A procura mundial por fontes de energia renováveis e não poluentes acentuou-se nas últimas décadas, constituindo-se como um fator determinante para a geração de empregos – na construção da infraestrutura e sua posterior operacionalização –, garantia da soberania energética, redução na taxa de emissão do gás carbônico, e também como fonte de rendimentos pela venda de energia excedente à parceiros externos.
Neste sentido, a construção de hidrelétricas recebeu singular prioridade nas políticas públicas de Estados que possuem recursos hídricos capazes de gerar eletricidade por meio de tal modalidade. Contudo, a interdependência entre os países colidiu frente aos preceitos de segurança alimentar e energética, sobretudo ao analisarmos os impactos causados pela alteração das vias fluviais que perpassam, por vezes, porções expressivas dos continentes.
Atualmente o continente africano encontra-se em meio a um imbróglio de alta complexidade devido à construção da chamada “Grande Represa do Renascimento Etíope” (GRRE), iniciada em 2011. O intuito do governo de Addis Abeba ao promulgar tal operação focou-se em potencializar a distribuição de energia pelo país, assim como aumentar as receitas estatais por meio da venda de excedentes na produção elétrica total da represa.
A obra, orçada em cerca de 5 bilhões de dólares e prevista para ser a maior represa do continente africano, fora arrendada, sem concorrência, pela construtora italiana Salini Construtorri e está inclusa na crescente listagem de financiamentos chineses em obras de infraestrutura na África, contudo, o governo etíope manteve-se como principal investidor de uma operação que representava mais de 10% do seu Produto Interno Bruto à época (The Economist, 2011).
Em contrapartida, o governo egípcio manifestou suas ressalvas ao projeto etíope alegando que o mesmo infligiria severos constrangimentos ao fluxo de água do rio Nilo, colocando em risco o abastecimento doméstico, dos setores primários e secundários da economia, assim também como a própria geração de energia por meio de suas hidrelétricas (HASSAM, Haitham & MOHAMD, Eitemad; 2018).
O Sudão, aliado histórico do Egito, também demonstrou suas preocupações com a construção da infraestrutura mas não manteve uma posição firme como a do Cairo, uma vez que tal represa poderia auxiliar no regime de cheias do rio, tendo em vista que a capital Cartum é o ponto de interseção dos afluentes do Nilo.
À época do processo de licitação e início das obras, o governo etíope deixou clara a sua ênfase de que a construção da usina não impactaria o fornecimento de água para o Egito e mostrou-se favorável a compartilhar dados de operação e plantas da infraestrutura. Todavia, Cairo ainda demonstrava grandes preocupações com o empreendimento, sobretudo relativos ao período de tempo no qual a Etiópia esperava preencher o reservatório da represa, uma vez que quanto mais rápido se desenrolasse tal processo, maior seria a quantidade de água demandada (HASSAM, Haitham & MOHAMD, Eitemad; 2018).
Sul-Norte
Durante o período colonial britânico, e posteriormente em 1959, foram confeccionados tratados que promulgaram ao Egito o direito de livre acesso ao rio e poder de veto em tópicos sensíveis à tal oferta de recursos, acordos esses que não integravam a Etiópia. Em 1999, Addis Abeba rejeitou sujeitar-se à entendimentos considerados obsoletos e que viriam a constranger suas proposições, o que deu início à conversações entre os mais de seis países que faziam parte do sistema de afluentes e percursos do Nilo (SWAIN, Ashok; 1997).
O Acordo da Bacia do Nilo, criado em 1999, fora instituído a fim de cooptar as políticas nacionais dos países compreendidos pelo rio e buscar por medidas de boas práticas para a utilização sustentável dos recursos, assim como promover um engajamento maior entre as autoridades locais para a expansão e análise de projetos.
Após mais de uma década de discussões no interior da Organização, as posições contrastantes entre Egito e Etiópia não puderam ser perpassadas, resultando em 2010 na recusa egípcia em assinar o Acordo de Estrutura Cooperativa, documento que visava ampliar as diretrizes de uso do rio por todos os membros.
Tal movimento fora interpretado pelas autoridades egípcias como uma ameaça à soberania do país, uma vez que o rio percorre um trajeto Norte-Sul, ou seja, qualquer alteração ao longo do percurso acabaria por trazer graves danos ao abastecimento do Egito – último Estado perpassado pelo rio antes de seu deságue no Mediterrâneo – e restringindo sua liberdade de ação ao promover políticas que estejam ligadas direta ou indiretamente à utilização do Nilo.
