américas (América do Norte, Central, do Sul e Caribe).

Elaborado a partir de HERZ, M.; HOFFMAN, A.R.; e TABAK, J. Organizações Internacionais – Histórias e Práticas. 2ª edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015, p. 2-19.

A evolução das práticas multilaterais no cenário internacional revela que, muito antes da consolidação das organizações internacionais contemporâneas, já existiam mecanismos de cooperação entre diferentes entes políticos. A exemplo disso, podemos observar a Liga de Delos formada no século V a.C, evidencia um dos primeiros esforços de cooperação reunindo cidades-Estado gregas contra uma ameaça comum: o Império Persa. Já a Liga Hanseática, entre os séculos XI e XVII, demonstra uma articulação comercial multilateral, voltada à proteção e promoção dos interesses econômicos de cidades do norte da Europa. Esses dois exemplos históricos evidenciam que a prática da cooperação internacional antecede em muito a institucionalização formal de organizações como a Liga das Nações ou a Organização das Nações Unidas (ONU). 

A análise histórica revela que as organizações internacionais como as conhecemos hoje são fruto de uma longa trajetória de experiências multilaterais, que evoluíram desde alianças pontuais e pragmáticas até estruturas institucionais permanentes e normativas, refletindo a crescente interdependência entre os Estados ao longo do tempo. A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, em seu primeiro mandato (2016–2021), marcou uma ruptura significativa na postura tradicional do país em relação à ordem multilateral construída no pós-Segunda Guerra Mundial. Sob o lema America First, a nova abordagem de política externa adotada pelo governo Trumpista priorizou o unilateralismo, o protecionismo econômico e a reavaliação de compromissos históricos dos EUA com alianças e organizações internacionais. Essa inflexão política colocou em xeque o papel dos Estados Unidos como líder e sustentáculo das instituições multilaterais, inaugurando um período de tensões diplomáticas e incertezas quanto à estabilidade da governança global. 

Esse reposicionamento norte-americano deve ser compreendido dentro de uma conjuntura mais ampla, em que o sistema multilateral já enfrentava desafios estruturais como a crescente competição geopolítica, o declínio da cooperação internacional em áreas sensíveis (como mudanças climáticas e segurança cibernética), e a ascensão de potências emergentes com visões distintas sobre a ordem internacional. A retórica nacionalista de Trump e sua rejeição a acordos como o Acordo de Paris sobre o Clima e o Acordo Nuclear com o Irã acentuaram a fragilidade de instituições construídas sobre o princípio da ação coletiva. Ao mesmo tempo, sua postura crítica em relação à Organização Mundial da Saúde (OMS) e à Organização Mundial do Comércio (OMC) evidenciou uma tentativa deliberada de minar fóruns considerados essenciais para a mediação de interesses globais. 

Na próxima seção, serão detalhadas as ações já implementadas, bem como aquelas ainda em andamento, que visam enfraquecer as instituições multilaterais sob a liderança de Donald Trump em seu segundo mandato. O foco será na análise das estratégias adotadas para reduzir a influência dessas organizações e nas consequências desse desmonte para a governança global. A hipótese central é que o desengajamento norte-americano compromete não apenas a eficácia do multilateralismo, mas também reconfigura os equilíbrios de poder no cenário internacional, abrindo espaço para a ascensão de novos atores e modelos alternativos de cooperação internacional.

A Política “America First” e o Ataque à Ordem Multilateral

As práticas multilaterais entre entes políticos possuem raízes milenares, remontando à Antiguidade, conforme evidenciado pelos exemplos apresentados na tabela 1. Embora ainda incipientes, tais experiências já denotavam uma preocupação com a criação de mecanismos coletivos de cooperação e resolução de conflitos. Contudo, foi apenas no período posterior à Segunda Guerra Mundial que o multilateralismo se consolidou como um dos eixos centrais da ordem internacional contemporânea, impulsionado pela necessidade de reconstrução e estabilidade global. A partir desse momento, constituiu-se um arcabouço institucional robusto, voltado à promoção da cooperação entre Estados e à gestão de desafios de natureza transnacional. Organizações como a as Nações Unidas, a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde entre outras, passaram a desempenhar papéis fundamentais na governança global, estabelecendo normas internacionais e promovendo espaços estruturados para o diálogo e a negociação interestatal.

