O ano de 1912 traria o fim da dinastia Qing na China, dando lugar a uma república, comandada por Sun Yat-sen, líder do partido nacionalista chinês Kuomintang. Após a morte de Sun, Chiang Kai-shek subiria ao posto de líder do partido, em meio a um cenário de ruptura entre as facções comunistas e nacionalistas. Anos de instabilidade e insucesso em construir uma nação unida sob o ideal republicano fariam o país atravessar uma guerra civil, entre nacionalistas e comunistas, personificados, respectivamente, por Chiang Kai-shek e Mao Tse-tung. Após a captura de Nanjing, então capital do país, por forças comunistas, Chiang ordenaria a evacuação de todo seu governo para a ilha de Taiwan. Estima-se que cerca de 2 milhões de pessoas fugiram para a ilha, principalmente soldados, membros do Kuomintang, elites intelectuais e empresários (KUBEK, 1963).
Entre 1952 e 1961, o governo passaria tomar medidas visando o desenvolvimento industrial a médio-longo prazo, fazendo de Taiwan, à época, uma ilha agroexportadora. Tais ações proporcionaram ao país uma grande reserva cambial, a qual faria, em 1962, com que Taiwan já apresentasse traços de alto desenvolvimento de seu parque fabril, dando início a chamada “Era Industrial”. Entre 1963 e 1981, Taiwan sustentaria um crescimento anual acima de 10%. Durante décadas, o governo de Taipei seria reconhecido como legítimo representante da China, ocupando o assento como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Contudo, em 1970, com o fim do Tratado de Defesa Mútua Sino-americano, a maioria dos Estados trocariam seu reconhecimento para Beijing e, pela resolução 2758 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1971, a ONU passaria a reconhecer a República Popular da China, removendo todos os representantes de Chiang da organização (CHAO; MYERS, 1997).
A lei marcial só seria revogada no final da década de de oitenta e em 1996 a ilha teria as primeiras eleições democráticas de sua história. Quatro anos depois, um presidente sem ligações com o Kuomintang seria eleito pela primeira vez. Chen Shui-bian assumira a liderança do Executivo Yuan, pelo Partido Progressista Democrático, ou DPP, de ideologia liberal e pró-independência. Em 2008, Ma Ying-jeou venceria as eleições presidenciais em Taiwan, pelo Kuomintang, marcando o retorno do partido nacionalista ao poder e do conceito de ‘Uma China’.
Novo Cenário Interno, Soft Power Taiwanês e Protestos em Hong Kong
Dois anos após a reeleição de Ma Ying-jeou, em 2014, o conceito de ‘uma China’ traria instabilidades com o Acordo de Comércio de Serviços através do Estreito, o qual visava facilitar o comércio de serviços entre a ilha e o continente, abrindo a possibilidade de investimento chinês nas indústrias de serviços de Taiwan, como bancos, saúde, turismo, cinema e telecomunicações. O acordo seria duramente criticado e enfrentaria uma forte resistência principalmente entre os jovens. Em março daquele ano, surgia o Movimento Estudantil Girassol com o objetivo de cobrar a recusa pelo legislativo do acordo, dentre outras reivindicações. O movimento mudaria o modo que a política de Taiwan trataria as questões além do estreito e repercutiria nos anos seguintes, principalmente nas eleições de 2016 (HSIEH; WEIGEL, 2014).
A principal consequência das manifestações viria anos depois com a eleição de Tsai Ing-wen, que viria ser a primeira mulher presidente de Taiwan, marcando o retorno do DPP ao poder, além de uma mudança abrupta nas relações entre Taipei e Beijing. Tsai é a primeira líder de ascendência Hakka e aborígene, o que fortalece seus discursos de defesa as minorias e a distinção entre a Taiwan e China, bem como da manutenção do status quo da ilha, o que tem proporcionado certa estabilidade econômica e política, uma vez a grande participação da China no comércio internacional taiwanês. Qualquer escalada militar no estreito viria a trazer grandes prejuízos econômicos para Taipei que já tem apresentado crescimento singelo, aproximado dos 2%. Entretanto, o posicionamento de Tsai, considerado como anti-China, fez com que, apenas um mês após sua posse, Beijing suspendesse as comunicações oficiais como a ilha (LEE, 2019).
