Em uma sociedade cada vez mais globalizada, os indivíduos tendem a se sentir perdidos em meio ao caos estabelecido. Compreender essa realidade não é fácil, sobretudo, quando a sociedade muda constantemente. A contradição torna-se maior quando as próprias individualidades são coletivas. Somos todos duplicados.
Sobre o autor
José de Sousa Saramago, ou simplesmente José Saramago, nasceu em 16 de novembro de 1922, em Ribatejo, Portugal. Seus pais eram camponeses e com menos de dois anos de idade se mudaram para Lisboa. Devido às condições financeiras da família, Saramago não pôde concluir os estudos, porém, realizou um curso de serralheiro mecânico e veio a exercer a profissão tempos depois.
Além de serralheiro, foi tradutor, funcionário público, jornalista, editor e crítico literário. Em 1947, publicou seu primeiro romance intitulado “Terra do pecado”. Em 1971, por conta de sua militância política, ele perdeu seu emprego no jornal em que trabalhava e passou assim a se dedicar apenas a literatura. Suas obras são marcadas por um apelo a reflexão política e social. Além disso, outro aspecto interessante em sua obra é o uso da vírgula no lugar de outros sinais de pontuação, que nos remetem ao ritmo da língua falada.
Dentre as obras mais celebradas, temos o “Memorial do Convento” de 1982, “O evangelho segundo Jesus Cristo” de 1991, e “O ensaio sobre a cegueira” de 1995. Ao longo de sua carreira foi galardoado com diversos prêmios, entre eles o Prêmio Camões – o mais importante prêmio para a literatura em língua portuguesa – em 1995 e o Prêmio Nobel em literatura, no ano de 1998. Saramago faleceu no dia 18 de junho de 2010, em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, aos 87 anos. Sua obra produziu frutos, inspirou reflexões e influenciou inúmeros leitores.
O Homem Duplicado (2002)
“O caos é uma ordem por decifrar” (Saramago, O homem duplicado)
Após o breu de mais uma noite, as pequenas faixas de luz que atravessam o quarto lhe apresentam o dia. Sendo moldado pela monotonia, a exaustiva rotina do trabalho – com conversas sem sentido, além do fatídico tempo pesando em suas costas – aparece novamente a sua frente. Mas por um simples acaso ou pelas ações desconhecidas (um tanto quanto insólitas) do destino, ao receber uma sugestão de um filme de seu colega de trabalho, sua vida vira de cabeça para baixo, ao descobrir que aparecendo na tela do televisor você possui um duplicado. Um ator em um papel secundário absolutamente igual a ti está em algum lugar por aí. Não igualdade em um sentido metafórico, igualdade no sentido literal. A mesma aparência. O mesmo corpo e a mesma voz, as mesmas marcas e a mesma altura, o mesmos olhos e cabelos. É como se você estivesse olhando seu reflexo no espelho.
O que você faria se soubesse que possui um duplicado? Bom, é com essa indagação que José Saramago nos embarca nesse fantástico romance intitulado “O Homem Duplicado”, que desbrava a vida de Tertuliano Máximo Afonso, professor de história do ensino secundário que se vê imerso em uma torrente de incertezas, curiosidades e desejos que deságuam em seu mundo. Pelo modo fortuito – método recorrente em quem está de bruços aos impropérios da vida – o caos estabelece-se, ensopando cada faceta de sua vida. A partir deste ponto de partida, Tertuliano busca conhecer o seu duplicado: Quais filmes já participou? Onde seu duplicado vive? Quem ele é realmente? O que fazer quando encontrá-lo? et al.
A partir dessa busca desenfreada a história evolui e Saramago nos traz reflexões que vão além de um personagem que encontra um duplicado. Dentro deste contexto, nos fala sobre a globalização e a perda da identidade do indivíduo em um mundo cada vez mais globalizado.
A globalização e o processo de perda da identidade
A globalização é um processo complexo, mas que pode ser caracterizado como um encurtamento das fronteiras a partir do desenvolvimento dos fluxos de capitais que ocorrem no mundo. A força cada vez maior e a atuação mais proeminente das multinacionais no sistema internacional são reflexos desse processo contínuo.
Segundo Valérie de Campos Melo (1999) a globalização deve ser entendida “mais do que uma transformação política e social já plenamente realizada […] Ela é um fenômeno ao mesmo tempo amplo e limitado: amplo, porque ela cobre transformações políticas, econômicas e culturais; limitado, porque não se trata de um processo completo e terminado, ele não afeta a todos da mesma maneira (Campos Melo, Valérie. 1999, p.165)”. Segundo Milton Santos (2002), é necessário levar em consideração o estado das técnicas e também a política. Nesse sentido, a globalização embarca tanto o desenvolvimento das novas tecnologias como as ações políticas que são realizadas para esses fins.
