Estamos vivendo em um mundo de constantes mudanças. A tecnologia como conhecemos hoje pode não existir num futuro próximo, e países que possuem histórico de potência, dominação e influência mundial podem estar fadados a se tornarem uma mera sombra do que já foram. Somado a isso, o mundo foi atingido por uma pandemia devastadora, que teve seu foco de contágio inicial na cidade de Wuhan, na China. Espalhando-se rapidamente, em pouco tempo prejudicou diversas economias, causando um índice muito grande de óbitos, superlotando o sistema de saúde dos países e expondo grandes contradições do sistema internacional em que vivemos.
Nesse sentido, o objetivo de cooperação entre países para a obtenção de vacinas e consequente neutralização da pandemia se tornou uma competição fervorosa. Teve início uma grande mobilização a fim de que os países pudessem vacinar o mais rápido possível sua população. Assim, utilizaram seus recursos para monopolizar a compra de milhões de vacinas e até mesmo de táticas de pirataria para a aquisição das vacinas. Por outro lado, alguns países, infelizmente, foram dominados pelo negacionismo científico, negligência e fanatismo, baseado em teorias da conspiração, retardando a recuperação sanitária e econômica de seu próprio país, causando mais mortes desnecessárias.
Felizmente, em algumas partes do mundo, após muitos testes, procedimentos e distribuição das vacinas, a economia tem voltado aos poucos ao que era no período pré-pandemia, e o número de mortes reduziu drasticamente, trazendo nova esperança para governos, organizações internacionais, empresas e cidadãos. A própria China conseguiu impedir de forma muito eficaz a propagação do vírus por meio de medidas super restritivas de lockdown, fazendo com que a maior parte das infecções e mortes por Covid-19 ficassem localizadas na província de Hubei, onde a cidade de Wuhan se encontra.
Como consequência, o país conseguiu ter uma rápida recuperação econômica, principalmente devido à forte demanda doméstica por produtos e serviços. Ademais, as autoridades chinesas aplicaram estímulos fiscais como a ampliação do seguro-desemprego, o investimento e a redução de impostos. Os Estados Unidos, por outro lado, sofreram muitas perdas com a pandemia de Covid-19, com a morte de mais de 500.000 pessoas, e com uma queda brusca na economia. Durante o governo Trump, as animosidades entre EUA e China se intensificaram a ponto de Trump se referir a Covid-19 como “vírus chinês” (Cui, Jepson e Schindler; 2020).
Isso só serviu para que a competição comercial, geoeconômica e geopolítica entre ambos os países fosse capaz de dividir opiniões entre debates e criasse, segundo alguns autores, uma espécie de nova Guerra Fria. Porém, o cenário mundial atual com Estados Unidos e China em confronto pela inserção de novos mercados, de crises diplomáticas e de mútua desconfiança vai além da pandemia. O conflito já tem sido analisado há bastante tempo e envolve não só a China e os Estados Unidos, mas também outros países, organizações internacionais, setores privados e a ordem internacional.
Crise financeira
Em novembro de 2011, os EUA anunciaram um pivô estratégico, diplomático e econômico para a Ásia, e, em 2018, a estratégia de segurança nacional dos EUA identificou a China (junto com Rússia, Irã e Coreia do Norte) como as principais ameaças à “influência, interesses, poder e valores” dos EUA. A competição entre grandes potências tornou-se o foco principal da segurança nacional dos Estados Unidos, e isso se reflete em uma estratégia para conter e diminuir a China em várias frentes, como:
– Guerra comercial;
– Restrições a empresas chinesas, especialmente em setores de alta tecnologia;
– Interferências dos EUA no Tibete, nos Mares Oriental e Meridional, em Xin Jiang, em Hong Kong e, cada vez mais, em Taiwan, com as demandas apoiadas pelos EUA de reconhecimento internacional;
– Tentativas de cimentar relações exclusivas com a Austrália e Nova Zelândia, com Japão e Coréia do Sul e com Índia, Indonésia e Vietnã;
– Movimentos na direção de uma nova Organização Mundial do Comércio para estabelecer regras para o comércio da cadeia de suprimentos que protejam os interesses dos oligopólios dos países desenvolvidos e exclua a China; e
– Tentativas de cercar e ameaçar militarmente a China (Dunford e Qi; 2020).