A Primavera Árabe em Contraponto ao Crescimento Econômico Etíope
O ano de 2011, no qual iniciou-se a construção da represa etíope, fora marcado pela deflagração de uma grande onda de insatisfação popular que atingiu diversos Estados árabes do Norte da África e Oeste asiático. Neste contexto, o presidente egípcio Hosni Mubarak – que comandava o país há quase trinta anos – fora deposto em favor de um governo militar que ficaria a cargo da estabilização nacional e a convocação de novas eleições em um futuro próximo (HEMAID, Rania; 2017).
O governante sudanês, Omar Al-Bashir, estava ininterruptamente no poder desde 1989 e encontrava-se pressionado pela instabilidade política oriunda da Primavera Árabe e também pelo longo conflito na porção sul do país, que culminaria na independência do Sudão do Sul em julho de 2011. Apesar de permanecer no poder, o governo de Cartum estava exaurido nas esferas política, militar e econômica, prezando pela estabilização da situação interna do país (HEMAID, Rania; 2017).
Nos anos seguintes a situação pouco prosperou para ambos Egito e Sudão, que viram intensificar ainda mais os processos de instabilidade interna, estes que levariam ao golpe de Estado contra o presidente egípcio Mohamed Morsi em favor da cúpula militar e a posterior eleição de Abdel Sisi no ano de 2014, assim como a crescente deterioração política de Omar Al-Bashir que culminou na sua remoção em abril de 2019 (HEMAID, Rania; 2017).
Neste período, apesar de rotineiras manifestações públicas das lideranças do Cairo desfavoráveis ao empreendimento, a Etiópia pôde dar prosseguimento às operações de construção da represa, ao mesmo tempo em que vinha cultivando crescimentos exponenciais de seu Produto Interno Bruto e atraindo cada vez mais capital estrangeiro, tornando-se uma das economias mais pujantes da África.
A Reestruturação Egípcia e a Crise Energética
Comandante-em-Chefe das Forças Armadas do Egito e Ministro da Defesa até sua eleição à presidência em 2014, Abdel Al-Sisi buscou reestruturar as instituições egípcias, ampliar o gasto com obras públicas, prezar pela ordem interna do país contra grupos terroristas, instaurar medidas severas no ordenamento econômico, iniciar campanhas de supressão à grupos opositores e modernizar o aparato bélico do Exército (BARFI, Barak; 2018).
A principal meta do mandatário egípcio está em recolocar o país no seu papel histórico como uma potência regional e capaz de prover a assertividade de seus interesses em meio às políticas do mundo árabe. Apesar de crescentes dificuldades econômicas e acusações internacionais de desrespeito aos Direitos Humanos, o Egito observou um incremento substancial nas suas relações exteriores e têm sido capaz de co-liderar os esforços diplomáticos árabes em temas de relevância mundial, junto com a Arábia Saudita (PIAZZA, Bárbara ; 2018).
Contudo, um dos principais desafios do governo de Al-Sisi está na conjuntura energética do país, tendo em vista a incapacidade do Cairo em honrar seus compromissos à empresas estrangeiras que operam no Estado e também devido a insuficiência de recursos naturais próprios no intuito de prover o abastecimento eficaz da população, obrigando o Egito a depender de importações no intuito de garantir o fornecimento de energia e o acesso a itens básicos como alimentos e petróleo (PIAZZA, Bárbara ; 2018).
Geoestratégia e Geoeconomia
Egito e Etiópia compartilham laços econômicos crescentes, mas que ainda favorecem comercialmente aos egípcios nas trocas comerciais. A localização geográfica dos países reflete as diferentes concepções de política externa de cada nação e suas abordagens para a economia e a defesa da soberania energética e alimentar.
Os etíopes encontram-se em uma localidade de cadeias montanhosas, ao sul do Deserto do Saara, com vasta oferta de recursos hídricos fluviais mas sem acesso ao mar, fazendo fronteira com nações em situação de dependência energética – como Quênia, Sudão do Sul e Djibouti, por exemplo – e que estariam interessadas na importação dos excedentes energéticos produzidos pela usina (International Energy Agency, 2019).
Apesar de vultosos crescimentos econômicos no PIB etíope durante última década, a desigualdade de renda e os baixos índices de poder de compra da população ainda se colocam como graves empecilhos para a estabilização interna. Não obstante, o governo pretende utilizar-se da produção da hidrelétrica para ofertar energia a mais de 53% da população que ainda se encontra desprovida de tal direito (International Energy Agency, 2019).
