A Geórgia, localizada em um ponto estratégico entre Europa e Ásia, enfrenta uma de suas crises políticas mais profundas dos últimos anos, desencadeada pela decisão do governo de suspender as negociações de adesão à União Europeia. Nos últimos dias, milhares de manifestantes tomaram as ruas da capital, Tbilisi, exigindo o retorno imediato às conversas com Bruxelas e denunciando o que consideram um retrocesso na trajetória pró-Ocidente do país.
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— 𝐀𝐧𝐧𝐚 𝐊𝐨𝐦𝐬𝐚 🇪🇺🇵🇱🇺🇦 (@Tweet4AnnaNAFO) December 3, 2024
Georgians demand Western path — NOT Russian past. pic.twitter.com/ob3ksipMYH
O epicentro da crise atual está na vitória do partido governista Sonho Georgiano nas eleições de outubro de 2024, em um pleito marcado por acusações de fraude e repressão à oposição. Liderado pelo primeiro-ministro Irakli Kobakhidze, o governo tem adotado uma postura que equilibra uma retórica moderada pró-Europa com decisões que, na prática, afastam o país de um alinhamento direto com o Ocidente. A suspensão das negociações com a UE foi justificada pelo governo como uma necessidade de preservar a soberania georgiana diante de exigências externas consideradas excessivas, mas a medida aprofundou divisões internas e gerou críticas internacionais severas.
Sumário
O pano de fundo da crise é uma sociedade georgiana polarizada. De um lado, há uma parcela significativa da população que defende a integração europeia como um caminho para prosperidade econômica e estabilidade democrática. De outro, setores alinhados ao governo veem a aproximação com a UE como uma interferência que poderia desestabilizar ainda mais o país, especialmente no contexto de sua delicada relação com a Rússia. O partido governista é frequentemente acusado de buscar um equilíbrio que favorece indiretamente Moscou, alimentando tensões domésticas e externas.
Esse cenário é agravado pelo histórico geopolítico da região, onde a Rússia exerce influência através das regiões separatistas de Abkhazia e Ossétia do Sul, que permanecem sob ocupação militar russa desde a guerra de 2008. A proximidade geográfica e histórica com Moscou coloca a Geórgia no centro de um jogo político maior, no qual o Kremlin busca bloquear qualquer expansão da UE e da OTAN no Cáucaso, enquanto os Estados Unidos e a União Europeia tentam reforçar alianças com países da região.
A crise georgiana atual simboliza mais do que uma disputa interna; ela reflete os desafios enfrentados por Estados em regiões estratégicas que se tornam campos de batalha na rivalidade entre grandes potências. Com os protestos ganhando força e a repressão policial recebendo condenação internacional, a Geórgia está em uma encruzilhada que determinará não apenas o futuro de sua política externa, mas também a estabilidade interna de uma nação que busca, há décadas, definir seu lugar na ordem internacional.
Para compreender o país e o cenário político atual, é necessário uma revisão histórica, compreensão da geopolítica e de relações internacionais.
A Formação do Estado e Tensões Internas e Externas
A trajetória da Geórgia como um Estado independente é profundamente marcada por disputas territoriais, influências externas e desafios internos de consolidação nacional.
A Geórgia declarou sua independência em 9 de abril de 1991, após um referendo realizado em 31 de março do mesmo ano, poucos meses antes da dissolução oficial da União Soviética. A independência, porém, trouxe desafios imediatos. O país enfrentou uma grave crise econômica, conflitos internos e dificuldades em estabelecer uma governança estável. As regiões de Abkhazia e Ossétia do Sul, povoadas por minorias étnicas não georgianas, declararam independência em 1992, resultando em confrontos violentos que deslocaram milhares de pessoas e fragilizaram o controle do governo central (Shantadze, 2006).
A guerra na Abkhazia, que começou em 1992, foi uma das mais devastadoras. A Rússia desempenhou um papel central ao fornecer apoio militar e logístico às forças separatistas. A luta terminou com a vitória dos separatistas em 1993, deixando mais de 200 mil georgianos deslocados (Kanbolat, 2020). Na mesma década, a Ossétia do Sul também experimentou conflitos intermitentes, que culminaram em uma guerra maior com a Rússia em 2008.
Geograficamente, a Geórgia ocupa uma posição estratégica, conectando a Europa ao Mar Cáspio e às regiões da Ásia Central. O país é atravessado por importantes rotas de energia, como o oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan, que reduz a dependência da Europa do petróleo russo. Além disso, sua proximidade com o Mar Negro fortalece sua relevância como corredor de transporte e comércio.
Historicamente, a Geórgia esteve sob domínio de várias potências, incluindo os Impérios Otomano, Persa e Russo. Após ser anexada ao Império Russo em 1801, o país sofreu um processo de russificação que limitou sua autonomia cultural e política (Sapmaz, 2008). Durante o período soviético, embora tenha mantido certa estabilidade sob lideranças locais, como a de Joseph Stalin, natural da Geórgia, o país enfrentou políticas repressivas que sufocaram aspirações nacionalistas.
