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Síria Síria

Quem se Interessa em Reconstruir a Síria?

© Vyacheslav Argenberg / http://www.vascoplanet.com/

Após mais de uma década de guerra civil e a recente queda do regime de Bashar al-Assad, a Síria se tornou o epicentro de uma nova disputa geopolítica. Desta vez, o confronto não é travado por meio de bombardeios e batalhas, mas pela influência sobre a reconstrução do país. O que antes era um Estado devastado e isolado, agora desperta o interesse de potências, incluindo os Estados Unidos, a Turquia e Israel. Mas por que, agora, esses países querem moldar o futuro sírio? E quais são os verdadeiros interesses por trás dessa corrida para influenciar Damasco?

Com o colapso do regime Assad, a Síria entrou em uma fase de transição marcada pela liderança do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), um grupo que emergiu de facções islamistas e que, sob a liderança de Ahmed al-Shara (Abu Mohammad al-Julani), agora se apresenta como um governo interino. Apesar do discurso de moderação e abertura, há desconfiança sobre a real intenção desse novo governo e sobre sua capacidade de incluir diferentes grupos na reconstrução do país​.

É nesse contexto que Estados Unidos, Turquia e Israel intensificaram suas movimentações para influenciar os rumos da reconstrução síria. Enquanto Washington defende um modelo econômico modernizador, Ancara quer consolidar sua presença militar e econômica, e Tel Aviv foca exclusivamente na contenção do Irã e na proteção de suas fronteiras.

a man walking down a dirt road between two buildings
Photo by Mahmoud Sulaiman on Unsplash

EUA e sua vontade pretensiosa

Para os Estados Unidos, a reconstrução da Síria não é apenas uma questão humanitária ou de estabilização política – trata-se de um campo de batalha estratégico contra a influência de China, Rússia e Irã. O governo norte-americano acredita que, sem sua presença, a Síria pode se tornar um satélite econômico e militar de Moscou e Teerã, comprometendo os interesses ocidentais no Oriente Médio​.

A estratégia dos EUA se baseia em condicionar qualquer ajuda econômica a mudanças estruturais, incluindo:

  • Expulsão de milícias iranianas e restrição da influência russa;
  • Inclusão de grupos políticos opositores para evitar um governo dominado pelo HTS;
  • Privatização e abertura econômica para investimentos ocidentais, reduzindo o espaço para a presença chinesa​.

Segundo um estudo sobre os modelos econômicos pós-guerra na Síria, Washington quer transformar o país em um hub comercial, inspirado em modelos como Singapura e Arábia Saudita, apostando na modernização e integração ao mercado internacional. Contudo, há desafios consideráveis. Parte da população síria vê com ceticismo a presença ocidental, e qualquer tentativa de impor reformas econômicas pode ser vista como uma nova forma de dominação estrangeira.

Expansão Militar Turca e Bloqueio aos Curdos

Se os EUA enxergam a reconstrução síria como uma questão geopolítica, a Turquia a vê como uma questão existencial. Desde o início do conflito, o governo de Recep Tayyip Erdoğan tem um objetivo claro: impedir a criação de um Estado curdo autônomo na Síria.

A Turquia tem lançado sucessivas operações militares no norte sírio para evitar que as Forças Democráticas Sírias (SDF), dominadas por curdos, ganhem força. Com o colapso do regime Assad, Ancara agora quer consolidar seu domínio sobre regiões estratégicas, financiando grupos aliados e estabelecendo zonas de influência que garantam sua presença a longo prazo​.

Além da questão militar, há também interesses econômicos profundos. A Turquia pretende:

  • Expandir sua influência comercial, transformando cidades sírias em mercados de exportação para produtos turcos;
  • Criar zonas de livre comércio que favoreçam empresas turcas;
  • Dominar setores como construção civil e energia, garantindo contratos lucrativos na reconstrução​.

A grande questão é: até onde a Turquia está disposta a ir? Muitos especialistas alertam que sua presença no norte da Síria pode dificultar ainda mais a unificação do país e criar novas divisões internas, alimentando conflitos de longo prazo.

Contenção do Irã e Controle do Monte Hermon por Israel

Enquanto EUA e Turquia buscam moldar a economia e a política síria, Israel foca exclusivamente na segurança. Para Tel Aviv, a reconstrução da Síria só importa na medida em que pode impactar sua luta contra o Irã e o Hezbollah.

Recentemente, tropas israelenses tomaram posições estratégicas na região do Monte Hermon, alegando que sua presença ali é vital para impedir que milícias iranianas estabeleçam bases no sul da Síria​. A ocupação gerou críticas internacionais, pois a área está dentro de uma zona desmilitarizada monitorada pela ONU, e países como França e Rússia pediram a retirada das tropas israelenses. No entanto, o ministro da Defesa de Israel, Israel Katz, afirmou que as forças israelenses permanecerão indefinidamente​.