Esse modelo, entretanto, foi tensionado durante a primeira administração de Donald Trump (2016–2021), quando se observou um movimento coordenado de desengajamento dos Estados Unidos em relação a compromissos multilaterais históricos, sob a justificativa de defender os interesses nacionais. A política externa conduzida sob o lema America First refletiu uma orientação isolacionista e protecionista, que levou ao afastamento dos EUA de importantes organismos e acordos internacionais.

O fim da Guerra Fria corroborou ainda mais a posição de supremacia global dos Estados Unidos. O colapso da União Soviética resultou, quase que instantaneamente, na solidificação de uma ordem internacional unipolar, sem que os norte-americanos precisassem mobilizar grandes recursos para isso. A partir dessa nova conjuntura, e influenciado por transformações na política interna dos EUA, o unilateralismo passou a ganhar força, especialmente dentro da agenda do Partido Republicano. Donald Trump, ao assumir a presidência, deu forma concreta a essa orientação ao adotá-la sob o lema America First. Como sintetiza Tullo Vigevani (2020): 

“A denúncia de acordos na área de segurança, inclusive estratégicos, relativos ao balanço balístico com a Rússia, assinado em 1987, como o INF (mísseis nucleares de médio e curto alcance) em agosto de 2019, sem início de uma negociação alternativa, sugere, como se fala em Washington, uma política atabalhoada. Mas de potencial perigo. A tradição, chamemos, anti-Wilsoniana, de não ratificação de acordos, [como] Kyoto, TPI, reforça-se à luz do negacionismo. Renúncia do acordo de Paris já em junho de 2017, formalizada em novembro de 2019. A lista é maior, aceleração da paralisação do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, acentuação do enfraquecimento de UNESCO, OMS. Em nível hemisférico, de interesse brasileiro direto, centralização em mãos norte-americanas do BID, enfraquecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.”

Um dos episódios mais emblemáticos desse reposicionamento foi a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris, em 2017, tratado essencial para o combate às mudanças climáticas. A decisão representou um revés significativo para os esforços multilaterais no enfrentamento do aquecimento global, especialmente considerando o estofo das emissões norte-americanas no cenário internacional. Além disso, esse tipo de atitude sinalizou uma ruptura simbólica da liderança tradicional dos EUA no sistema multilateral, encorajando outras potências a também adotar agendas externas mais nacionalistas e seletivas. O impacto não foi apenas ambiental ou diplomático, ele evidenciou um processo mais amplo de crise de legitimidade das instituições multilaterais diante da ascensão de discursos soberanistas, populistas e revisionistas na política global.

Outro exemplo notável do desmonte das instituições multilaterais sob a liderança de Trump foi a retirada dos EUA da OMS em meio à pandemia de COVID-19. Em 2020, Trump acusou a organização de estar alinhada aos interesses da China e de falhar em responder adequadamente à crise sanitária (Dw, 2020). A retirada americana comprometeu a capacidade da OMS de coordenar esforços globais de combate à pandemia, dado que os EUA eram um dos seus principais financiadores.

Além disso, em 2019, durante o primeiro mandato de Donald Trump, os Estados Unidos adotaram uma postura abertamente hostil em relação à Organização Mundial do Comércio ao bloquearem, de forma sistemática, a nomeação de novos juízes para o Órgão de Apelação, instância máxima do sistema de solução de controvérsias da Organização (CNN Brasil, 2019). Essa ação resultou na paralisação prática do mecanismo, comprometendo seriamente a capacidade da OMC de arbitrar disputas comerciais entre seus membros. A medida não apenas fragilizou a credibilidade institucional da OMC, mas também representou um duro golpe na governança multilateral do comércio, ao reduzir a previsibilidade e a confiança nas regras internacionais que regem o sistema de trocas globais. Tal iniciativa reforçou a tendência trumpista em seu primeiro período no governo de minar instâncias multilaterais como forma de ampliar a margem de manobra dos EUA nas negociações bilaterais, em detrimento das normas coletivamente pactuadas.

Donald Trump: O Coveiro da Ordem Multilateral e o Parteiro do Protagonismo Chinês no Sistema Internacional 3

“Donald Trump Sr. at #FITN in Nashua, NH”, foto por Michael Vadon.

Com seu retorno à Casa Branca em 2025, Donald Trump reafirmou sua postura crítica e hostil em relação às organizações internacionais, aprofundando o padrão de desengajamento adotado durante seu primeiro mandato. Com um discurso ainda mais radicalizado, sua nova administração passou a praticar como plataforma central a rejeição ao comércio internacional nos moldes tradicionais, impulsionando políticas marcadamente protecionistas e nacionalistas. A reedição da guerra tarifária agora com intensidade renovada surpreendeu a comunidade internacional, ao impor barreiras comerciais não apenas a rivais estratégicos, como a China, mas também a aliados históricos dos Estados Unidos. Esse movimento reacendeu tensões diplomáticas e econômicas, ameaçando desestruturar cadeias globais de valor e minando a previsibilidade do sistema multilateral de comércio, especialmente no âmbito da OMC.

