O início de 2021 foi palco de um novo rumo às relações entre os países árabes e o Qatar. O Acordo de Solidariedade e Estabilidade deu fim a 3 anos de uma relação conflituosa entre os Estados.
O conflito entre os países árabes e o Qatar teve início em 2017 quando a Arábia Saudita, juntamente com Bahrein, Egito e Emirados Árabes Unidos, cortaram relações diplomáticas com o país a partir da justificativa de que o Estado estaria contribuindo com grupos islamitas extremistas (Irmandade Muçulmana) e aproximando-se do Irã, grande adversário saudita. O Qatar, por sua vez, denunciou tal medida como tentativa de sufocar economicamente o país.
Considerado um dos maiores impasses dentro do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), desde sua criação no início de 1980, o problema diplomático se iniciou com um relatório estatal qatari, no qual destacava uma crítica feita por um governante do país acerca do sentimento anti-iraniano. Isso foi intensificado com a visita de Trump à Riad, capital da Arábia Saudita, duas semanas antes do ocorrido, quando o então presidente dos EUA, Donald Trump, juntamente com o rei saudita, Salman bin Abdulaziz Al Saud , denominaram Irã como patrocinador do terrorismo na região.
Consequência da quebra diplomática para o Qatar
Para além da ruptura das relações diplomáticas, houve também o encerramento de conexões aéreas, terrestres e marítimas, e até a proibição da locomoção de cidadãos qatarianos aos países em questão. O Estado ainda foi retirado da coalizão militar com a Arábia Saudita, que atuava no Iêmen à época. Por fim, escritórios locais da Al Jazeera (grande emissora financiada pelo Qatar) foram fechados, lembrando que ela foi uma grande defensora dos protestos da Primavera Arábe, bem como contribuiu para o fortalecimento dos mesmos, destacando sua importância regional e internacional. Com a saída do país da coalizão militar no Iêmen, a emissora passou a ser mais crítica em relação à atuação no país.
Porém, em relação às consequências negativas da ruptura diplomática, não há muito o que se evidenciar. Isso se deve, pois, o país é considerado um dos mais ricos do mundo, e sua atuação consistiu em décadas de estabilização de uma política independente. Embora houvesse a necessidade de importação de alimentos, visto que o foco de produção do país consiste, em grande parte, na indústria energética, em termos gerais, essa preocupação não se tornou um grande problema ao governo. Apesar de o país depender de 90% em importações de alimentos, houve uma diversificação econômica de compras com outros países para contornar a situação.
Analisando alguns dados econômicos, pode-se perceber que houve uma certa estabilidade entre os anos de 2017-2019 no que tange ao PIB, exportação, importação e nível de desemprego. No que tange às estratégias militares, a Turquia supriu a necessidade de filiação, enviando tropas ao país. Segundo a rede de notícias Al Jazeera, apesar de não ter sido considerado uma ação anti-saudita, mostrava que o país era pró-Qatar.
Outra consequência da crise diplomática foram os processos judiciais levantados pelo Qatar, que recorreu à Organização Mundial do Comércio (OMC) para denunciar o bloqueio econômico realizado pela Arábia Saudita e aliados. O país acusou os Estados de violarem as leis e convenções de comércio de bens e serviços e de temas relacionados a comércio e propriedade intelectual.
O objetivo primordial da medida adotada por alguns dos países da CCG era fazer com que o Qatar adotasse uma postura de maior apoio aos países árabes, em decorrência do enfraquecimento das relações com os iranianos. Contudo, houve uma maior aproximação com o Irã que, para além da Turquia, recorreu para obter maior apoio na região. O Irã passou a enviar mantimentos ao país após o bloqueio econômico da Arábia Saudita, fortalecendo as relações econômicas entre ambos os Estados.
