Para compreender a finalização do mandato da África do Sul na Namíbia se faz necessário observar seus antecedentes. O processo de independência da Namíbia, assim como de muitos Estados africanos, se desdobra no cenário do final da Segunda Guerra e se estende até a década de 1990. Este marco histórico não se limitou a atuação sul-africana, como também acompanhou mudanças significativas nas Instituições Internacionais e no cenário internacional.
O território que compreende o sudoeste africano, esteve entre as possessões ultramarinas do Reino da Alemanha, institucionalizada durante a Conferência de Berlim (1884-1885), e de acordos bilaterais entre as nações colonizadoras e com o estabelecimento do princípio de ocupação efetiva (DÖPCKE, 1999). No entanto, com o final da Primeira Guerra Mundial, a jurisdição do território que compreende a Namíbia foi concedida pela Liga das Nações para a administração britânica da África do Sul. Ainda que não fora estabelecido uma ocupação efetiva de imediato, assentamentos começaram a ser estabelecidos do território namibiano (SOLÉ; 1990).
Com o final da Segunda Guerra e a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), os princípios de não ingerência e autodeterminação dos povos adquiriram maior ênfase nos discursos no âmbito internacional (MELBER; SAUNDERS, 2007). As descolonizações entraram na pauta no sistema ONU e levantou embates entre as perspectivas colonialistas e anticoloniais dentro desta organização.
Como efeito, é criado o Conselho de Tutela, com o intuito de responsabilizar-se pela transição dos Estados em processo de descolonização, ao mesmo tempo que legitimava a manutenção da presença colonial nos territórios em processo de descolonização. Especificamente, cabia aos detentores da tutela o monitoramento e reporte as Nações Unidas no que compete o desenvolvimento progressivo das suas instituições políticas e econômicas, para então lograr a sua independência (SAUNDERS, 2007).
O contencioso entre África do Sul e as Nações Unidas se inicia com constituição do Conselho de Tutela, a ONU solicitou que a África do Sul cedesse a jurisdição do território da Namíbia par ser tutelada pela Instituição, o qual recusou (SAUNDERS, 2007). A anexação territorial se deu junto a recusa sul africana em emitir os relatórios informativos ao Conselho (PINI, 2014).
Movimento de independência
Em uma observação do cenário africano neste período é marcado pelo fortalecimento dos discursos pan-africanos e movimentos de independência, mais especificamente entre os anos de 1945 a 1960. Tais discursos foram inspirados inicialmente pela Declaração de Independência dos Estados Unidos, e por pensadores descendentes da diáspora africana que advogavam pela independência e autodeterminação política e econômica dos países africanos.
Em paralelo, o crescimento econômico causado pela exportação de bens primários como algodão, cacau e café colaborou para a organização dos movimentos de libertação. Torna-se relevante observar que sete não foi um movimento pacífico. Como evidencia Sylvester e Anthony (2014), em colônias de povoamento, os movimentos de independência acompanhou uma escalada maior da violência e o questionamento sobre a manutenção do domínio colonial através das lideranças governantes que ainda estavam atreladas as metrópoles colonizadoras.
No caso da Namíbia, o fenômeno citado acima foi protagonizado pela Organização do Povo do Sudoeste Africano (SWAPO, sigla em inglês para South West Africa People’s Organization), movimento de libertação da Namíbia (TOKATLIAN, 1984). Com o recrudescimento das políticas sul africanas no território, somada a aplicação das políticas do apartheid também na Namíbia, a SWAPO, na década de 1960 estabeleceu uma divisão armada para combater as forças da África do Sul (DE ANDRADE, 1994). Além disso, a ONU começou a tomar medidas para que o domínio da África do Sul sobre a Namíbia chegasse ao fim.
Nações Unidas e o caso da Namíbia
Foi em 1966 que a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) estabeleceu que o território não era mais de responsabilidade de Pretória, mas, sim, da própria ONU o que acabou levando a tomada de uma decisão parecida pelo Conselho de Segurança da organização demandando que a África do Sul “imediatamente retirasse sua administração” (SAUNDERS, 2007, p. 738). Cabe-se dizer, também, que a Corte de Justiça Internacional, em 1971, decretou a presença sul-africana no país como ilegal e na mesma década a AGNU declarou a SWAPO como “único e legítimo representante do poco namibiano […]” (PINI, 2014, p. 29).