Segundo Silva (2017):
“O discurso de Tsai foi sempre no sentido da defesa da soberania e independência oficial de Taiwan em relação à China, embora o exercício do poder obrigue a alguma contenção. […] O discurso oficial no rescaldo das eleições apontou para a defesa do sistema democrático, a proteção e respeito da identidade e integridade nacional, salientando que ‘qualquer forma de violação afetará as relações entre os dois lados do estreito’. A manutenção do status quo tem sido um dos pontos mais salientados da nova Presidente da ilha”.
Todavia, uma particularidade necessita ser considerada: o governo de Tsai tem se posicionado, sempre que possível, como ‘Taiwan’, evitando o uso da palavra ‘China’. Em 2007, durante o governo de Chen Shui-bian, também do DPP, seria aprovada uma resolução que visava justamente a distinção identitária, a fim de tornar o termo ‘Taiwan’ de uso geral, apesar da manutenção do nome oficial do país. Outros pontos igualmente importantes são as ações do governo de Tsai, como a realização de políticas para povos indígenas e aprovação de mudanças na legislação nacional, fazendo com que Taiwan criasse uma imagem própria. Dentre as medidas destacam-se a oficialização de mais de 20 idiomas locais e/ou indígenas como nacionais e a legalização, em 2019, no Legislativo Yuan, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, fazendo com que Taiwan se tornasse o primeiro país da Ásia e, até mesmo, referência para questões relacionadas a direitos humanos e minorias étnicas.
Desde a redemocratização, o surgimento de uma identidade própria em Taiwan é notada. Apesar de etnicamente ser parte da nação Han, assim como a China continental, desde 1995 a maior parte da população da ilha tem se autodeclarado como taiwanesa, seguido por uma outra maioria que se considera tanto chinesa quanto taiwanesa. São poucos aqueles que se declaram apenas como chinês. Tal cenário se deve, principalmente, ao fato que a maioria dos habitantes da ilha serem jovens e já não mais compartilham laços fortes com o continente, após 70 anos de separação. E, espera-se que, quanto maior for o abismo entre a realidade da ilha e a do continente, maior também seja este ‘sentimento taiwanês’. De acordo com Alice Su (2019), em 2019, apenas 3,7% dos taiwaneses se autodeclaravam como chineses, na maior parte idosos.
Consequentemente, o fato colabora para a atual popularidade de Tsai, uma vez que a maior parte de seu eleitorado é composto por jovens e almeja a manutenção do status quo. Nota-se, então, um aproveitamento, pelo DPP, do cenário atual, usando-o a fim de promover internacionalmente uma imagem própria, distinta daquela exposta por Beijing. Logicamente que criar um cenário onde seja fácil a distinção entre ambos países é de agrado para o plano de internacionalização de Taipei, a fim de ganhar espaço onde Beijing perdera e/ou não chegara. De maneira pragmática, Taiwan tem realizado a chamada ‘diplomacia de saúde’, considerado como um exercício de soft power que se provou bem-sucedido, provendo auxílios na área para países com e sem laços diplomáticos com a ilha. Como, por exemplo, o Paraguai, que mantém laços diplomáticos oficiais e recebe auxílio do Fundo Internacional de Cooperação e Desenvolvimento de Taiwan; e a África do Sul e o Malawi que, apesar de não manterem relações diplomáticas, tiveram como resolvida a questão das altas taxas de HIV, tuberculose e hipertensão entre pacientes transfronteiriços, por ação de Taipei (CHEN; JERZEWSKI, 2020).
Segundo Marcin Jerzewski e Kuan-Ting Chen (2020):
“Em vez de apenas buscar transações intergovernamentais, Taiwan procurou manifestar seu compromisso com os valores da saúde humana e do intercâmbio de pessoas para pessoas. Essencialmente um exercício de projeção de soft power, esse projeto colaborativo exemplificou efetivamente a abordagem orientada para a sociedade à assistência ao desenvolvimento”.
Para o professor Jorge Silva (2017), “um dos grandes desafios de Tsai passa pela recuperação da economia da ilha, fortemente condicionada as relações com a China continental”. Logo, em 2016, Taiwan lançaria a ‘Nova Política para o Sul’, com o objetivo de tornar-se menos dependente da China e aumentar a cooperação com países do sul global, em especial do Sul e Sudeste Asiático, além da Oceania, focando em setores como comércio, tecnologia, agricultura, medicina, educação e turismo. Desde sua implementação, o programa resultou em um aumento significativo no comércio bilateral, totalizando 100 bilhões de dólares em 2018, além do fluxo de pacientes, visitantes e estudantes oriundos dos países alvos (KAO; LIAO, 2019).
