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O limbo internacional no campo de Al Hawl – Síria

Photo by Ahmed akacha via Pexels

Após a derrota do autoproclamado Estado Islâmico na região norte da Síria e a captura de membros remanescentes dos terroristas do grupo fundamentalista, outra questão tem causado preocupação em parte da comunidade internacional e demonstrado a falta de coordenação. O elevado número de pessoas assentadas nos campos de refugiados se tornou outra fonte de problemas. Esse tema tem sido alvo de preocupações para as forças de segurança local, funcionários da ONU e profissionais designados para dar apoio aos locais de assentamento. Os problemas mencionados são diversos, desde escassez de alimentos e a falta de acesso à água potável até a questão da segurança local, que é a principal questão abordada pelos especialistas. No entanto, pouco tem sido feito para resolver os problemas relatados, principalmente os relacionados à segurança local.

Nem mesmo a questão da repatriação dos estrangeiros detidos, que daria certo alívio na superpopulação assentadas no campo de Al-Hawl tem sido eficaz. Alguns países como Reino Unido e Austrália se recusam a repatriar seus cidadãos que em algum momento se uniram ao grupo terrorista islâmico, muito dos quais se deslocaram para o território sírio ou iraquiano a fim de fazerem parte do pseudo “califado”. Em alguns casos, como o da britânica de origem bengali, Shamima Begum, o governo britânico retirou a nacionalidade da ex-integrante do grupo Estado Islâmico como forma de dificultar o retorno dela para o Reino Unido, o que segundo o governo britânico, não a deixa em situação de apátrida, devido a Shamima possuir a cidadania de Bangladesh. O governo britânico também se recusa a permitir a entrada de Shamima em território britânico (JACKSON, 2021).

Todavia, esse não é um caso isolado, muitos outros habitantes de Al-Hawl não estão autorizados a deixar as instalações do campo de refugiados, seja por ligação com os fundamentalistas do Estado islâmico ou por não terem sidos identificados durante a triagem das forças de segurança. No caso das crianças, elas não estão autorizadas a deixar o campo simplesmente por não possuírem documentos válidos para que possam ser repatriados pelos países de origem de seus pais. Além disso, há a recusa do governo Sírio em permitir a presença desses estrangeiros acusados de terrorismo circulando livremente dentro do seu território, o que acaba impactando também as crianças.

O limbo jurídico

Assim como no caso da britânica Shamima, muitos outros estão vivendo em Al-Hawl em um limbo jurídico internacional, pois os governos estão temerosos com a possibilidade desses simpatizantes do Estado Islâmico voltarem a atuar dentro das fronteiras de seus países de origem. Devido a esse risco, os prisioneiros em Al-Hawl não possuem nenhuma expectativa de saírem do campo. Conforme relatado pelo jornalista Dominic Casciani: as forças de segurança local não permitem a entrada de advogados no campo de Al-Hawl por questões de segurança, o que tem dificultado a situação jurídica de centenas de pessoas. São habitantes das regiões anteriormente ocupadas e que não possuem ligações com o grupo extremista, e estão dentro do campo de refugiados por não terem se evadidos antes da chegada do Estado Islâmico.

Dos habitantes apátridas no campo, a maioria são filhos de fundamentalistas estrangeiros, que nasceram em Al Hawl ou em áreas que antes faziam parte do domínio dos fundamentalistas do Estado Islâmico. Essas crianças nem mesmo foram registradas, o que dificulta ainda mais uma possível repatriação delas. Não há dados exatos a cerca de quantas crianças vivem no campo de Al-Hawl, mas estima-se que cerca de 40 mil crianças órfãs vagueiam pelo campo. Como relatou a ONU, mais da metade delas estrangeiras, vivem em más condições nos campos de refugiados na Síria, incluindo o campo de Al-Hawl, mas os seus países de origem recusam-se a repatriá-las (LUSA, 2021).

Países como Síria e Iraque não reconhecem como nacionais os filhos de estrangeiros que tenham nascido em seus territórios, pois adotam a corrente do direito internacional do “jus sanguinis”, que apenas reconhece os nascidos de pais nacionais desses países, e ainda que as crianças sejam filhos de nacionais sírios, não foram legalmente registradas em repartições do governo. Devido a essa questão, as autoridades sírias e iraquianas não tem chegado a um acordo junto a comunidade internacional, o que tem dificultado as decisões entre os governos acerca do repatriamento das crianças órfãs, uma clara violação do Artigo VI da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) (LUSA, 2021).

