O ano de 2021 foi marcado por eventos significativos para a população afegã, tal como a retiradas das tropas dos Estados Unidos (iniciada em maio de 2021 e finalizada no dia 11 de setembro de 2021) e concomitantemente, a retomada do poder pelo Talibã e o agravamento da crise humanitária. Tendo em vista o cenário contemporâneo, revisitar a obra de Åsne Seierstad, O Livreiro de Cabul, torna-se um exercício interessante no que se refere à observação dos efeitos das políticas do Talibã no cotidiano de uma família afegã. Ademais, best seller narra diversos eventos importantes na construção do Afeganistão, bem como as crises vivenciadas antes da tomada do Talibã, e depois da sua queda e a manutenção da vida cotidiana apesar das sequelas dos conflitos.
A Família Khan
O livreiro Sultan Khan, socialmente respeitado pela sua comunidade, patriarca da família Khan é o personagem que dá nome ao livro, os demais personagens da obra orbitam em torno desta figura. Sultan se apresenta no início da narrativa como um personagem carismático e apaixonado pelos livros e também pela cultura literária afegã. Sultan pode ser definido como um visionário com grandes sonhos a serem realizados com o fim do Regime do Talibã, em um ambiente de pouco letramento. Pode-se acompanhar o crescimento de Sultan Khan e como se desenvolveu seu fascínio pela literatura; o desejo em expandir seus negócios e o intricado jogo da pirataria de livros; a tristeza causada pela a perda de obras raras e o desejo em ajudar na reconstrução do acervo da biblioteca de Cabul, devastada com as intervenções externas e tomada do poder pelo Talibã.
Ao se observar as interações dos demais personagens da obra, vê-se que os mesmos têm suas ações dependentes das movimentações de Sultan Khan, que aos poucos apresenta comportamentos que podem ser difíceis de compreender sob a ótica ocidental. Um desses fatos é a relação com as duas esposas. Sharifa, a primeira esposa, que após a chegada da segunda esposa vive as frustrações causadas pelo sentimento de rejeição, vivendo na residência que serviu de refúgio enquanto o Talibã estava no poder, no Paquistão. E Sonya, a esposa adolescente, na qual foi entregue em matrimônio aos 16 anos. Presume-se, no decorrer da obra, que Sultan tenha um pouco mais de 50 anos, e ainda que os pais de Sonya questionem a diferença de idade, aspectos econômicos prevalecem no que se refere aos casamentos para a família da noiva. Enquanto juventude e aparência prevalecem para os interesses do noivo.
Esta prática, apesar do livro ter sido lançado há quase vinte anos atrás, ainda ocorre nos dias de hoje. Como aponta dados do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef, sigla em inglês para United Nations International Children’s Emergency Fund), a instabilidade política iniciada em 2020, aliada ao empobrecimento da população por causa de fatores ambientais e da Covid-19 podem ter contribuído o aumento dos casamentos em troca de dotes. A estimativa desta Organização é de que a faixa etária destas crianças seja entre 6 meses a 17 anos. Além da violência, privação de estudo e trabalho infantil, o casamento infantil também tem implicações como gravidez e morte materno-fetal. Sendo estes quesitos abordados ao longo da obra entre os diferentes personagens, todos compartilhando uma ou mais destas vivências.
Nesta primeira parte também temos a oportunidade de conhecer a residência da família Khan, composta por quatro cômodos divididos por todos os membros da família, quais sejam: a mãe, a irmã e um irmão; a esposa e a filha recém nascida; e três filhos homens. Não bastasse a estrutura pequena para a quantidade de moradores, a casa ainda apresenta sequelas da guerra civil, marcada com rachaduras, buracos causados por balas e granadas e janelas sem vidro recobertas por plástico.
Um fator interessante de ser notado, relacionado a fatores históricos e a influência na paisagem, é a localidade da residência da família Khan, no bairro Mikrorayon. A região é citada como um dos pontos mais agravados pela guerra civil, por se encontrar entre os dois pólos de conflito. A guerra não foi a única a provocar mudanças significativas no cenário, a casa dos Khan é uma das residências construídas entre a década de 1950 e 1960 pela União Soviética, seguindo o padrão arquitetônico utilizado nos conjuntos habitacionais soviéticos.
Sociedade, Mulher e Cultura
Bem como Seierstad coloca no início do livro, a família Khan não pode ser caracterizada como uma típica família do Afeganistão, um desses fatores que caracterizam os Khan é o fato de ser uma família alfabetizada e ter membros com conhecimento de inglês. Logo no prólogo a autora destaca que naquele período “[…] três quartos da população não sabem ler nem escrever” (p.12), em uma população composta de cerca de 22.600.774 pessoas no período em que foi publicado. Segundo dados mais recentes, o Banco Mundial apontou que em 2018, 43.2% da população era analfabeta, sendo a população composta por 37.171.922 afegãos.