O professor de história, Tertuliano Máximo Afonso, dentro desse processo compreende que seu instrumento de trabalho, a história, necessita ser revisto. Apenas falar do passado não é o suficiente, seu conhecimento não encontra respaldo e suas ações são inócuas:
Falar do passado é o mais fácil que há, está tudo escrito, é só repetir, papaguear, conferir pelos livros o que os alunos escrevam nos exercícios ou digam nas chamadas orais, ao passo que falar de um presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar dele todos os dias do ano ao mesmo tempo que se vai se navegando pelo rio da História acima até às origens, ou lá perto, esforçar-nos por entender cada vez melhor a cadeia de acontecimentos que nos trouxe aonde estamos agora, isso é outro cantar, dá muito trabalho, exige constância na aplicação, há que manter sempre a corda tensa, sem quebra (Saramago, O homem duplicado, p.71).
Nesse sentido, não é o passado que oferece o instrumental necessário para que possamos entender o presente. É o presente que nos outorga o instrumental necessário à imersão no passado.
A globalização de retórica neoliberal trouxe também o desdobramento da ocidentalização do mundo. Para João Ribeiro Júnior, “as grandes multinacionais há muito que condenam as culturas locais à homogeneização/banalização, e com isso, a própria soberania dos países, que as acolhem (Ribeiro Júnior, João. 2001, p.304)”.
Sobre esse aspecto, as vicissitudes que a homogeneização leva aos mais longínquos cantos do mundo tendem a encurtar as distâncias culturais, aproximar os opostos fazer com que o “eu” encontre semelhança no ‘outro”. Tal qual como Tertuliano, todos possuímos um duplicado. Aliás, somos cópias de outrem. O duplicado de Tertuliano o aproxima dele mesmo ao influir nele uma crise existencial onde sua própria essência cai ao chão. Consequências essas de um mundo globalizado onde o braço da massificação social é a ferramenta de coesão, de harmonia para a existência de uma sociedade adequada aos novos padrões de vida e consumo.
Segundo Danilo Luiz Carlos Micali (2011):
A ânsia de uniformizar da sociedade moderna (ou pós-moderna) dissolveria as singularidades pessoais, numa cultura de massa que se pretende universal. Na verdade, ao procurar o seu duplo, Tertuliano teria partido em busca de si mesmo, da sua interioridade, e se veria em confronto com a perda total de identidade, em um corpo duplicado e reduplicado ad infinitum (MICALI, Danilo L.C., 2011).
De todo o modo, em contraponto à indústria que produz essa cultura de massas que atendem aos interesses de um mercado capitalista desenvolvido, temos também a existência da cultura popular, aquela que nasce de “baixo” e atende ao cotidiano de uma determinada comunidade, que se comunica diretamente com ela e é o elo que os une à cultura. Segundo Milton Santos (2000):
A cultura de massas produz certamente símbolos. Mas estes, direta ou indiretamente ao serviço do poder ou do mercado, são, a cada vez, fixos. Frente ao movimento social e no objetivo de não parecerem envelhecidos, são substituídos, mas por uma outra simbologia também fixa: o que vem de cima está sempre morrendo e pode, por antecipação, já ser visto como cadáver desde o seu nascimento. É essa a simbologia ideológica da cultura de massas. Já os símbolos “de baixo”, produtos da cultura popular, são portadores da verdade da existência e reveladores do próprio movimento da sociedade (Milton Santos, 2000)
Apesar de sua forte presença, dos altos recursos e da grande extensão de seus alcances, a cultura de massas possui a cultura popular como contraponto. E é uma cultura que atenda aos anseios, que dê voz, em que o “eu” se reconheça como indivíduo, como cidadão e como humano que possui o condão de emergir a plenitude de ser humano em meio ao caos do mundo.
Considerações finais
Saramago nos presenteia com uma narrativa fantástica que mergulha em um dos temas mais discutidos e controversos de nosso tempo: a globalização. O homem jogado nesse caldeirão se vê em um conflito eminente. Em suma, as reflexões contidas em “O homem duplicado” são de grande valia para pensarmos as contradições desse processo e assim, entendermos a nossa própria condição neste meio.
Referências bibliográficas:
BRANDINO, Luiza. José Saramago. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/literatura/jose-saramago.htm.
FRAZÃO, Dilva. Biografia de José Saramago. Disponível em: https://www.ebiografia.com/jose_saramago/.
JÚNIOR, João Ribeiro. Teoria geral do Estado & ciência política. Bauru, SP: EDIPRO, 2001.
MELLO, Valérie de Campos. Globalização, regionalismo e ordem internacional. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 42, n. 1, pág. 157-181, junho de 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73291999000100007&lng=en&nrm=iso.
MICALI, Danilo Luiz Carlos. A incrível narrativa de O homem duplicado, de José Saramago. 2011. Disponível em: https://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0236-1.pdf.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. São Pauto: Record, 2000.
SARAMAGO, J. O Homem Duplicado. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
Para comprar o livro, acesse o link abaixo: