Em 17 de fevereiro, completou-se treze anos desde que o Kosovo declarou sua independência da Sérvia em 2008. O acontecimento se caracterizou como um desdobramento tardio dos movimentos de fragmentação da ex-Iugoslávia e as drásticas reverberações que os sucederam; estas, por sua vez, impactaram geopoliticamente toda a porção centro-oriental europeia, redefinindo profundamente a região dos Balcãs. Os acontecimentos que antecederam e de certa maneira propiciaram a independência Kosovar são vários e são resultados de séculos de uma efervescência e forte rivalidade étnico-cultural-religiosa entre os povos que habitam a região.
A fragmentação da Iugoslávia foi o ápice desse processo, quando esses povos estavam organizados territorialmente dentro de seis territórios que a compunham: Sérvia (da qual o Kosovo era um território), Croácia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia, Montenegro e Eslovênia. Em todos esses referidos territórios havia para além da população étnica majoritária, minorias que se identificavam com as outras nacionalidades presentes no país, como, por exemplo, cidadãos sérvio-bósnios (que eram da etnia sérvia, mas viviam na Bósnia).
Muitas vezes, os territórios habitados pelas minorias não eram contíguos entre si, portanto, criava-se uma dinâmica na qual havia bolsões étnicos dentro de territórios majoritários; portanto, por séculos a rivalidade entre esses povos esteve latente, mas, de certa maneira, contida. Em grande medida, esse cenário era resultante das rígidas políticas de contenção de governos supranacionais que dominavam os territórios que compunham essas regiões. Ao longo da história, muitas vezes esses governos eram “estrangeiros” ou mantinham os governantes locais sob um sistema de protetorado ou de subordinação direta de fato, como foi o caso do Império Bizantino, do Império Otomano e também do Império Austríaco.
Portanto, essa região sempre se caracterizou como uma região de trânsito e disputa entre grandes poderes, que imprimiam nos povos locais uma enorme influência cultural-religiosa em uma dinâmica quase sempre de proximidade territorial. Por exemplo, os mulçumanos (fortemente presentes entre os bósnios e albaneses) estavam concentrados em porções mais no centro-sul da região, geograficamente mais próximos da zona de influência turco-otomana. Os católicos (fortemente presentes entre croatas e eslovenos) estavam mais concentrados ao norte, mais próximos à influência ítalo-austríaca; enquanto os ortodoxos (fortemente predominantes entre sérvios e macedônios) estavam mais concentrados à leste e sul, próximos à zona de influência russa e dos antigos territórios bizantinos.
Essa conjuntura imbuiu nos povos da região de fortes sentimentos identitários e também uma exacerbada percepção de ameaça mútua. Portanto, a Iugoslávia quando unificada no fim da Segunda Guerra Mundial, só se manteve estável por meio de um governo central forte e autoritário, com uma sofisticada política interna de representatividade dos grupos étnicos a nível governamental. O General Josep Tito, unificador e governante mais longevo da Iugoslávia, entedia a conjuntura explosiva que havia por trás daquela convivência e, portanto, tratou de suprimir fortemente qualquer movimento auto nacionalista de envergadura entre os povos que compunham o país.
Sendo assim, após a morte de Tito em 1980 e a perda de sua figura autoritária, legitimada pelo seu papel de herói na luta contra os nazistas e unificador do país, o governo central careceu de uma figura poderosa que mantivesse os ânimos nacionalistas contidos e trabalhasse pela manutenção da unidade da Iugoslávia. O que se viu foi a ascensão de líderes nacionalistas entre os povos iugoslavos; alguns alçados ao poder pelo anseio de maior autonomia por parte da população, outros levados pelo temor de que o fortalecimento de determinado grupo pudesse levar a uma perseguição generalizada contra as minorias étnicas dentro dos territórios predominantes. Dessa maneira, em 1990, o país já estava em um perigoso ascendente de nacionalismos agressivos a nível governamental entre as repúblicas iugoslavas representantes de cada território e também movimentos paramilitares de defesa, compostos pelas minorias de cada território. Em 1991, a situação fugiu ao controle e as guerras de fragmentação da Iugoslávia tiveram início com a declaração de independência da Eslovênia. A partir de então, até 2001 houve guerras dentro da guerra principal de fragmentação, cujas fases foram:
- Guerra de Independência Eslovena (1991);
- Guerra de Independência Croata (1991-1995);
- Guerra da Bósnia (1992-1995);
- Guerra croata-bosníaca (1992-1994);
- Guerra do Kosovo (1998-1999);
- Conflito no sul da Sérvia (1999-2001);
- Conflito na Macedônia (2001).