O relacionamento entre o governo de taiwanês e os Estados Unidos, sob gestão de Donald Trump, também demonstrou certa evolução. Apesar de sucessivas declarações procurando negar suposições e conjecturas, é nítido o estreitamento das relações, simbolizada pela ligação de Tsai a Trump, em 2016, à época recém-eleito. Seria a primeira ligação entre um presidente dos Estados Unidos, em posse ou eleito, com a ilha desde 1979, quando o país passara a reconhecer a RPC. Tal fato fora duramente criticado por Beijing e Xi Jinping, atual secretário-geral do Partido Comunista Chinês, em janeiro de 2019, tornara pública uma carta aberta à Taiwan, objetivando uma eventual unificação, a fórmula de ‘um país, dois sistemas’, também aplicada a Hong Kong e Macau. Xi enfatizaria, também, que as relações com Taiwan são parte da política doméstica chinesa, e que quaisquer ações estrangeiras na ilha seriam intoleráveis (JIANG, 2018).
Cerca de dois meses depois das palavras de Xi, manifestantes tomariam as ruas de Hong Kong com foco no projeto que permitiria extradição de pessoas do território para a China. Tsai não apenas apoiou abertamente as manifestações, como também utilizou do evento a fim de embasar sua tese de que Taiwan não teria sua autonomia respeitada pela China dentro da proposta de ‘um país, dois sistemas’, assim como Hong Kong. Os eventos colocaram em cheque a já deficitária imagem chinesa na ilha e, simultaneamente, favoreceram a campanha de Tsai, que seria reeleita em janeiro de 2020 com recorde no número de votos, ultrapassando oito milhões (NORTON, 2019).
Pandemia e Visibilidade Internacional
A pandemia trouxe um novo cenário internacional. Desde a confirmação do primeiro caso Taiwan fora elogiado por realizar políticas rápidas, efetivas e assertivas de contenção à propagação do vírus. Enquanto que Japão e Coréia do Sul enfrentavam críticas por ações tardias, a ilha não apresentara nenhum caso por quase 60 dias. Mesmo situada a pouco mais de 120km da costa chinesa e com centenas de voos internacionais diários, a ilha detinha 8 casos ativos, 455 casos confirmados e somava 7 óbitos na primeira semana de em julho de 2020. Ao lado de Singapura, Taiwan passou a ganhar destaque no noticiário internacional e, internamente, a aprovação da gestão Tsai aumentaria de maneira significativa (YEN, 2020).
A China continental teria sua imagem prejudicada, principalmente com críticas quanto a falta de transparência, mesmo que controlando, de certo modo, a disseminação domesticamente. A piora da imagem chinesa em alguns países, por si, não seria um problema alarmante para o governo de Xi, uma vez que a China já estava por auxiliar diversos Estados no combate ao vírus. Contudo quando considerada a simultânea promoção internacional de Taiwan, frente seu sucesso na contenção do vírus, e consequente debate acerca de sua participação na OMS, apoiada formalmente por Canadá, Japão e Estados Unidos, o cenário passa a estar fortemente em desencontro com os planos de Beijing. Passariam, assim, serem feitas previsões quanto a possível reinserção internacional da ilha, até então, desacreditada.
A antiga proposta de política externa de Zhou Enlai, sustentada pelos cinco princípios de coexistência pacífica, somou-se a discursos mais incisivos pelo governo chinês, gerando consequentes atritos. Além da pandemia e da guerra comercial com os Estados Unidos, em maio de 2020, China e Índia entrariam brevemente em conflito, na região de Jammu e Caxemira, onde ambos reivindicam territórios, resultando em dezenas de mortos e intensa militarização da região. No Mar da China Oriental, China e Japão promoveriam sucessivos embates políticos frente as Ilhas Senkaku, território administrado por Tokyo, mas reivindicado por Beijing e Taipei. Por fim, os recentes, mas não novos, avanços chineses no Mar da China Meridional resultaram, também, em instabilidade com seus vizinhos, em especial o Vietnã e as Filipinas.