A crise financeira de 2008, com suas origens em Wall Street, gerou uma série de questionamentos acerca do capitalismo americano altamente financeirizado. A era de fluxos de capital irrestritos e mercados não regulamentados parecia uma coisa do passado, pois o centro de gravidade econômico e geopolítico do mundo parecia mover-se tanto para o leste quanto para o sul. A China saiu da crise relativamente ilesa e de suficiente peso econômico para desempenhar um papel central de arrastar a economia mundial para fora do lamaçal por meio de um enorme programa de estímulo decididamente não neoliberal. Embora falar sobre a hegemonia global da China fosse prematuro no mínimo, seu crescimento econômico sustentado tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza.
Crucialmente, a China empregou uma mistura pragmática e eclética de políticas que iam contra a política de desenvolvimento ortodoxa promulgada por bancos como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (Cui, Jepson e Schindler; 2020). Consequentemente, seus níveis socioeconômicos e sua importância para o comércio mundial chamaram a atenção entre os principais mercados mundiais, fazendo com que ela se tornasse uma gigante econômica global, dando início ao papel de hegemonia regional com o surgimento dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em 2010 (Amadi, 2020) e da Iniciativa da Nova Rota da Seda em 2013. Neste último caso, o governo de Xi Jinping planeja construir diversas rotas comerciais por terra e mar, implantando quilômetros de ferrovias e portos em diferentes regiões do mundo.
O que também tem degradado a relação sino-americana é a promoção, ainda que cautelosa, da internacionalização do Renminbi, a moeda chinesa. Sua atual falta de conversibilidade impossibilita o debate de uma moeda de reserva global. Em 2009, o então presidente do Banco Popular da China, Zhou Xiaochuan, entrou com um pedido de reforma do FMI para posicionar os Direitos Especiais de Saque (DES) como uma possível alternativa ao dólar.
Os DES são baseados em uma cesta de cinco moedas com diferentes proporções (Dólar estadunidense – 41,73%, Euro – 30.93%, Libra esterlina- 8,09%, Iene japonês – 8,33% e Renminbi chinês – 10,92%), e são emitidos pelo FMI para membros como uma forma de ativo de reserva em moeda estrangeira. O controle do FMI sobre os DES faz qualquer uso dele para minar a hegemonia do dólar altamente improvável, enquanto os EUA mantiverem seu veto no Fundo.
Os Estados Unidos já desfrutam de certas vantagens, desde quando o dólar é a maior moeda de reserva primária. Isso não é necessariamente aparente quando os tempos são bons, porque o gerenciamento da moeda de reserva mundial acarreta custos que podem fazer com que pareça um fardo. No entanto, proporciona aos Estados Unidos uma facilidade muito maior de gestão em tempos de crise, como na crise financeira de 2008, porque pode tomar emprestado grandes somas no exato momento em que outros países estão tentando conter a fuga de capitais. Neste sentido, os Estados Unidos conseguem ter o controle sobre a unidade de conta comum do mundo e, no caso da crise de 2008, o dólar se torna a principal arma remanescente no arsenal hegemônico americano (Cui, Jepson e Schindler; 2020).
Críticas ao liberalismo
A partir de tal crise e da ascensão da China, muitos céticos da ordem liberal e da globalização tem surgido de forma a debater se, apesar do avanço tecnológico, cultural, econômico e político que fez nossa sociedade se tornar o que é hoje, as organizações que regulam a ordem liberal como FMI, Banco Mundial e OMC têm cooperado para a equidade de desenvolvimento dos países ao redor do mundo. Muitos afirmam que são apenas organizações que agem de acordo com interesses particulares, criando uma espécie de hegemonia de países industrializados do Norte Global.