Em contrapartida, o Egito situa-se em uma região árida e com um regime de chuvas deveras escasso, a dependência do país para com o rio Nilo é evidenciada ao constatarmos que este representa aproximadamente 90% da utilização dos recursos hídricos do país. Historicamente, a milenar civilização egípcia foi fundada ao longo das margens férteis do Nilo e tal observação ainda se mostra recorrente nos dias atuais (SWAIN, Ashok; 1997).
O Estado egípcio está compreendido no cerne do mundo árabe, exercendo grande ingerência na política do Oriente Médio e expandindo sua atuação como potência regional. Contudo, a fim de manter tal conjuntura de liderança, o Egito necessita garantir a coesão doméstica de acesso à recursos básicos – água, energia, alimentos, investimentos, dentre outros – para seus quase 100 milhões de habitantes e um fluxo hídrico constante em suas infraestruturas críticas, sobretudo a represa de Aswan e o Lago Nasser (BARFI, Barak; 2018).
Em suma, a plena operação da GRRE impulsionará as políticas pública e externa da Etiópia, ao prover um modelo de propulsão doméstica e regional quanto ao acesso à energia e incremento de receitas públicas, acrescendo o capital político etíope frente a seus vizinhos (International Energy Agency, 2019). O Egito, por sua vez, necessita manter-se como a grande potência do Nilo a fim de garantir não apenas a subsistência de bens básicos à sua população, mas também para estabilizar as receitas públicas, em grande parte geradas pela utilização massiva do rio e, consequentemente, custear a altividade de sua política externa (BARFI, Barak; 2018).
Entre Diplomatas e Militares
A temática da GRRE já está sendo tratada por analistas internacionais como uma das grandes variáveis no cenário geopolítico mundial em que, caso as controvérsias não sejam sanadas, poderá evoluir para um quadro de guerra aberta interestatal. Neste sentido, os esforços diplomáticos têm sido de suma importância a fim de reduzir as tensões, contudo, os consecutivos impasses demonstram que uma perspectiva de resolução ainda se mostra turva (International Crisis Group, 2019).
Desde o início da construção da represa, os mandantes egípcios deixaram claro que estariam dispostos a reagir militarmente contra a infraestrutura etíope caso os termos para a operacionalização da obra configurassem flagrante ameaça para o abastecimento e a economia do país. Não obstante, parlamentares do Egito por vezes demonstraram interesse em aprovar medidas de sabotagem contra a GRRE e até mesmo financiar grupos da Eritréia que guerreavam contra a Etiópia (International Crisis Group, 2019).
Apesar da parcial e progressiva contração nas retóricas ofensivas entre Cairo e Addis Abeba, as disputas diplomáticas mantiveram-se em um longo impasse, atenuando ainda mais a questão, uma vez que a represa estava prevista inicialmente para iniciar as operações em 2017 – porém a nova métrica fora alocada para 2022 devido a atrasos -. Neste contexto, o presidente Sisi recorreu ao líder estadunidense, Donald Trump, para que este realizasse o intermédio da disputa (BBC News; 2020).
Apesar de reservas iniciais etíopes quanto à intervenção dos Estados Unidos na problemática junto ao Egito, ambos os países aceitaram discutir os principais aspectos da questão em Washington. Contudo, a delegação etíope recentemente têm se mostrado avessa ao posicionamento estadunidense, referindo que a Casa Branca possui uma clara preferência para com o seu aliado egípcio (Al Jazeera, 2020).
O tempo para o completo preenchimento da represa é seguramente o grande fator para tamanho imbróglio, com a Etiópia defendendo um prazo de 6 anos para tal operação, enquanto que as lideranças egípcias defendem um marco que varia dos 12 aos 21 anos, algo que o Ministro da Água etíope, Seleshi Bekele, classificou como “…inaceitável em qualquer circunstância” (BBC News; 2020) e também afirmou que os delegados do Egito não possuem real interesse em solucionar a questão (BBC News; 2020).
Perspectiva de Resolução
Frente a uma conjuntura tão polarizada e sem um claro panorama de melhora no curto prazo, a ação coordenada dos principais atores internacionais no continente africano – Estados, organizações supranacionais, ONGs, dentre outros – será imprescindível para arrefecer as tensões e postular medidas de salvaguarda a ambas as nações.