Movimentos Políticos e Reformas
A década de 1990 foi marcada por instabilidade política. Zviad Gamsakhurdia, o primeiro presidente da Geórgia, foi deposto em 1992 após um golpe militar, sendo substituído por Eduard Shevardnadze, que enfrentou desafios de reconstrução e reformas internas. Em 2003, a Revolução das Rosas trouxe Mikheil Saakashvili ao poder, prometendo modernização e uma agenda pró-Ocidente. Sob sua liderança, a Geórgia buscou reformas anticorrupção e uma maior integração com a União Europeia e a OTAN (Kodaman e İren, 2013).
No entanto, o governo de Saakashvili foi marcado por tensões com a Rússia, culminando na guerra de 2008. Durante o conflito, a Rússia reconheceu a independência de Abkhazia e Ossétia do Sul, consolidando sua ocupação militar nesses territórios. A guerra teve impactos duradouros, com perdas territoriais e um aumento das tensões políticas internas.
A Rússia considera a Geórgia parte de sua esfera de influência histórica e estratégica, especialmente devido à sua proximidade com os corredores energéticos e ao seu papel no Cáucaso. Após a independência, Moscou manteve sua influência através do apoio a movimentos separatistas, como em Abkhazia e Ossétia do Sul. A guerra de 2008 reforçou o controle russo nesses territórios, enquanto a presença militar russa continua sendo uma fonte de tensão para Tbilisi (Erkan, 2016). Além disso, a Rússia utiliza as tensões fronteiriças e a “fronteirização” (processo de avanço de cercas e sinais de fronteira em território georgiano) como táticas para pressionar Tbilisi e manter a instabilidade regional (Erkan, 2016).
A Geórgia desenvolveu laços estreitos com potências ocidentais, buscando uma alternativa à influência russa. Desde 2002, o país formalizou sua intenção de aderir à OTAN e, em 2014, assinou um Acordo de Associação com a União Europeia. Essas parcerias foram fundamentais para o fortalecimento das instituições democráticas e para o apoio econômico, mas também provocaram retaliações da Rússia, que vê essas iniciativas como uma ameaça à sua hegemonia regional (Ağacan, 2000).
Apesar de avanços, as aspirações euro-atlânticas da Geórgia enfrentam barreiras, como a necessidade de reformas mais profundas e as divisões internas. A polarização política e a fragilidade institucional dificultam a implementação de políticas consistentes que garantam progresso democrático e desenvolvimento sustentável.
Considerações sobre o futuro político do país
A vitória do Sonho Georgiano nas eleições de 2024, em um cenário de acusações de fraude e repressão à oposição, reforça essa dinâmica. O partido, liderado pelo primeiro-ministro Irakli Kobakhidze, adota uma retórica de soberania nacional, argumentando que decisões como a suspensão das negociações com a UE visam proteger os interesses do país de exigências externas. No entanto, críticos apontam que essa postura frequentemente favorece indiretamente os interesses russos, especialmente em um momento em que a guerra na Ucrânia reacende tensões regionais e globais.
A Geórgia possui laços históricos, culturais e geográficos com a Europa, e uma parcela significativa de sua população aspira a uma integração plena com o Ocidente. Essa busca é vista como um caminho para garantir prosperidade econômica, estabilidade política e uma identidade nacional que se distancie do legado soviético. No entanto, a construção dessa identidade encontra obstáculos tanto internos quanto externos.
Internamente, a Geórgia enfrenta desafios relacionados à polarização política, à fragilidade institucional e às tensões sociais. Enquanto movimentos pró-Ocidente ganham força em áreas urbanas, especialmente em Tbilisi, regiões mais conservadoras e rurais frequentemente demonstram maior resistência à integração europeia, vendo-a como uma interferência que pode comprometer valores tradicionais ou exacerbar desigualdades.
O impacto da influência russa na Geórgia é significativo, criando desafios complexos para a formulação da política externa georgiana. Internamente, essa influência alimenta uma polarização política, dividindo elites e a sociedade em torno da direção que o país deve tomar. Externamente, as ações de Moscou limitam as opções estratégicas da Geórgia, forçando-a a navegar em um ambiente de segurança altamente instável. A presença militar russa em Abkhazia e Ossétia do Sul não apenas ameaça a soberania georgiana, mas também serve como um lembrete constante das consequências de desafiar a hegemonia russa na região.
Apesar desses desafios, a Geórgia continua a buscar um alinhamento mais estreito com o Ocidente como uma alternativa à dependência russa. A assinatura do Acordo de Associação com a União Europeia em 2014 e a formalização de seu interesse em aderir à OTAN são exemplos de como Tbilisi tenta resistir às pressões de Moscou. No entanto, as tensões geopolíticas exacerbadas pela guerra na Ucrânia complicam ainda mais essa trajetória, destacando os riscos envolvidos na busca por autonomia estratégica.
Referências
Jackson, J. (2022). Russians Are Fleeing Putin’s Draft. But in Georgia, Few Are Happy About a Fresh Influx. Time. Disponível em: https://time.com/6218747/russians-fleeing-georgia-ukraine/.
Lomsadze, G. (2022). Georgia Laying Low Amid Ukraine Tension. Eurasianet. Disponível em: https://eurasianet.org/georgia-laying-low-amid-ukraine-tension.
León, L. P. (2024). Protestos na Geórgia repetem roteiro da crise entre Ucrânia e Rússia. Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br.
Lukyanov, F. (2024). Can the West Still Engineer a ‘Color Revolution’?. Russia in Global Affairs. Disponível em: https://eng.globalaffairs.ru.