Os estudos mistos da globalização levaram alguns pesquisadores e pensadores do desenvolvimento a interrogar a globalização no contexto da desigualdade. Os estudos incluem o aprofundamento da crise de desenvolvimento decorrente da desigualdade, pobreza e aumento do número de Estados dedicados à conectividade social, ao real avanço tecnológico, ao espaço social homogeneizado e à identidade, e uma sociedade menos avançada tecnologicamente de outros não digitalizados e alienados.
Uma dimensão crítica da reação da globalização cada vez mais aponta a incapacidade da globalização de proporcionar um desenvolvimento inclusivo. A literatura sobre globalização se concentra em tendências complexas além do desaparecimento das fronteiras, financeirização, comunicação, homogeneização da cultura para contenção mais substantiva sobre a noção de “fragmigração”. Este último tópico enfatiza que os Estados não estão mais no controle. Essas estruturas complexas e sobrepostas desafiam as imagens contraditórias contemporâneas da ordem liberal, que cada vez mais minam a capacidade dos Estados de lidar com as mudanças em curso (Amadi, 2020).
Desde 2016, com a eleição de Trump, a luta para salvar o “mundo feito pela América” tem se tornado cada vez mais prejudicada por atividades “não liberais”. Ao longo do tempo, eventos recentes na Europa continental (Brexit) e a liderança dos EUA constantemente sugerem novas maneiras que aparecem inconsistentes com os ideais centrais do liberalismo (protecionismo, isolacionismo, ascensão do neoconservadorismo). À medida que as mudanças se tornam mais pronunciadas, as preocupações sobre o possível resultado estimulam a curiosidade e iniciativa de criação de novas abordagens provenientes de novos acadêmicos. Além disso, a veracidade da globalização parece duvidosa, pois as mudanças parecem contraditórias (Amadi; 2020).
Durante a pandemia, alguns Estados foram favorecidos com linhas de swap em dólares, enquanto outros receberam assistência muito mais limitada dos Estados Unidos. A escolha de restringir a assistência dessa forma causou inquietação entre aqueles que ficaram de fora, incluindo os principais países em desenvolvimento como Turquia, Indonésia, África do Sul e Nigéria.
Assim, de forma a manter a liquidez global por meio do fornecimento seletivo de acesso a linhas de swap em dólares, a liderança americana perdeu muito apoio, sendo corroída pela ausência de uma ideologia convincente ou princípio orientador além do interesse próprio. O dólar provavelmente permanecerá a moeda de reserva global por padrão, mas enquanto os países lutam com os impactos na saúde e consequências econômicas da Covid-19, muitos se voltam para a China em busca de liderança dada a eficácia de sua resposta ( Cui, Jepson, Schindler; 2020). Autoridades chinesas estão bem cientes de que podem preencher o vácuo de liderança contra os EUA. Não à toa, tanto o governo quanto empresas chinesas foram responsáveis pela doação de equipamentos médicos de proteção para países ao redor do mundo.
Dessa forma, países de baixa e média renda são impactados positivamente pelo que tem sido chamado de “geopolítica da generosidade”, em contraste com os Estados Unidos, que forneceram aproximadamente US$100 milhões para países em desenvolvimento “para apoiar a prevenção, detecção e controle de vírus”. Porém essa mesma ajuda não poderia ser usada para comprar equipamento de proteção individual (por exemplo, máscaras para profissionais de saúde que estão na linha de frente) a fim de “garantir que haja EPI suficiente para os EUA”.
Ao mesmo tempo, em uma reviravolta surpreendente na história, os EUA foram acusados por um oficial alemão de “pirataria moderna” após interceptar um carregamento de respiradores N95 com destino a Berlim e direcioná-los para os EUA. Isso mostra que países ao redor do mundo, especialmente os países em desenvolvimento, voltar-se-ão muito mais à China como principal parceiro para o desenvolvimento ((Cui, Jepson e Schindler; 2020).
A partir dessa perspectiva, podemos enxergar qual o grande debate entre a análise tanto do sistema liberal internacional quanto das alternativas de desenvolvimento lideradas pela ascensão da China no mundo. Baseado no legado da revolução ocorrida em 1949, a China apresenta uma economia de mercado socialista com características próprias, tendo como principal objetivo o “grande rejuvenescimento da nação chinesa”.