A política externa do segundo mandato de Trump se encaixa na definição do conceito de primazia, na qual não identifica limites de poder. Sua lógica é realista na melhor tradução contemporânea desta teoria. Seu objetivo sine qua non é preservar e aumentar o poder absoluto e relativo, simultaneamente impedindo o aumento do poder dos “peer competitors” ((Mearsheimer, 2001).

A consequência disso é a crença de que as normas internacionais não operam com vantagens para os Estados Unidos. Conforme descrevem Lima e Albuquerque (2020), Trump encarna a versão atual da política de primazia, ainda mais acentuada porque a China deixou de ser um competidor potencial para se tornar um competidor de fato. 

Essas ações não apenas reforçam a tônica unilateralista do segundo mandato de Trump, como também expressam um desprezo contínuo pelas estruturas multilaterais, sinalizando a intenção de redesenhar a ordem internacional com base em uma lógica nacionalista exacerbada. O impacto desse desmonte institucional não se restringiu ao contexto norte-americano: abriu precedentes perigosos para que outros países seguissem o mesmo caminho, questionando e desacreditando o papel das organizações internacionais.

Conforme destaca Dani Rodrik (2011), a globalização impõe um “trilema” às democracias modernas, forçando os Estados a escolherem entre soberania nacional, integração econômica e democracia sendo inviável manter os três simultaneamente (tradução nossa). O retorno de Trump evidencia a opção norte-americana por um modelo centrado na soberania e no protecionismo, em detrimento da governança global cooperativa. As implicações dessa escolha extrapolam o campo do comércio: trata-se de uma inflexão mais ampla rumo a uma ordem internacional fragmentada, na qual normas coletivas são substituídas por decisões unilaterais moldadas por interesses nacionais imediatos e, muitas vezes, imprevisíveis.

O legado da administração Trump em relação ao multilateralismo serve como um alerta sobre os riscos do isolacionismo. O futuro dessas instituições dependerá da disposição das lideranças mundiais em reafirmar seu compromisso com a cooperação internacional e fortalecer os mecanismos de governança global. Os desafios globais contemporâneos como a pandemia de COVID-19, as mudanças climáticas, os conflitos geopolíticos e as crises econômicas interdependentes demonstram que o multilateralismo permanece não apenas relevante, mas indispensável. A reconstrução da confiança nas instituições internacionais e na cooperação global tornou-se um imperativo para a estabilidade internacional. O fortalecimento do multilateralismo, portanto, não deve ser apenas uma reação às rupturas recentes, mas uma estratégia de longo prazo voltada à construção de uma ordem internacional mais justa, inclusiva e resiliente.

Nesse contexto de enfraquecimento das instituições tradicionais e de crescente necessidade de respostas globais coordenadas, abre-se espaço para o surgimento de novos polos de poder e liderança internacional. A fragilização do multilateralismo liderado pelas potências ocidentais, sobretudo pelos Estados Unidos, sob governos avessos à cooperação, cria um vácuo geopolítico que vem sendo progressivamente ocupado por players internacionais.

 É nesse cenário que a ascensão da China se destaca como um fenômeno incontornável do século XXI. Mais do que uma potência emergente, Pequim tem buscado consolidar sua projeção internacional por meio de uma atuação mais assertiva em instituições multilaterais, da construção de novas iniciativas de governança global e da expansão de sua influência econômica, tecnológica e diplomática. Sendo assim, na próxima seção será apresentado um breve resumo sobre a ascensão chinesa no século XXI e algumas ações adotadas no sistema internacional para o fortalecimento da ordem multilateral liderada pela China.

A Ascenção Chinesa: de Potência Emergente a Líder Global?

Ao longo das últimas décadas, a ascensão da China como potência global tem sido temática central nas análises sobre a transição de poder no sistema internacional. Contudo, foi especialmente no contexto da presidência de Donald Trump, marcada por políticas isolacionistas, guerras comerciais e o enfraquecimento deliberado de instituições multilaterais que Pequim encontrou terreno fértil para expandir sua influência geoeconômica e diplomática (Ikenberry, 2020; Allison, 2017).