A independência do Kosovo é o movimento final da Guerra do Kosovo e da luta do povo Kosovar pelo auto soberania frente a Sérvia, iniciada militarmente em 1991. O que aconteceu no país é um extrato em menor escala da dinâmica de fragmentação iugoslava, dessa vez envolvendo duas etnias majoritárias: Albaneses (majoritariamente mulçumanos) e Sérvios (majoritariamente ortodoxos). Dentro desse conflito de várias nuances, cabe destacar a intervenção realizada pela OTAN ao longo do ano de 1990 com o objetivo de interromper a limpeza étnica que estava sendo levada a cabo pelos sérvios contra a população de origem albanesa e cessar a parte armada do conflito. Essa intervenção foi um divisor de águas para o Kosovo, em pontos negativos e positivos.
Ela garantiu que a soberania kosovar fosse mantida em relação a Sérvia e protegeu a população civil dos recorrentes massacres, todavia, criou uma dinâmica geopolítica que movimenta até os dias atuais a agenda de high politics europeia, russa e norte-americana. O apoio ocidental ao movimento de independência kosovar em todas as suas etapas recrudesceu o tradicional apoio russo a Sérvia (que se recusa veementemente a reconhecer a independência do Kosovo), impossibilitando que o recém-declarado país fosse plenamente aceito nas Nações Unidas, mesmo com um forte reconhecimento internacional, inclusive de várias potências, como: EUA, Reino Unido, França e Austrália. Isso se dá em razão do contínuo veto russo no âmbito do Conselho de Segurança da ONU a qualquer iniciativa que permita um maior reconhecimento internacional kosovar.
O apoio a independência também causou divisões dentro da agenda europeia, com um total de vinte e dois países da União reconhecendo o Kosovo como país e cinco contra o reconhecimento por razões distintas; que vão de aliança com a Sérvia, a um temor de estabelecer precedentes para regiões autônomas, como é o caso da Espanha. Esse contexto acaba por gerar uma situação de bloqueio na agenda de expansão europeia na região dos Balcãs, ao impossibilitar tanto a entrada sérvia no bloco, quanto também o início da candidatura do Kosovo. Esse bloqueio é benéfico para a Rússia, uma vez que mantém a Sérvia sob sua área de influência.
Na região, o não reconhecimento sérvio mantêm uma situação de tensão latente, uma vez que as minorias sérvias presentes no território kosovar não se reconhecem como parte do país e mantém uma postura nacionalista agressiva com o apoio velado de Belgrado (capital da Sérvia). A situação segue indefinida, prejudicando o desenvolvimento do Kosovo, que enfrenta sérios problemas de desemprego e falta de recursos.
Referências bibliográficas:
BBC. Kosovo war: The conflict that won’t go away. Disponível em: https://www.bbc.com/news/av/world-europe-47673357.
INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Why Kosovo’s Independence is Necessary. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/europe-central-asia/balkans/kosovo/why-kosovos-independence-necessary.
THE NEW YORK TIMES. In Kosovo, a Peace Built on Separation. Disponível em: https://www.nytimes.com/2018/01/30/world/europe/kosovo-serbia.html?action=click&module=RelatedCoverage&pgtype=Article®ion=Footer.
THOUGHTCO. Kosovo War: Operation Allied Force.. Disponível em: https://www.thoughtco.com/kosovo-war-operation-allied-force-2360847.