Estão envolvidos o direito ao desenvolvimento e o direito de escolher seu próprio caminho de desenvolvimento. A nível internacional, o seu objetivo é a criação de um mundo policêntrico de Estados soberanos que trabalhem em conjunto, respeitando a escolha da ordem econômica e política nacional de cada país (Dunford e Qi; 2020). A assistência chinesa ao desenvolvimento incorpora estratégias de planejamento espacial que são um legado do período pós-reforma iniciado no governo de Deng Xiaping, quando o adormecido interior da China foi ativado por meio de sua integração com cidades entrepostas ao longo de sua costa sudeste.
Os planos tendem a enfatizar a importância da intercidades, conectividade regional e até transnacional por meio de corredores expansivos. A realização desses planos ambiciosos requer investimentos significativos em infraestrutura, como redes regionais de energia, ferrovias, rodovias e portos. Planejadores chineses consideram esta infraestrutura pronta para uso uma pré-condição necessária para crescimento, e os países são incentivados a financiar a construção por meio de empréstimos.
A maioria dos empréstimos para projetos de infraestrutura de grande escala são emitidos pelo Banco de Desenvolvimento da China e pelo Banco de Exportação-Importação da China (Exim Bank of China), e nenhuma instituição demonstrou interesse em reformar as políticas econômicas domésticas ou as estruturas institucionais dos mutuários. Embora as condições específicas do projeto sejam comuns (a insistência de que as empresas chinesas são as contratantes principais, por exemplo), o pragmatismo e a flexibilidade permanecem como os princípios orientadores da política de desenvolvimento no exterior (Cui, Jepson e Schindler; 2020).
Modelo de desenvolvimento da China
Como nas eras do colonialismo e do imperialismo, os EUA e a União Europeia consideram que outros países deveriam adotar os modelos políticos e econômicos ocidentais e devem desempenhar papéis subordinados em uma ordem liberal global liderada pelo Ocidente. A intenção e expectativa das elites ocidentais era que o Partido Comunista Chinês seria varrido do poder, uma ordem social “liberal” ocidental plutocrática posta em prática, ativos do Estado chinês privatizados e a China integrada em uma forma subordinada em um sistema global dominado pelo Ocidente.
Embora a China não busque a liderança global, sua ascensão entra em conflito com os objetivos e valores universais ocidentais, a determinação de derrotar o socialismo e os interesses na preservação da hegemonia ocidental (o que incluiria uma abertura precoce, abrangente e incondicional dos mercados chineses ao capital ocidental). Essas preocupações são ampliadas pelos efeitos de demonstração do sucesso de um modelo social não ocidental em impulsionar o progresso econômico e social (Dunford e Qi; 2020).
Dessa forma, essas potências do Ocidente, especialmente os Estados Unidos, promovem a ideia da “diplomacia da armadilha da dívida” chinesa. A acusação é que a China está agindo como uma espécie de agiota internacional, ao emprestar deliberadamente a países insustentáveis montantes. Neste sentido, ela usa a dívida como alavanca para forçar os governos tomadores de empréstimos a aceitar a dominação chinesa ou renunciar à infraestrutura estratégica em troca do alívio da dívida.
Como a China expandiu sua carteira de empréstimos, alguns estados de fato lutaram para pagar seus empréstimos. Porém, as respostas da China destacam sua preferência por negociações bilaterais e soluções pragmáticas sobre o envolvimento multilateral. Normalmente, os governos que buscam o alívio da dívida devem lidar com o Clube de Paris, um agrupamento dos principais Estados mutuários que agem em conjunto para estabelecer uma posição comum de negociação.
Conseguir um acordo do Clube de Paris, por sua vez, depende de um país concordar com um programa do FMI, que normalmente inclui reformas de políticas destinadas a garantir o reembolso da dívida pendente. A China não é membro do Clube de Paris. Em vez disso, ela conduz suas próprias conversas separadas com governos sobre endividamento, e novamente, parece se aproximar dessas negociações caso a caso.