Longe de se restringir à retórica, o governo Trump vem contribuindo de forma concreta para o reposicionamento chinês ao abrir lacunas institucionais e geopolíticas antes ocupadas por Washington, especialmente nos campos do comércio internacional, da governança global e das novas tecnologias. A lógica transacional da diplomacia americana, a retirada de acordos multilaterais citados anteriormente e o desprestígio de fóruns globais contrastam com a atuação estratégica da China, que passou a se apresentar como defensora basilar do multilateralismo, investidora em infraestrutura internacional e arquiteta de novas coalizões econômicas (Breslin, 2021; Zhu, 2019).

Diante desse cenário, esta seção busca analisar como a República Popular da China deixou de ser apenas uma potência emergente para figurar entre os principais pilares de uma nova ordem global em construção. Discutem-se aqui os instrumentos utilizados por Pequim para ampliar seu protagonismo como a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), a atuação em organismos internacionais, o fortalecimento do BRICS+, bem como os limites e desafios que ainda enfrenta nesse caminho rumo à liderança sistêmica.

Depois de assumir o poder na China em 2013, Xi Jinping concatenou uma mudança na política externa para uma “diplomacia de grande potência” mais proativa. Um exemplo disso, é a Iniciativa Cinturão e Rota, inicialmente destinada a fomentar a cooperação com os países vizinhos, o âmbito foi rapidamente difundido para se tornar uma iniciativa de orientação mundial. Para Xi Jinping, o propósito do multilateralismo é construir uma “comunidade de um futuro partilhado da humanidade” (Rudyak, 2025). 

DONALD TRUMP: O COVEIRO DA ORDEM MULTILATERAL E O PARTEIRO DO PROTAGONISMO CHINÊS NO SISTEMA INTERNACIONAL

“President Kagame and President Xi Jinping of China Joint Press Conference (2018)”, foto por Paul Kagame.

Em outubro de 2019, um artigo intitulado “Utilizar o pensamento de Xi Jinping como orientação para promover o multilateralismo com características chinesas”, desenvolvido pelo Departamento de Planejamento de Políticas de Políticas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, descreve que “os assuntos internacionais devem ser tratados por todos os países através de consultas, de acordo com as regras acordadas por todos os países, e tendo em conta os interesses legítimos e as preocupações legítimas de todos os Estados” (QIUSHI, 2019). 

Conforme aponta o líder chinês, 

“o mundo está em um período de grande desenvolvimento, transformação e ajuste, e a paz e o desenvolvimento continuam sendo o tema dos tempos. Ao mesmo tempo, o mundo enfrenta instabilidade e incerteza pendentes, e a humanidade enfrenta muitos desafios comuns” (XINHUANET, 2017). 

Em relação ao multilateralismo, é pertinente destacar o que explana o mandatário chinês, enfatizando que: 

“à China adere ao conceito de ampla consulta, contribuição conjunta e benefícios compartilhados na governança global, defende a democratização das relações internacionais, adere à igualdade de todos os países, independentemente de seu tamanho, força ou fraqueza, ricos ou pobres, apoia o papel ativo das Nações Unidas e apoia a expansão da representação e voz dos países em desenvolvimento nos assuntos internacionais. A China continuará a desempenhar seu papel como um grande país responsável, participar ativamente da reforma e construção do sistema de governança global e continuar a contribuir com a sabedoria e a força da China” (XINHUANET, 2017). 

Para Xi Jinping, princípios fundamentais da política externa chinesa incluem o fortalecimento da cooperação com países em desenvolvimento, em especial com os menos desenvolvidos, a redução das disparidades entre o Norte e o Sul globais, o apoio ativo ao sistema multilateral de comércio, o estímulo à criação de zonas de livre comércio e, a promoção de uma economia mundial aberta e inclusiva. 

Nesse cenário internacional em transformação, torna-se cada vez mais evidente a crítica à limitada representatividade das instituições multilaterais e à sua resistência em absorver valores alternativos à matriz liberal ocidental. Tais instituições são, por vezes, percebidas como insuficientes para refletir a diversidade cultural e a pluralidade normativa do mundo contemporâneo. O cientista político Guilherme Casarões (2020) observa que, além de uma reconfiguração do equilíbrio de poder global, está em curso uma nova dinâmica de forças normativas. 

Segundo o autor, pela primeira vez na era moderna, o centro gravitacional da política e da economia mundial além do demográfico desloca-se para fora do Ocidente, com destaque sobretudo para a China e a Índia. Essa transição, embora possa abrir lacunas para os interesses e perspectivas dos países do Sul Global, também impõe riscos aos pilares liberais que sustentaram o multilateralismo do século XX em sua ambição de universalidade.

