Uma questão pouco conhecida ou abordada na nossa sociedade é a Mutilação Genital Feminina. Segundo essa prática, a família da garota providencia a remoção do clitóris e até mesmo dos lábios vaginais de suas filhas, em uma faixa etária dos aos 15 anos. Esse procedimento é feito por curandeiros onde os cortes são realizados com navalhas, facas, ou cacos de vidro e depois costurados, sem nenhuma forma de higiene possível. A menina que rejeita passar por esse procedimento, é marginalizada socialmente e vista como uma mulher impura, como uma prostituta.
A prática é feita com o intuito de assegurar que a mulher se mantenha virgem até o casamento, onde o seu marido, cortará a costura que foi feita ainda na infância como forma de evidenciar que ela ainda é “pura”- também pode ser encarada como uma maneira de extermínio do prazer sexual feminino. Essa tradição, embora não seja ligada assumidamente á uma religião, é muito comum no norte africano, datada de mais de três mil anos e passada de geração em geração.
A mutilação genital feminina, não somente fere a mulher fisicamente, pois as sequelas e as dores dos ferimentos perpassam o corpo ferindo também a sua liberdade sexual, a sua liberdade de escolha, causando danos psicológicos irreparáveis para as que se sujeitam a prática e para aquelas que não se sujeitam também.
Todos os anos, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), por volta de três milhões de meninas são vítimas de mutilação genital. Waris Dirie, cujo significado é flor do deserto, foi mais uma vítima desse ato e buscou através de sua fama como modelo, evidenciar essa prática através do seu livro e posteriormente com o filme Flor do Deserto.
O filme sensibiliza, informa e entretém. A história de Waris é narrada desde a sua infância em uma família de criadores de gado do deserto africano. Um dia sua mãe resolve entregá-la para um homem muito velho, que a comprou para ser sua quarta esposa. Contrária a decisão da mãe, a menina foge pela madrugada e passa dias atravessando o deserto, chega a sofrer uma tentativa de estupro no seu trajeto para chegar em chegar em Mogadishu, capital da Somália, onde encontrará a sua avó e a hostil recepção de suas primas, para conseguir ajuda necessária para sair do pais.
Ao sair da Somália, ainda muito nova, passa a trabalhar como empregada na embaixada do país na Inglaterra, e assim permanece até a ilegalidade de sua permanência ser escancarada. Não desejando retornar, decide fugir da embaixada e sobreviver nas ruas. Até que conhece Marylin, uma vendedora que logo simpatiza — ou se compadece — da estranha moça que não fala inglês.
O contato e a convivência com Marylin logo viriam a evidenciar a diferença cultural entre a sociedade europeia e a sociedade africana. Após uma noite em uma casa noturna londrina, sua amiga inglesa leva para o apartamento compartilhado um homem completamente desconhecido e tem relações sexuais com ele. Waris fica extremamente transtornada, daí começam a surgir as evidencias e os choques culturais entre as duas, é o despertar da percepção do “diferente” por ela.
Com isso, Waris mostra para sua amiga o que foi feito com ela ainda na infância e embora tenha que ter convivido com a dor e o desconforto ao tomar banho ou urinar, ela acha aquilo algo extremamente normal, até que Marylin explica que isso não acontece em Londres, e na Europa e em muitos outros lugares.
Isso esbarra na questão do relativismo versus universalização dos direitos humanos. Onde uma vertente contraria a outra na medida que enxerga que os direitos humanos devem ser estendidos a todo o globo, ou seja, de uma forma universal pois todos são entendidos como humanos, independentemente de sua inserção local como indivíduo, enquanto outra afirma que o indivíduo é fruto do seu meio local, da sua cultura e de seu povo. Portanto uma tradição de três mil anos, passada de geração e geração, como a mutilação genital feminina, não deve ser vista como algo que precise ser exonerado, pois esta é encarada com os olhos estrangeiros e muitas vezes este é um olhar completamente eurocêntrico sobre este costume.
A própria Waris, no entanto, ao passar por uma percepção e conscientização europeia sobre o costume de seu povo, assume que aquela prática deve ser combatida e hoje luta como embaixadora da ONU para que isso venha a ser tratado com mais atenção pelo mundo. “O mundo sabe que essas mutilações são erradas, mas até agora não se fez muita coisa. Não entendo por que o mundo fica só olhando”, declarou Waris Dirie no Festival de Veneza. E advertiu: “Em algum lugar do mundo uma menina está sendo mutilada agora. Amanhã, o mesmo destino espera mais outra menina”.
Por isso, mais do que um filme que conta a história da menina pobre que atravessou o deserto e foi descoberta pelo famoso fotografo Terry Donaldson em uma loja de fast food–, Flor do Deserto é um relato sensível, rico e chocante de uma realidade desconfortável para nós como homens ou mulheres ocidentais.
Por fim, como amante da sétima arte, que Flor do Deserto deixa a desejar um pouco em algumas questões técnicas, tais como: de distribuição das cenas ao longo do filme; porém é recheado com uma fotografia incrível e uma história que deveria ser conhecida por todos, não somente estudantes de Relações Internacionais. Vale ressaltar que o filme de maneira alguma avança no debate sobre a relativização versus universalização dos Direitos Humanos, porém abre um leque para a reflexão. O costume local, por exemplo, deve passar por um aparato médico legal e ser encarado com uma questão de saúde pública, já que devido à falta de higiene e preparo dos curandeiros, além da dor física ser demasiada, este ato costuma causar infecções que quase sempre levam a morte de mulheres, e mesmo as que sobrevivem tem que conviver com a dor da costura e posteriormente a dor de ter retirado a mesma. É um filme que emociona, informa e envolve, eu indico.