A cada novo atrito envolvendo Beijing, o governo de Taiwan se posicionava como uma opção alternativa. A ausência, ou quase, de contestações de Taipei quanto as ações japonesas nas Ilhas Senkaku, mesmo tendo reinvindicações sobre as mesmas, podem servir como comprovação. Em contrapartida, neste mesmo período, Taiwan doara mais de 2 milhões de máscaras, além de equipamentos e suprimentos médicos ao Japão para o combate ao COVID-19, por meio de sua diplomacia de saúde. Contudo, tal fato não se deve a uma ação aleatória ou infundada, mas milimetricamente idealizada por Taipei. A lista de incidentes diplomáticos atingiria Londres em junho, com a aprovação a Lei de Segurança Nacional de Hong Kong. Por razões históricas, o Reino Unido seria o principal crítico a lei, julgando-a como em desacordo com a Declaração Conjunta Sino-britânica, de 1984, e propondo conceder residência para detentores do British National (Overseas) Passport, podendo abranger mais de 3 milhões de pessoas (DAVIDSON; GRAHAM-HARRISON; KUO, 2020).
A ação britânica, bem como de outros Estados, seria criticada por Beijing e considerada como ‘interferência estrangeira em assuntos domésticos’. Mas, para o governo de Taiwan, a aprovação e aplicação da lei foi o instrumento que precisava para findar quase que definitivamente a proposta continental, de 2019, que objetivada a inclusão de Taiwan no contexto de ‘Um país, dois sistemas’. Acabara que a retórica anterior, proferia pelo DPP, fora confirmada e o receio dos taiwaneses quanto a futuras investidas chinesas, após as ações em Hong Kong, aumentaria. Tsai, que já declarara apoio as manifestações, ordenaria a abertura de um Escritório a fim de facilitar a imigração de habitantes de Hong Kong para a ilha, intensificando, principalmente, os esforços para atrair empresários e trabalhados qualificados.
Segundo Lee (2020):
“Taiwan vê um êxodo em potencial de jovens Hong Kong como uma chance de revigorar uma economia que enfrenta o decréscimo populacional, uma escassez cada vez maior de trabalhadores qualificados e uma redução nas exportações. A Presidente Tsai Ing-wen também está buscando medidas concretas para ajudar os residentes do território, depois que seu apoio aos protestos pró-democracia do ano passado contribuiu para sua esmagadora vitória eleitoral em janeiro. Taiwan viu um ritmo recorde de imigração e investimento de Hong Kong em 2019, uma tendência que continuou este ano. O número de ‘hongkongonêses’ que se estabeleceram em Taiwan entre janeiro e maio aumentou 96% em relação ao mesmo período do ano passado, enquanto o número de investimentos – principalmente pequenos valores em dólares por indivíduos – aumentou 25%”
Considerações Finais
A fim de se entender adequadamente a importância e as razões para as ações Taiwanesas, bem como suas consequências, torna-se imprescindível a compreensão da política e o ambiente doméstico da ilha. O fortalecimento de uma identidade própria, independente do continente, proporcionou apoio para novas medidas e posicionamentos pelo governo taiwanês atual. É clara a falta de apoio dentre os habitantes da ilha para com unificação com o continente, e não se dá por coincidência o fortalecimento da retórica para a manutenção do status quo, pelo governo de Tsai. E, consequente, perda de expressão do Kuomintang, que demanda uma reformulação de seus princípios políticos para com o relacionamento com o continente.
Para Jiří Pehe (1998):
“A política externa nunca é meramente um espelho das condições domésticas de um determinado país. A dinâmica das relações entre políticas domésticas e a situação econômica, por um lado, e a política externa, por outro, é um processo complicado. De um modo geral, é possível argumentar que até existe uma certa contradição nas relações entre política interna e externa […]. Os processos políticos domésticos e a cultura influenciam muito o estilo e a formação da política externa”.
O fortalecimento do processo formador de uma identidade exclusivamente taiwanesa tem auxiliado a elaboração da política externa de Tsai Ing-wen, dando mais força e legitimidade domesticamente. A diplomacia de saúde não é recente para Taiwan. Conforme exposto por Jerzewski e Chen (2020), “a política de ‘diplomacia pragmática’ de Taiwan, introduzida no final dos anos 80, provocou um aumento dramático na provisão de ajuda externa de Taiwan. Isso incluiu projetos emblemáticos no campo da assistência médica”. O isolamento fez Taiwan usar de seu poder econômico a fim de expandir os esforços por meio de ajuda humanitária, como a intenção, a princípio, de obter apoio diplomático, mas sendo posteriormente reconfigurada para uma estratégia de cooperação internacional. E, em meio ao cenário pandêmico atual, tais mecanismos são muito bem-vindos em diversos países no mundo, dando espaço para a ilha no contexto internacional.