Outra pauta recorrente durante a leitura é o papel desempenhado pelas mulheres de forma geral, tal a explicação sobre a introdução da burca durante o regime do rei Habibullah (1919). Consequentemente a burca popularizou-se como símbolo de status social por volta da década de 1950, até atingir todas as classes e grupos étnicos. Com a conquista do poder pelo Talibã, em 1996, foram determinadas como regras a proibição da circulação em espaços públicos de mulheres sem a burca. Contudo, não foi apenas as vestimentas que sofreram tais restrições, os sapatos de salto duro, sapatos brancos e o hábito de pintar as unhas dos pés foram banidos.
Em adendo as novas regras somam-se o manifesto que encorajava as mulheres a permanecerem em casa, e caso tenham que sair “[…] as mulheres devem ter uma dignidade especial. As mulheres não devem atrair a atenção de pessoas nocivas que lhes dirijam olhares maliciosos” (p.104). A polícia religiosa se responsabilizaria pela punição e correção daquela que infringir a lei. Ainda que a trama aborde a vida após o regime do Talibã, o uso da burca e outros hábitos se mantiveram, como a censura de imagens de pessoas em rótulos de produtos, por exemplo; castigos físicos àquelas mulheres que descumpriam estas normas; a morte de mulheres que cometeram adultério também ganha páginas na obra.
O dever da mulher também é expresso em diversas passagens do texto, podendo de forma crítica, ainda que as personagens femininas tenham pouca liberdade de expressão no cotidiano, no livro as mesmas ganham o espaço para relatar o seu sofrimento apesar do silenciamento. Como destaca Seierstad, “[…] o valor de uma noiva está no hímen, o valor de uma esposa está em quantos filhos homens ela põe no mundo” (p. 139), o que mantém de forma nítida a função social da mulher.
Nesta parte que se adentra as dores relatadas pelas personagens femininas, e pela citação de obras diversos poemas e cânticos que evocam a angústia de serem privados do poder de escolha. Tal como Leila, irmã mais nova de Sultan, que além da posição ocupada como mulher e solteira, nasceu sob o regime do Talibã e que desconhece a vida sem tais proibições, como a mesma é definida no livro, “[…] filha do medo” (SEIERSTAD, p.208).
Tais restrições à vida das personagens femininas poderiam causar choque cultural para os leitores ocidentais, e também causou à autora, que relatou no prólogo do livro sobre tais distinções de gênero ao discorrer sobre a sua recepção pela família afegã. Enquanto jornalista e mulher, Seierstad teve a oportunidade de transitar entre a linha que separa os homens das mulheres afegãos.
Marcos Históricos
Um aspecto interessante da obra é a trajetória traçada entre a vida dos personagens e fatos históricos. Em síntese, se inicia como a rota da pirataria literária entre Afeganistão e Paquistão, que remonta os caminhos feitos no século VI a.C e pela Rota da Seda, ao discorrer sobre o fluxo de pessoas, mercadorias e conflitos entre grupos étnicos, caminhos que Sultan percorreu como comerciante de livros.
O recurso histórico também é utilizado para guiar a passagem do tempo para os personagens, o que pode ser observado quando a mãe de Sultan lembra apenas do nascimento do filho caçula, por ser no mesmo dia do golpe que destituiu o Rei Zahir Shah. Para fins de melhor compreender os fatos apresentados no livro, abaixo pode ser visto a linha do tempo dos eventos mencionados no mesmo:
De forma breve, Seierstad relata eventos significativos como o Golpe de Estado que destituiu a monarquia na década 1970 e foi substituído por um governo socialista apoiado pela URSS, que iniciou a implantação de políticas modernizadoras. Com a escalada do descontentamento da população conservadora ocorre a intervenção da URSS e se inicia o conflito com os Mujahedin, grupo composto de afegãos que atuaram como resistência contra as forças soviéticas. Consequentemente, com a retirada da URSS do território afegão em 1992 ascende ao poder o Talibã, grupo composto em sua maioria etnia pashtun, que além de lutar pela libertação do país possuía uma visão conservadora do Islã (RUCHEL; VIEIRA, 2021).
Com o atentado de 11 de setembro e o atentado das Torres Gêmeas, aliada ao discurso libertar um Estado com um regime não democrático, com a presença de Osama Bin Laden e células da al-Qaeda no Afeganistão, os Estados Unidos justificaram a sua intervenção no território. Operações foram estabelecidas pelas Forças Armadas dos Estados Unidos visando desmantelar a al-Qaeda e o Talibã, uma destas foi a Operação Anaconda, de 2002, que é mencionada no livro de forma breve ao se relatar a presença de pequenos membros de ambas organizações ainda estarem refugiados nas áreas montanhosas. Estabeleceu-se um governo de transição com a queda do Talibã, presidido por Hamid Karzai, contudo, o conflito não cessou entre os grupos que exerciam influência em determinadas regiões (PEREIRA, 2011).