O acordo de solidariedade e a Teoria do chicken game
A previsão é que o Qatar suspenda os processos judiciais contra os países. Os seis Estados do CCG (Arábia Saudita, Bahrein, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Omã) assinaram o pacto “Declaração de Al-Ula”, de conteúdo confidencial. É necessário destacar que as condições impostas, em 2017, para retomada das relações, provavelmente não serão abordadas nessa nova fase de reconciliação. O principal motivo pode estar relacionado ao desejo imediato norte-americano, que faz pressão aos países, de resolver o quanto antes as relações para tentar diminuir a presença iraniana no país.
Podemos utilizar das interpretações do Chicken Game (GOLDSTEIN, 2010) na compreensão de o porquê houve tal acordo, caso não sejam pautadas as condições de 2017. O Jogo da Galinha, em português, pode ser compreendido como uma situação em que dois lados, caso não cheguem à uma solução, possam ser mutuamente “destruídos”. Embora seja empregado em casos pautando ameaças destrutivas, como na Crise dos Mísseis, a utilização da palavra destruição, neste caso, será empregada de forma não literal. Isso se deve, pois esse conceito permite a possibilidade de conquista do Óptimo de Pareto – quando partes envolvidas chegam a um compromisso-, essencial para compreensão da negociação.
Mesmo sendo cedo para analisar tal cenário e não sendo público o conteúdo da nova negociação, ao considerar duas possíveis situações, há fácil adaptação do modelo. Um primeiro cenário seria de o Qatar não ceder às condições de 2017, caso pautadas na negociação atual. Nesse caso, o equilíbrio de Nash – aqui caracterizado como desistência por parte dos outros países, predominaria. Uma justificativa seria o receio dos Estados Unidos e dos países do CCG frente a irreversibilidade das relações do Qatar com o Irã. Ao prorrogar tentativas de reconciliação, os laços entre ambos Estados se estreitariam de forma a modificar definitivamente o Conselho de Cooperação da região que faz frente ao xiismo iraniano.
Contudo, uma desistência total de objetivos por parte desses países não parece ser tão plausível. A possibilidade de um “entremeio” está mais fácil de ser visualizada (o Óptimo de Pareto). Sendo uma negociação entre um país com grande importância energética ao mundo e um grupo com uma potência mundial e uma regional, a negociação, ainda confidencial, possui maior probabilidade de um acordo em que ambas as partes acabam por ceder. A destruição mútua, neste caso, seria considerado o enfraquecimento definitivo da cooperação regional da CCG. A possibilidade de uma nova coalizão Irã-Qatar, tendo em vista a continuidade de sanções por parte do grupo, seria um péssimo resultado à liderança saudita que há anos vive uma Guerra Fria com o Irã.
Por outro lado, apesar de o país ter conseguido se manter estável nos últimos três anos, a médio prazo a situação ficaria mais complicada. Com países vizinhos isolando o Estado, os problemas econômicos, diplomáticos e militares iriam aumentar, desestabilizando a coordenação da Política Externa de maior Independência firmada pelo país ao longo das últimas décadas. O que resta saber é quais foram as concessões feitas pelos Estados e, pensando na Sombra do Futuro, quais resoluções serão cumpridas a partir deste ano.
Considerações finais
Não se deve considerar a resolução total do conflito, principalmente, por não estar sendo previsto, entre os especialistas, acordos frente aos pedidos feitos em 2017, entre eles, o fim da Al Jazeera e o corte das relações com o Irã. Além disso, os Emirados Árabes ainda não demonstram um retorno de relações totalmente amistosas com o Qatar. Contudo, é um primeiro passo para a tentativa de retomada das relações mais amistosas, diminuindo os riscos de possíveis conflitos e maior instabilidade regional.
Referências bibliográficas
GOLDSTEIN, Joshua. Chicken dilemmas: crossing the road to cooperation. In: ZARTMAN, William (ed.). International Cooperation: The Extents and Limits of Multilateralism. 135. ed. New York: Cambridge University Press, 2010. cap. 8, p. 135-160. ISBN 13 978-0-511-78935-9.