A mediação dos Estados Unidos poderá ser complementada, ou repassada, ao mandatário sul africano, Cyril Ramaphosa, após o pedido de auxílio etíope decorrente dos recentes fracassos em Washington. Não obstante, China e Itália possuem grande interesse diplomático na continuidade do projeto da GRRE, enquanto que Estados Unidos e Rússia buscam fortalecer seus laços econômicos e geopolíticos com o Egito, tornando ainda mais complexo o impasse africano.
O Egito já se encontra em uma situação delicada de acesso à água, tendência esta que deve se intensificar nos próximos anos. O país faz parte de programas das Nações Unidas que visam minimizar o impacto da escassez e também de incentivo a modalidades produtivas que exijam menos recursos hídricos. Todavia, são medidas paliativas em comparação com os prognósticos negativos para o país nas décadas seguintes (HASSAM, Haitham & MOHAMD, Eitemad; 2018).
A plena operacionalização da GRRE e o transbordo da infraestrutura em um prazo inferior a dez anos, acabaria por exacerbar o déficit egípcio de abastecimento e complementaria os impactos negativos que reverberar-se-iam sob o Estado e a população (HASSAM, Haitham & MOHAMD, Eitemad; 2018). Tal cenário poderia instrumentalizar para que a opção de um conflito armado fosse executada pelo Egito, país que detém uma das maiores e mais bem equipadas forças militares regulares do continente (International Crisis Group, 2019).
A Etiópia, por sua vez, visualiza na GRRE a sua engrenagem-base para a propulsão do desenvolvimento nacional, sobretudo após a extinção das hostilidades com a Eritréia. O momento é extremamente oportuno para o país angariar poder político na região ao fornecer energia à Estados circundantes em situação calamitosa e que poderiam intensificar relações superavitárias junto ao governo de Addis Abeba (BBC News; 2020).
As Nações Unidas, sobretudo por meio de sua Organização para Alimentação e Agricultura, já dispõe de programas ativos em ambos os países para auxiliar na subsistência populacional e introdução de métricas voltadas ao desenvolvimento sustentável de longo prazo, todavia, tais concepções de planejamento ver-se-ão atreladas à capacidade de articulação entre os atores envolvidos na problemática, esta que infelizmente se coloca como plenamente contemporânea e cada vez mais irrefreável.
Referências Bibliográficas
ABDELHADY; Dalia, et al (2015) The Nile and the Grand Ethiopian Renaissance Dam: Is There a Meeting Point between Nationalism and Hydrosolidarity?. Journal of Contemporary Water Research & Education; edição nº 155, págs. 73-82.
Al Jazeera (2020) Ethiopia: US being ‘undiplomatic’ over Nile dam project. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2020/03/ethiopia-undiplomatic-nile-dam-project-200304060039736.html>. Acesso 27 mar 2020.
BARFI, Barak (2018) Egypt’s New Realism: Challenges Under Sisi. The Washington Institute; Policy Focus 156.
BBC News (2020) Egypt-Ethiopia row: The trouble over a giant Nile dam. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-50328647>. Acesso 15 mar 2020.
International Crisis Group (2019) Bridging the Gap in the Nile Waters Dispute. Relatório 271, seção: África.
International Energy Agency (2019) Ethiopia Energy Outlook. Disponível em: <https://www.iea.org/articles/ethiopia-energy-outlook>. Acesso: 28 mar 2020.
HASSAM, Haitham; MOHAMD, Eitemad (2018) Egyptian Water Security in view of the Risks Emerged by Construction of the Renaissance Dam. Middle East Journal of Agriculture; Vol. 07, 3ª edição, págs. 836-846
HEMAID, Rania (2017) Egyptian Foreign Policy (Special Reference after The 25th of January Revolution). Tese de doutorado Universidad Complutense de Madrid; Supervisor: Dr. Najib Abu-Warda.
PIAZZA, Bárbara (2018) The foreign policy of post-Mubarak Egypt and the strengthening of relations with Saudi Arabia: balancing between economic vulnerability and regional and regime security. The Journal of North African Studies; Vol. 24, 3ª edição, págs. 1-25.
SWAIN, Ashok (1997) Ethiopia, the Sudan, and Egypt: The Nile River Dispute. The Journal of Modern African Studies; Vol. 35, 4ª edição, págs. 675-694.
The Economist (2011) A dam nuisance. Disponível em: <https://www.economist.com/middle-east-and-africa/2011/04/20/a-dam-nuisance>. Acesso 21 mar 2020.