A história de Sultan se entrelaça a esta linha temporal, pela a criação da sua primeira livraria na década de 1970, vivenciando a repressão e até a prisão; a censura e o fechamento da livraria; a intervenção da URSS que também impôs censura a publicações; a queima dos livros e finalmente o exílio da família no Paquistão, em 1992. Por tais motivos, Sultan justifica suas atitudes duras com relação a família e a gestão dos seus negócios. Além dos fatores culturais, com a queda do Talibã a família Khan manteve hábitos e traços do período anterior, não houve grandes transformações sociais dentro do relato de Seierstad.
Tal leitura da obra contribui para acompanhar as transições de poder no Afeganistão sob uma ótica particular de uma família que inegavelmente possui privilégios sociais e status dentro da comunidade onde vive e de camadas menos privilegiadas. Ressaltando, principalmente nos períodos mais conturbados a repressão, possibilitando ao leitor ter uma visão doméstica de um conflito de dimensões internacionais. Bem como observar junto aos personagens como operaram os interesses das superpotências na Guerra Fria e o impacto na vida dos civis com a retirada das organizações de caráter humanitário.
A carga dramática da obra é expressiva e os personagens transitam entre um pouco de esperança pela possibilidade de retomar a vida com o fim do regime do Talibã; o medo de grandes mudanças nos hábitos estabelecidos durante o regime; e a desolação e apatia dos personagens mais jovens, que não possuem grandes perspectivas para as próprias vidas. Tal sentimento de desesperança transmitido pelos personagens da obra é majoritariamente causado pela manutenção de padrões de vida.
Dado o contexto atual, de incerteza pela retomada do poder pelo Talibã, após a leitura da obra de Seierstad, deixa espaço para indagações sobre como o personagem Sultan Khan reagiria ao retorno do Talibã, no qual o mesmo era bastante crítico, e com os outros acontecimentos que abalaram o Afeganistão em 2021, como a seca e a pandemia de Covid-19. Sendo o único personagem da obra a nutrir sonhos e ambições, como esta volta ao poder implicaria no desenvolvimento da expansão dos negócios.
Diferentemente dos personagens que cresceram durante o Talibã, imersos na desesperança de mudanças significativas, o retorno ao poder do Talibã poderia ser entendido como um processo não surpreendente em uma sociedade que vem experienciado instabilidade política por um longo período. Apesar do abrandamento do discurso do Talibã, retomaram imposições restritivas as mulheres em 2021 (JAIN; BAJAJ; NOORULHUDA, 2021), aliando-se a apatia dos personagens por um futuro melhor.
Sobre a Autora
Åsne Seierstad retrata nesta narrativa uma construção pautada a partir da ótica de alguém que experienciou a rotina de uma família afegã, com um olhar ocidental, no contexto da queda do regime do Talibã. Vale destacar que os membros da família que inspirou a obra entraram em um contencioso judicial com a autora devido ao retrato delineado, como resultado ao processo de violação da imagem pública e difamação. Jornalista experiente com coberturas internacionais, também cobriu jornalisticamente os conflitos no Kosovo e Iraque. Seierstad é de origem norueguesa e tem como formação pela Universidade de Oslo, nos cursos de História da Filosofia e Russo.
FICHA CATALOGRÁFICA
- Título: O livreiro de Cabul
- Autor: Åsne Seierstad
- Editora: Editora Record; 12° edição (2007)
- Idioma: Português
- Capa comum: 320 páginas
- ISBN: 978-85-01-07287-0
REFERÊNCIAS
JAIN, B.; BAJAJ, S.S.; NOORULHUDA, M. et al. Global health responsibilities in a Taliban-led Afghanistan. Nat. Med., v. 27,2021. Disponível em: < https://doi.org/10.1038/s41591-021-01547-8>. Acesso em 15 jan. 2022.
PEREIRA, Carlos Santos. Dez anos de guerra no Afeganistão. Nação e Defesa, 2011. Disponível em:<https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/7647/1/NeD130_CarlosSantosPereira.pdf >. Acesso em 13 jan. 2022.
RUCHEL, Gabriela; VIEIRA, Maria Gabriela de O. AFEGANISTÃO EM GUERRA: INVASÃO E INSURGÊNCIA. Dossiê de Conflitos Contemporâneos, 2021. Disponível em: <https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2021/07/Dossie-Obs.-Conf.-vol2-v2-2021-FINAL.pdf#page=7> . Acesso em 13 jan. 2022.