No entanto, tudo isso ficou apenas na retórica por um longo período. Uma das explicações para isso era que a África do Sul funcionava na sua região como um bastião do bloco capitalista dentro do contexto da Guerra Fria. A África do Sul disputava contra ressurgências e movimentos de cunho marxistas em Moçambique e Angola, o que interessava às potências ocidentais. Isso fazia com que o Conselho de Segurança não chegasse em um acordo de impor sanções econômicas à África do Sul (SAUNDERS, 2007). Além do mais, a SWAPO, apesar de possuir cunho marxista, não era considerada marxista o suficiente pela União Soviética e, por algumas vezes, não hesitou em pedir apoio ao próprio Ocidente e à UNITA (movimento pró-capitalista em Angola) para realizar seus objetivos (PINI, 2014).
Para tentar resolver a situação, as principais potências ocidentais criaram, em 1977, o Wester Contact Group (WCG) que negociava tanto com Pretória quanto com SWAPO. “Esse plano foi incorporado então na Resolução 435 do Conselho de Segurança de setembro de 1978, o qual provinha um calendário para uma transição para independência […]” (SAUNDERS, 2007, p. 739). Para isso seriam realizadas eleições sob a supervisão do Grupo de Assistência Transicional da ONU (UNTAG, em inglês) que “ajudaria a realizar as eleições e prover segurança enquanto elas ocorriam” (SAUNDERS, 2007, p. 739). Porém, por mudanças da interpretação do texto, o governo de Pretória não aceitou as eleições o que levou a novas negociações até 1985 enquanto haviam guerras e conflitos entre a SWAPO e o Estado sul-africano.
Outro fator que levou o protelamento das negociações foram os pedidos dos EUA e da África do Sul, desde 1981, da retirada das tropas cubanas de Angola (elas cooperavam com as forças do MPLA contra a UNITA em território angolano, colaboravam com a SWAPO, dobraram de tamanho, saindo de 25 mil para 50 mil, entre 1983 e 1988) como condição para a independência da Namíbia. Um acordo entre essas partes só aconteceu em 1988 depois de várias derrotas de Pretória em campo e com a atenuação das rivalidades entre as duas superpotências. Entre 1981 e 1988, o WCG “permaneceria inerte […]” (PINI, 2014, p. 88).
No ano de 1989, o Conselho de Segurança emitiu e adotou, por unanimidade, a Resolução 629 que determinou o cumprimento da Resolução 435 de 1978 após a resolução de um cessar-fogo entre a SWAPO e a África do Sul. A independência da Namíbia levou tanto tempo, quando comparada a de outros países africanos, “devido à ideologização da questão e à sua inserção nas disputas entre os interesses das superpotências por zonas de influência […]” (PINI, 2014, p. 92).
Assim, com o auxílio da UNTAG, o processo de transição levou 11 meses para ser concluído. Durante esse período, “foi garantida anistia a criminosos político, a legislação racista foi revogada e a África do Sul se retirou do território namibiano, 40 mil refugiados, auxiliados pelo ACNUR, voltam ao país e participam das eleições da assembleia constituinte de 1989 […]” (PINI, 2014, p. 94). O país adotou sua Constituição em 1990 e em março do mesmo ano, ele declararia sua própria independência com Sam Nujoma (da SWAPO), como presidente eleito.
Bibliografia
ANDRADE, Virgílio Moretzsohn de. ÁFRICA COM ÊNFASE NOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA E NIGÉRIA, NAMÍBIA E ÁFRICA DO SUL. Revista da Escola Superior de Guerra, n. 29, p. 9-32, 1994.
DÖPCKE, Wolfgang. A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra. Revista brasileira de política internacional, v. 42, p. 77-109, 1999.
MELBER, Henning; SAUNDERS, Christopher. Conflict mediation in decolonisation: Namibia’s transition to independence. Africa Spectrum, [S. l.], p. 73–94, 2007.
PINI, André Mendes. A descolonização da Namíbia: as negociações. 2014. vi, 100 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) — Universidade de Brasília, Brasília, 2014. Disponível em :<https://repositorio.unb.br/handle/10482/15930>. Acesso em 10 set. 2021.
SAUNDERS, Christopher. The Role of the United Nations in the Independence of Namibia. History Compass, [S. l.], v. 5, n. 3, p. 737–744, 2007.
SYLVESTER, Ogba Adejoh; ANTHONY, Okpanachi Idoko. Decolonization in Africa and Pan-Africanism. COMU Institutional Repository. 2014. Disponível em: < http://acikerisim.lib.comu.edu.tr:8080/xmlui/handle/COMU/770 >. Acesso em 15 set. 2021.
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SOLÉ, Antoni Pigrau I. EL PROCESO DE LIBRE DETERMINACION DE NAMIBIA. Revista Española de Derecho Internacional, v. 42, no. 1, p. 43-79, 1990. Disponível: <http://www.jstor.org/stable/44297342>. Acesso em 18 set. 2021.
TOKATLIAN, Juan Gabriel. La SWAPO en Namibia. Estudios de Asia y Africa, [S. l.], p. 491–507, 1984.