Essa mistura de insegurança jurídica e risco à segurança nacional está longe de ser resolvida, principalmente devido aos países com nacionais envolvidos com o grupo terrorista islâmico não estarem dispostos a correr riscos para reintroduzir pessoas declaradamente simpáticas ao fundamentalismo religioso em seus territórios. Desde então, as questões humanitárias estão em segundo plano, por conta do alto risco em repatriar pessoas altamente radicalizadas e com elevado grau de periculosidade para a segurança nacional, ou mesmo, o simples contato dos representantes dos países envolvidos ou da ONU com os residentes do campo poderia representar um alto risco para as equipes.

A violência no campo de Al Hawl

Nos últimos 18 meses, mais de cem pessoas foram assassinadas dentro do campo de Al Hawl, e que segundo a coordenadora da ONU que atua no local, Imran Riza, tem ocorrido porque alguns residentes do campo têm infringido as regras do “Estado Islâmico”, o que confirma a atividade dos extremistas por meio de suas células dentro dos campos de refugiados (ZAVALLIS, 2022).  As mortes mais recentes são abertamente reivindicadas por mulheres da linha dura do Estado Islâmico, também conhecidas como “as esposas do ISIS”. Muitas delas são viúvas dos terroristas mortos pelas forças da coalizão. Essas mulheres seguem e impõem rigidamente o radicalismo religioso impostos pelo autoproclamado Estado Islâmico e constantemente aplicam punições severas a quem não segue estritamente as regras da sharia, o que tem causado mais preocupações nos responsáveis pelo campo de Al Hawl, devido à violência desenfreada.

Segundo a correspondente da emissora BBC, Poonam Taneja, a situação em Al Hawl é “caótica, desesperadora e perigosa”, o risco dos agentes humanitários sofrerem emboscada por mulheres extremistas desestimula qualquer trabalho humanitário dentro de Al Hawl. As poucas mulheres que aceitam a falar com pessoas de fora do campo são cautelosas nas palavras, pois temem atrair a ira das mais radicais (TANEJA, 2022). Algumas mulheres relatam que ocorrem mortes diariamente no interior do campo. Tendas são incendiadas quando alguém deixa de seguir estritamente as regras do radicalismo islâmico e as mães passam a visão do radicalismo religioso para as crianças (TANEJA, 2022). Esses são precedentes perigosos e que podem vir a ser o renascimento do movimento extremista Estado Islâmico.

O risco de uma rebelião

Devido ao elevado número de aprisionados em Al Hawl, as forças de segurança sírias e curdas temem por eclodir uma rebelião em larga escala, que pode vir a ocorrer a qualquer momento por parte dos insurgentes infiltrados no campo em meio aos refugiados. Conforme relatos do correspondente: “Al-Hawl é um pesadelo, um campo cuja população aumentou de 11 mil residentes para mais de 70 mil. Ele está inchado com as consequências sombrias do pseudo califado desmoronado. Está pronto para explodir” (SOMMERVILLE, 2021).

Segundo a agência de notícias árabe Al Jazeera, há mais de 70 mil refugiados e prisioneiros detidos no campo de refugiados em Al-hawl, localizado no norte da Síria, dentre eles, a maioria são mulheres e crianças que viviam em locais controlados pelo Estado Islâmico (AL JAZEERA, 2021). Acredita-se que a maioria das mulheres detidas em regiões antes controladas pelos insurgentes foi altamente doutrinada no radicalismo, principalmente por seus maridos, e, por isso, consideradas de altíssima periculosidade. São vistas como células adormecidas do grupo fundamentalista islâmico e potenciais elementos de disseminação do radicalismo religioso ou mesmo executoras de atentados terroristas (SOMMERVILLE, 2021).

Apesar de detidos, e de certo modo controlados dentro dos campos, os fundamentalistas islâmicos continuam a ditar suas regras dentro dos limites do campo de Al-Hawl. A maior preocupação por parte das forças curdas com os prisioneiros do grupo Estado Islâmico é que os ex-combatentes jihadistas[1] voltem a se organizar para então eclodir um grande motim dentro dos campos de prisioneiros. Apesar do temor do resurgimento do Estado Islâmico, a comunidade internacional tem feito muito pouco para solucionar o problema. Ainda, nem o governo sírio ou militantes curdos possuem condições de manter os prisioneiros por longos períodos sob sua custódia.