O grande temor de Tel Aviv é que a nova Síria se torne um ponto de apoio para o Irã lançar ataques, utilizando grupos aliados como o Hezbollah. Por isso, Israel tem intensificado ataques aéreos contra alvos iranianos na Síria, garantindo que qualquer tentativa de reconstrução não favoreça seus inimigos regionais​.

Existe um caminho para a reconstrução da Síria?

A reconstrução da Síria é, em sua essência, uma disputa pelo futuro do Oriente Médio. Se no passado o país foi o palco de batalhas entre facções locais e potências estrangeiras, agora a guerra é pela influência política, econômica e militar sobre um Estado em transição. Cada ator envolvido tem seus próprios interesses estratégicos, e nenhum deles parece comprometido com um projeto puramente humanitário ou de estabilização a longo prazo.

Os Estados Unidos veem a reconstrução síria como uma oportunidade para moldar o país de acordo com seus próprios interesses, garantindo que a Síria não se torne um novo satélite russo ou um posto avançado da influência chinesa. Washington sabe que, sem uma estratégia eficaz, Pequim pode oferecer financiamento e infraestrutura em troca de concessões estratégicas, seguindo o modelo da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI). Isso significaria que a reconstrução síria seria financiada por capital chinês e supervisionada por uma rede de influência antiocidental, deslocando o equilíbrio de poder na região​.

Já a Turquia busca consolidar seu domínio sobre o norte da Síria, onde financia milícias aliadas e fortalece laços econômicos, impedindo qualquer avanço curdo e mantendo sua própria zona de influência. Ancara vê a Síria como um espaço para sua expansão econômica e militar, reforçando sua presença como potência regional. Mas essa presença turca pode aprofundar divisões internas na Síria e dificultar a reunificação do país, transformando certas regiões em enclaves controlados por potências estrangeiras.

Por sua vez, Israel não se preocupa com a reconstrução da Síria, mas sim com o fato de que qualquer governo em Damasco pode, direta ou indiretamente, representar uma ameaça à sua segurança. A contínua ocupação do Monte Hermon, mesmo diante da condenação internacional, e os ataques frequentes a posições iranianas dentro do território sírio mostram que, para Tel Aviv, a Síria não é um país a ser reconstruído, mas um campo de batalha para conter o avanço do Irã e do Hezbollah​. As tensões entre Israel e a Síria não desapareceram com a queda de Assad e continuarão sendo um fator de instabilidade regional.

Muitas Perguntas, Uma Certeza

A certeza primeiro: nenhum dos atores internacionais envolvidos busca uma reconstrução síria baseada exclusivamente no desenvolvimento e na estabilidade do país. A reconstrução não é um fim em si mesma, mas um meio para alcançar objetivos estratégicos. O futuro da Síria dependerá menos da boa vontade da chamada comunidade internacional e mais da capacidade de seus próprios líderes de equilibrar interesses externos, evitando que o país seja reduzido a um palco de disputas geopolíticas.

Quando um novo regime surge, os Estados Unidos se apressam em moldar sua formação. Não é diferente na Síria. Washington busca assegurar que a nova ordem política não se alinhe a rivais estratégicos como Rússia, China ou Irã. No entanto, se o objetivo fosse apenas garantir estabilidade e progresso, por que a história recente mostra um padrão de intervenção sem compromisso duradouro com a reconstrução?

O Afeganistão e o Iraque são exemplos claros dessa contradição. Ambos foram territórios onde os EUA derrubaram regimes hostis e, por um breve momento, tentaram reorganizar o Estado segundo seus interesses. No entanto, sem investimentos robustos e sustentáveis, as promessas de reconstrução se desintegraram, deixando para trás instabilidade, corrupção e, no caso afegão, o retorno do Talibã ao poder. No Iraque, a ocupação americana removeu Saddam Hussein, mas as falhas na reconstrução ajudaram a alimentar décadas de insurgência, corrupção e a ascensão do Estado Islâmico.

A Síria pode seguir esse mesmo caminho. O discurso sobre reconstrução e crescimento econômico não se traduz em garantias concretas de investimento. Sem um compromisso real e duradouro, a nova Síria pode não emergir como um modelo de recuperação, mas como mais um território onde as grandes potências projetam influência sem resolver os problemas estruturais do país.

No fim das contas, quem realmente reconstruirá a Síria? O povo sírio, com autonomia para definir seu futuro? Ou as potências que, mais uma vez, disputam sua influência sem o compromisso necessário para garantir um futuro estável e independente?

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