Algumas pequenas dívidas foram totalmente amortizadas, outros empréstimos foram reestruturados e expandidos ou amortizados por um período mais longo para aliviar o fardo imediato. Finalmente, em alguns casos, o custo dos projetos de infraestrutura planejados foi revisado para baixo (Cui, Jepson e Schindler; 2020). Em vez de um modelo com aplicabilidade universal, o desenvolvimento da China a assistência é orientada para objetivos. Em primeiro lugar, a assistência chinesa ao desenvolvimento parece projetada para reorientar a economia global de forma a fortalecer as redes de produção centradas na China.
A Iniciativa da Nova Rota da Seda pode consolidar redes sinocêntricas de comércio, investimento e infraestrutura no Leste Asiático, Sudeste Asiático, Eurásia e além, em uma dimensão geográfica muito mais ampla e de uma maneira mais complexa, diversa e multiescalar. Isso envolve a separação existente das cadeias de valor impulsionadas por empresas líderes na China e terceirizando certos segmentos. Para este fim, a China constrói infraestrutura rígida primeiro (por exemplo, portos, ferrovias, redes de energia), as empresas localizam instalações de produção na área industrial próxima aos parques e o funcionalismo, na figura líder do Partido Comunista Chinês através do seu braço responsável pelo setor de infraestrutura, posteriormente exerce o soft power, se necessário.
Isto é uma diferença marcante das instituições do Consenso de Washington que, ao longo das décadas de 1980 e 1990, primeiro exerceram soft power para abrir mercados e, em seguida, permitiu que as forças de mercado determinassem se a infraestrutura rígida foi construída. A abordagem da China tem se mostrado atraente para muitos países em desenvolvimento, o que é evidente pelo número de países que concordaram em participar da Iniciativa (Cui, Jepson e Schindler; 2020).
Segundo o livro branco de ajuda ao exterior, as principais formas de ajuda externa chinesa são: projetos com foco em infraestrutura e agricultura; bens e materiais; cooperação técnica e cooperação para o desenvolvimento de recursos humanos; equipes médicas e voluntários; ajuda humanitária de emergência; e alívio da dívida (CARTER, 2017). No próprio documento está a diretriz que norteia a política externa: “Quando oferece ajuda ao exterior, a China adere aos princípios de não impor nenhuma condição política, não interferir nos assuntos internos dos países recipientes e respeitar completamente seus direitos de escolher independentemente seus próprios caminhos e modelos de desenvolvimento”.
A pandemia do Coronavírus
Em relação à pandemia, uma vez que a presença do vírus foi relatada em sociedades ocidentais liberais, a resposta inicial em muitos casos foi permitir que a pandemia seguisse seu curso. Em alguns países, como o Reino Unido, esta postura foi associada a uma busca pela imunidade do rebanho, sacrificando pessoas em risco, das quais muitas já teriam se aposentado e eram consideradas por algumas pessoas de pouco valor econômico.
No entanto, por medo, muitas pessoas optaram por se proteger. À medida que a pandemia se espalhava e os modelos sugeriam uma mortalidade inaceitavelmente alta, inclusive entre menores de 60 anos, foram adotadas medidas para contê-la. Nessa fase, esses países já haviam perdido a oportunidade de se preparar, enquanto as etapas subsequentes revelaram uma governança significativa de déficits de competência e capacidade (Dunford e Qi; 2020).
Enquanto o mundo ocidental lutava com esses problemas e mais outros, como a corrida egoísta por recursos, a própria China se esforçou para compartilhar informações e experiências e fornecer suprimentos e equipes médicas aos países gravemente atingidos. No final de maio de 2020, forneceu assistência para cerca de 150 países e quatro organizações internacionais e enviou 29 equipes de especialistas médicos especializados em 27 países. A ênfase da China na ajuda humanitária deriva do fato de que sua política externa está ancorada na não interferência e que este tipo de bem público deve se revelar relativamente incontroverso (Dunford e Qi; 2020).