Considerações Finais

A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos marcou um ponto de inflexão na política externa norte-americana e no funcionamento do sistema internacional. Em seu primeiro mandato (2017–2021), a retórica do America First traduziu-se em uma política externa abertamente revisionista, com o desmonte de acordos multilaterais, a imposição de tarifas comerciais, especialmente contra a China, e a rejeição a instituições tradicionais da governança global. Este período foi caracterizado por um movimento unilateralista de ruptura, que minou a credibilidade dos EUA como promotor da ordem liberal e ampliou o espaço de atuação para outras potências, notadamente a China.

Ao ocupar o vácuo deixado pelos EUA, a China se reposicionou como defensora do multilateralismo, da globalização econômica e da cooperação Sul-Sul, aprofundando sua inserção em fóruns internacionais e expandindo suas zonas de influência econômica e política por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota. Paradoxalmente, o esforço de Trump em conter o avanço chinês durante o primeiro mandato acabou por acelerar seu protagonismo sistêmico, ao enfraquecer os próprios fundamentos normativos e institucionais que davam sustentação à hegemonia americana.

O segundo mandato de Trump, iniciado com sua reeleição em 2024, reflete uma mudança tática, mas não estratégica. Ainda que tenha havido certa moderação discursiva e tentativa de reconfigurar alianças tradicionais motivada por pressões internas e desafios geopolíticos renovados, a essência da política externa trumpista permanece ancorada no protecionismo, na rivalidade sino-americana e no ceticismo em relação às normas multilaterais. A imposição de tarifas generalizadas em 2025, ainda que aplicadas de forma “uniforme”, evidencia a persistência de uma lógica transacional na abordagem externa dos EUA, impactando cadeias produtivas globais e exigindo respostas estratégicas de diversos países em desenvolvimento.

Dessa forma, a experiência dos dois mandatos de Trump evidencia que a crise da ordem multilateral não é episódica, mas estrutural, e que a emergência de uma ordem pós ocidental já está em curso. A China, ao ocupar o espaço simbólico e institucional deixado pelos EUA, projeta-se não apenas como potência econômica, mas como arquiteta de uma nova governança internacional, ancorada em valores distintos dos moldes liberais ocidentais. A disputa, portanto, não é apenas geopolítica, mas também normativa.

Nesse cenário, os países do Sul Global encontram-se diante de um momento histórico decisivo: ao mesmo tempo em que se abrem novas oportunidades de inserção internacional, sobretudo por meio da ampliação de parcerias com a China e outras potências emergentes, também aumentam os riscos de fragmentação institucional e dependência assimétrica. O desafio maior reside em como esses países poderão se articular coletivamente para influenciar a configuração de uma nova ordem internacional mais inclusiva, plural e representativa das realidades e interesses do mundo em desenvolvimento. Nesse contexto, a figura de Donald Trump consolida-se historicamente como a de “coveiro” da ordem multilateral liberal e, paradoxalmente, “parteiro” do protagonismo chinês, ao abrir caminho para uma reconfiguração sistêmica em que novas potências moldam, disputam e constroem os contornos de uma governança global em transformação.

Referências

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ASH, T.G. (2001). História do presente. Setúbal: Editora Notícias. 

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CASARÕES, G. Conversas Estruturadas II: Reorientações do Multilateralismo. CEBRI, 2020. Disponível em: https://www.cebri.org/portal/ publicacoes/cebri-textos/conversas-estruturadas ll-reorientacoes-do-multilateralismo.

CNN BRASIL. Em meio a guerra comercial, EUA suspendem contribuições à OMC, dizem fontes. CNN Brasil, 5 dez. 2019. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/em-meio-a-guerra-comercial-eua-suspendem-contribuicoes-a-omc-dizem-fontes/. Acesso em: 5 abr. 2025.

DEUTSCHE WELLE. Trump ameaça retirar EUA da OMS. DW, 15 maio 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/trump-amea%C3%A7a-retirar-eua-da-oms/a-53492650. Acesso em: 5 abr. 2025.

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Donald Trump: O Coveiro da Ordem Multilateral e o Parteiro do Protagonismo Chinês no Sistema Internacional 4
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Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Potiguar | Mestre em Direito das Relações Internacionais com foco na integração regional. Especialista em Direito Internacional Aplicado pela Universidade São Judas Tadeu -SP.

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