O grande contraste nas ações entre Taiwan e China, para com o desenvolvimento e a cooperação, é perceptível ao analisar o envolvimento de ambos com o sul global. Beijing insiste em uma cooperação Sul-Sul, com foco na América Latina e África, vista como importantíssima para o desenvolvimento da infraestrutura nas regiões. Mesmo que o financiamento chinês seja tentador, para muitos países em desenvolvimento, o saldo dos empréstimos é insustentável, levando a China a assumir o controle de recursos naturais como garantia. Um claro exemplo é o Equador, onde a dívida com a China se aproxima de 39% do PIB, fazendo com que 90% das exportações de petróleo bruto estejam comprometidas com o governo de Beijing. Fato que traria questionamentos quanto ao apoio chinês. Em contrapartida, a agenda de Taiwan está focada principalmente no fortalecimento por meio do soft power (CHEN; JERZEWSKI, 2020).
Dois pontos cruciais devem ser enfatizados quanto analisados os almejos de Tsai Ing-wen. Primeiramente, a presidente, pelo menos a curto-médio prazo, não demonstra objetivar o reconhecimento, mas sim procura espaço internacional a fim de acabar com o isolacionismo. Isso se justifica pelas ajudas humanitárias a países sem laços diplomáticos, incluindo europeus, o qual renderia um agradecimento formal direcionados a Taiwan, pela União Europeia. Adicionalmente, o governo tem procurado fomentar o fortalecimento da identidade taiwanesa, a fim de afastar-se da imagem de Beijing, claramente exemplificado pela aprovação da proposta de mudança de nome da China Airlines, empresa aérea estatal da ilha. A maior companhia aérea de Taiwan se tornou foco de debate nacional após as doações de máscaras pelo governo de Taiwan para países, principalmente europeus, onde o nome da empresa fez com que indivíduos confundissem a ilha com o continente. Tsai tem procurado adentrar cautelosamente espaços perdidos ou ignorados por Beijing, em meio aos atritos internacionais de 2020. Além procurar mostrar a ilha, ao mundo, como a representação daquilo que mais se é cobrado do continente.
Apesar de não transparecerem, as ações de Taipei são extremamente estratégicas e pragmáticas. Com os desafios de encontrar mão-de-obra qualificada e investidores para a ilha, Tsai se depara com a oportunidade, não apenas de agir para suprimir tais necessidades, mas também obter capital político e espaço internacional. Logo, é possível notar racionalidade nas ações do governo de Taiwan, agindo pontualmente considerando as opções políticas viáveis e os meios adequados para alcançar seus objetivos, conforme o modelo de ator racional, proposto por Graham T. Allison. A tentativa simultânea de fortalecer uma identidade própria, internamente, e se desassociar do termo ‘China’ e do governo de Beijing, também não são ações aleatórias. Mas orquestradas, relacionadas e estratégicas a fim de se atingir um mesmo objetivo.
É evidente que quanto maior for a força do processo formador de uma identidade própria, maior será a reprovação para uma possível unificação com o continente e mais fácil será a desassociação entre Taipei e Beijing internacionalmente. Quanto maior for esta desassociação, mais fácil será criar uma reputação e imagem própria. E, por fim, com uma imagem internacional própria, para cada atrito entre um Estado e a RPC, Taipei poderá, e irá, aparacer como uma terceira via, diplomática e humanitarista. Uma perceptível exemplificação é o fato que enquanto o continente é destacado pela imprensa internacional por questões militares e atritos políticos, a ilha é citada por seus méritos de combate ao COVID-19 e por ter sido o único local no mundo a realizar, mesmo que limitadamente, uma parada de orgulho LGBTQ.
Conclui-se que, apesar da improvável aproximação de Taiwan com um reconhecimento formal, bem como que a RPC não protagonize sua agenda de política externa, o governo da ilha tem procurado utilizar do pragmatismo, a fim de manter sua autonomia e ser internacionalmente participativo. Com o possível aumento dos atritos entre a China continental e seus vizinhos, espera-se que a comunidade internacional gradualmente e singelamente acabe por dar mais visibilidade à ilha. A possibilidade de reinserção internacional da ilha, mesmo que com carácter de convidado ou observador, é cada vez menos remota. Caberá as futuras ações de Beijing dizerem, indiretamente, se Taiwan poderá, um dia, ser visto para além de uma província rebelde chinesa.
Referências bibliográficas:
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