As mulheres de Al-Hawl agora o chamam de Jabal Baghuz, ou Montanha Baghuz, batizada em homenagem à cidade oásis no rio Eufrates, onde seus maridos foram derrotados em março de 2019. Dentro da seção reservada para estrangeiros e fora do controle dos guardas opressores do campo, Jabal Baghuz é agora o único lugar onde vive o chamado califado do grupo militante. É a partir daqui que as sementes do ressurgimento do Estado Islâmico estão sendo plantadas. (Dentro do campo de Al-Hawl, a incubadora da insurgência do “Estado Islâmico”. TheGuardian.com)[2] tradução livre.

Conforme relatos do chefe das Forças Democráticas Síria, General Mazloum Kobani “Isso é uma bomba relógio esperando para explodir, não há solução fácil”. Há relatos de espancamentos, lapidações e até mesmo execuções entre os detidos. Atos simples como falar com pessoas de fora do campo ou dar entrevistas pode ser considerado ofensivo conforme as regras impostas pelo Estado Islâmico e levar a punições severas ou mesmo a morte. Em setembro de 2020, foram relatadas onze tentativas de assassinato dentro do campo de Al Hawl, a maioria deles visando refugiados iraquianos, dos quais dois foram mortos em ataques com armas brancas. Há também relatos de francos atiradores dentro dos limites de Al-hawl, que constantemente emboscam guardas desatentos.

Os poucos extremistas islâmicos que restaram da queda do califadocontinuam a atacar o campo de Al Hawl na tentativa de libertar outros extremistas que estão aprisionados (BUSSOLETTI, 2022). Com o temor de que outra rebelião possa eclodir a qualquer momento, autoridades curdas, iraquianas e sírias têm pressionado países a repatriar seus cidadãos que se encontram detidos em Al-Hawl. Dentre os terroristas há cidadãos de diversos países europeus, como Alemanha, Bélgica, Dinamarca, dentre outros. Muitos desses estrangeiros foram radicalizados em seus países de origem, por meio de recrutadores jihadistas online ou infiltrados em mesquitas e grupos de estudos religiosos.

Os centros de detenção curdos relataram diversas fugas do campo de Al-Hawl, desde a captura dos extremistas islâmicos, cerca de 800 prisioneiros já conseguiram escapar (GARDINER, 2019). Como relata Gardiner, as lideranças do Estado Islâmico estão desempenhando um domínio cada vez maior dentro de Al-Hawl, o que encoraja outros extremistas a tentarem uma fuga. Uma autoridade que lida com o campo disse que os moradores estão aproveitando o foco dos combatentes curdos em defender o território da ofensiva turca na Síria para se revoltar (LUSA, 2019). Esses incidentes ocorridos demonstram certas fragilidades da segurança em torno de Al Hawl. As células adormecidas do Estado Islâmico podem estar aguardando o momento oportuno para realizar uma investida mais incisiva contra os guardas do campo.

Conclusão

Após a morte de grande parte dos integrantes do Estado Islâmico e a captura de simpatizantes e suspeitos de ligação com os extremistas islâmicos, o destino da maioria dos prisioneiros radicalizados continua uma incógnita. Essa questão não resolvida, juntamente com outros problemas enfrentados dentro do campo de Al Hawl, pode vir a alimentar o ressurgimento do Estado Islâmico na região. Para os defensores dos direitos humanos, a retirada dessas pessoas de dentro do campo de Al Hawl é uma questão fundamental para a dignidade humana, já que dentre os detidos também residem crianças, idosos, além muitas pessoas que já habitavam a região e não faziam parte do grupo terrorista.

Contudo, a preocupação com a segurança nacional tem pesado nas decisões dos países em repatriar os radicais ou transferir os acusados de terrorismo para as penitenciárias nacionais, pois não há elementos acusatórios suficientes para individualizar e formalizar cada acusação, o que poderia acarretar na liberdade de pessoas radicalizadas que representam um alto perigo para a sociedade. De outro modo, o encarceramento de ex-membros do Estado Islâmico poderia servir de base para o recrutamento de outros detentos e multiplicar a radicalização de indivíduos.

O mero abandono dessas pessoas nessa crítica situação é a certeza de que o problema do radicalismo islâmico estará apenas aguardando o momento oportuno para ressurgir com a nova geração de crianças nascidas no campo de refugiados, pois os números apenas aumentam e a doutrinação extremista é amplamente difundida e repassada de mãe para filhos. A falta de uma solução concreta e eficaz tem dado tempo para que as sementes do extremismo islâmico frutifiquem de modo silencioso aos olhos da comunidade internacional.