A Covid-19 chegou a um mundo em que o crescimento ocidental e o investimento produtivo real estavam estagnados. A governança neoliberal restringiu os recursos e os instrumentos à disposição dos governos para grande vantagem das elites corporativas. Reduziram as trajetórias de carreira da classe média para os jovens e garantiram oportunidades de emprego para a ex-classe trabalhadora, ajudando a criar uma vasto precarização.
A globalização viu aumentos extraordinários na desigualdade e uma transferência de autoridade econômica de estados-nação a corporações globais e organizações supranacionais como a UE, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Em uma escala internacional, as tentativas de estabelecer uma ordem liberal ocidental em um mundo pós-Guerra Fria viram uma sucessão de conflitos, guerras destrutivas e em grande escala movimentos de refugiados, com outros movimentos populacionais impulsionados pela falta de desenvolvimento (Dunford e Qi; 2020).
Considerações finais
A pandemia da Covid-19 surge de forma a moldar a rivalidade entre a Ordem Liberal Internacional liderada pelos Estados Unidos e a China. Esta última em particular, tem demonstrado uma política externa muito mais flexível e moderna com relação aos seus conceitos de desenvolvimento econômico, de pragmatismo e de relações internacionais. O Império do Meio tem percorrido um longo caminho até chegar onde se encontra com um parque industrial/tecnológico super avançado, índice muito menor de pobreza, sendo o principal destino comercial da grande maioria dos países do mundo e com um alcance gigantesco em questões da promoção da cultura, língua e filosofia.
Não só a China, mas alguns países que antes eram vistos como párias pelo mundo devido às sanções econômicas dos Estados Unidos como Rússia e Cuba, sendo este último responsável por “exportar” médicos seus para o auxílio de países que sofreram muito com o nível de óbitos pela pandemia como foi o caso da Itália, têm apoiado essa nova abordagem de um sistema internacional alternativo composto por Estados soberanos com diferentes modelos de desenvolvimento e diferentes valores civilizacionais. Os Estados liberais não foram capazes de responder à altura da China, tendo sido responsáveis por colocar em risco a saúde da própria população, como foi o caso da Suécia, além de revelar fraquezas decorrentes das prioridades atribuídas à propriedade privada e ao individualismo e à erosão da soberania nacional (Dunford e Qi; 2020).
Enquanto isso, a China demonstrou sinais de recuperação semelhantes ao mundo pré-pandemia e saiu dessa crise como um novo líder para muitos países, não só pela rápida resposta que teve internamente como também pela ajuda oferecida por meio de seu sistema bancário controlado pelo estado e as empresas estatais. Somado a isso temos a questão da Iniciativa da Rota da Seda que com certeza traz benefícios para organizações. Além disso, temos como exemplo de parceria a União Europeia, que pode aproveitar os ganhos econômicos das trocas pelas ferrovias e rodovias e não demonstra nenhum tipo de desavença ou intenção de desistir das cadeias de valor que a China trará para o continente. Resta saber se a guerra comercial, a manutenção econômica da política externa chinesa e o confronto entre a Ordem Liberal Internacional e a ascensão da Ásia liderada pela China ainda poderão durar algum tempo e se teremos, pela primeira vez na história, uma transferência pacífica de poder.
Referências bibliográficas
AL-HASCHIMI, Alexander; APOSTOLOU, Apostolos; RICCI, Martino. China’s path to normalisation in the aftermath of the COVID-19 pandemic. 2020.
AMADI, Luke. Globalization and the changing liberal international order: a review of the literature. Elsevier: Research In Globalization, jul. 2020.
CARTER, Becky. A literature review on China’s aid. The Institute Of Development Studies, Brighton, set. 2017.
CUI, Wenxing; JEPSON, Nicholas; SCHINDLER, Seth. Covid-19, China and the future of global development. Elsevier: Research In Globalization, ago. 2020.
DUNFORD, Michael; QI, Bing. Global reset: covid-19, systemic rivalry, and the global order. Elsevier: Research In Globalization, ago. 2020.