Referências

AL JAZEERA. ‘Urgent need’ to repatriate, rehabilitate ISIL children in Syria. Disponível em https://www.aljazeera.com/news/2020/6/18/urgent-need-to-repatriate-rehabilitate-isil-children-in-syria Acesso em 06 de Mar de 2023.

BALADI, Enabi. Women at al-Hawl camp are prone to extortion by jailers of Kurdish-led “Autonomous Administration”. Disponível em: https://english.enabbaladi.net/archives/2020/08/women-at-al-hawl-camp-are-prone-to-extortion-by-jailers-of-kurdish-led-autonomous-administration/ Acesso em 21 de Fev de 2023.

BUSSOLETTI, Francesco. Syria, the Islamic State tries in vain to attack the Al-Hawl camp. Disponível em: https://www.difesaesicurezza.com/en/defence-and-security/syria-the-islamic-state-tries-in-vain-to-attack-the-al-hawl-camp/ Acesso em: 12 de Dez de 2022.

DREDGE, Suzanne; WELCH, Dylan; SELVARATNAM, Naomi. Violence escalating in al-Hawl camp as Islamic State women open fire on guards, bodies found. Disponível em: https://www.abc.net.au/news/2019-10-01/kurds-plead-with-australia-to-take-back-islamic-state-families/11560338?nw=0&r=HtmlFragment Acesso em: 23 de Out de 2021.

GARDINER, Frank. Estado Islâmico: a ‘bomba-relógio’ dos centros de detenção de integrantes do grupo extremista. Disponível em:  https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50240581 Acesso em: 01 de Ago de 2021.

HASSAN, Hassan. My young cousin fled the bombs … only to be held in a camp alongside Isis supporters. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2019/sep/14/my-young-cousin-fled-the-bombs–only-to-be-held-in-al-hawl-camp-alongside-isis-supporters Acesso em: 21 de Fev de 2023.

JACKSON, Marie. Former IS teenage bride Shamima Begum offers to help fight terror in UK. Disponível em: https://www.bbc.com/news/uk-58573501 Acesso em: 05 de Mar 2022.

LUSA. ONU denuncia abandono internacional de crianças nos campos de refugiados. Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/mundo/onu-denuncia-abandono-internacional-de-criancas-nos-campos-de-refugiados_n1348630 Acesso em: 12 de Dez de 2021.

LUSA. Curdos evitam fuga de familiares do Estado Islâmico. Disponível em: https://www.tsf.pt/mundo/curdos-evitam-fuga-de-familiares-do-estado-islamico-11396681.html Acesso em 26 de Fev de 2023.

MCKERNAN, Bethan. Inside al-Hawl camp, the incubator for Islamic State’s resurgence. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2019/aug/31/inside-al-hawl-camp-the-incubator-for-islamic-states-resurgence Acesso em 26 de Fev de 2023.

SOMMERVILLE, Quentin. Estado Islâmico: As mulheres e crianças que ninguém quer. Disponível em:  https://www.bbc.com/portuguese/geral-47907320 Acesso em: 02 de Fev 2021.

SOZ, Jiwan. Concerns over the threat posed by female jihadists with ties to ISIS in Al-Hawl are rising following repeated military attacks on the camp.  Disponível em: https://carnegieendowment.org/sada/87510 Acesso em: 07 de Dez de 2022.

TANEJA, Poonam. Os filhos do Estado Islâmico em campo de detenção na Síria: ‘Um desastre com o qual não conseguimos lidar’. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-58910662 Acesso em: 18 de Dez 2022.

ZAVALLIS, Achilleas. More than 100 murders in 18 months in Syria’s al-Hawl camp, UN says. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/jun/28/more-than-100-murders-in-18-months-in-syrias-al-hawl-camp-un-says Acesso em: 30 de Nov 2022.


[1] Militantes fundamentalistas islâmicos, que objetivam combater os ditos “infiéis” por meio do jihad menor. “formulada quando o Mundo Islâmico já era uma superpotência, a ideia do jihad menor refletia um espírito de soberania” […] “Era um instrumento usado para proteger a comunidade dos fiéis” (NAPOLEONI, Loretta. 2015, pág 97).

[2] Al-Hawl’s women now call him Jabal Baghuz, or Baghuz Mountain, named after the oasis town on the Euphrates River where their husbands were finally defeated in March. Deep inside the section reserved for foreigners and outside the control of the oppressive camp guards, Jabal Baghuz is now the only place where the militant group’s so-called caliphate lives. It is from here that the seeds of the ISIS resurgence are being planted. (Inside the Al-Hawl camp, the Islamic State’s insurgency incubator. TheGuardian.com). Tradução própria.

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