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Dora Bruder e as memórias perdidas no Holocausto

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SOBRE O AUTOR

Patrick Modiano, nascido em 1945, é um prestigioso autor francês, cujo catálogo de mais de trinta obras já foi reconhecido pelo Grand prix du roman de l’Académie française e pelo renomado prix Goncourt de literatura. Os temas mais recorrentes de suas obras são a autoficção, a busca pela juventude perdida, a cidade de Paris nos tempos da Ocupação Nazista, e a vida de indivíduos comuns que são confrontados aos acontecimentos trágicos deste período histórico.

DORA BRUDER

Dora Bruder é um livro que tenta reconstituir o percurso de uma jovem que foi silenciada pelos horrores do Holocausto. O enredo incorpora uma mistura inusitada de três gêneros literários distintos: biografia, autobiografia e policial. Publicado inicialmente em 2 de abril de 1997 pela editora Éditions Gallimard, o livro foi redigido pelo afamado escritor francês Patrick Modiano, que eventualmente tornou-se vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 2014.

A principal temática do livro é o apreço pela memória daqueles que foram vítimas do Holocausto, na batalha por manter suas vozes vivas e por permitir que suas identidades não sejam esquecidas ao longo do tempo, tendo em mente que, em virtude desse acontecimento histórico, grande parte da documentação pertinente às vítimas foi perdida ou propositalmente destruída. Soma-se isso à dificuldade de encontrar pessoas que ainda estejam vivas, e que possam preencher as lacunas existentes em cada história individual. Como resultado, é virtualmente impossível descobrir algo significante acerca de milhões de pessoas que injustamente vieram à óbito durante esse período trágico da história mundial.

Dora Bruder fora uma dessas vítimas, e que estava destinada ao esquecimento. A jovem nasceu em 25 de fevereiro de 1926 no hospital Rothschild, no 12º arrondissement de Paris, e morava na rua Boulevard Ornano, número 41. Seus pais a enviaram a uma escola católica, da qual ela fugiu. Em 1942, ela foi encontrada, mas o seu pai já estava preso no Campo de Detenção de Drancy. Por ventura do destino, Dora acaba no mesmo campo, e assim como seu pai, fora enviada à Auschwitz em 18 de setembro de 1942.

São esses os poucos fatos concretos sobre ela, e sobretudo durante seus vários desaparecimentos, o que se tem são apenas especulações e informações escassas, que são destrinchadas pelo autor da obra, que estabelece a dura tarefa de tentar reconstruir a história dessa jovem. Neste primeiro ponto, observa-se o caráter biográfico do livro.

PARIS: Procura-se uma jovem, Dora Bruder, 15 anos, 1,55m, rosto oval, olhos marrom-acinzentados, casacão cinza, suéter bordô, saia e chapéu azul-marinho, sapatos marrons. Qualquer informação dirigir-se ao Sr. e à Sra. Bruder, bulevar Ornano, 41, Paris. (MODIANO, 1997, p. 4)

Mas dentre tantas outras vítimas para serem abordadas em uma biografia, por que deu-se a escolha de Dora Bruder? O autor elucida este ponto desde o começo do livro, após haver visto um anúncio de pessoas desaparecidas, e notar que a jovem morava em uma rua muito familiar (na mesma vizinhança que a sua), levando-o a acreditar que, de alguma forma, as suas vidas têm vários pontos em comum. Então, o leitor é transportado para as memórias do próprio Patrick, de seu histórico familiar com o nazismo e do impacto de ser membro de uma família que conseguiu sobreviver a esse período de genocídio.

Assim, o fascínio do autor pela temática do nazismo está ligado ao seu pai, que era judeu e conseguiu escapar – em várias instâncias e com muito esforço – das garras do Gestapo, uma ameaça conhecida por todos os judeus vivendo na França ocupada. Fica claro que o autor põe-se no lugar de Dora porque, além de terem composições familiares semelhantes, também moravam na mesma região. Patrick percebe que poderia ter estado na mesma situação que Dora, e a sua infância, juventude e demais histórias pessoais começam a misturar-se com a biografia que está elaborando. Neste segundo ponto, o livro assume também características do gênero autobiográfico:

A cidade ficou deserta, como para marcar a ausência de Dora. Desde então, a Paris na qual tentei encontrar suas pistas manteve-se deserta e silenciosa como naquele dia. Caminho pelas ruas vazias. Não posso nem mesmo me impedir de pensar nela e de sentir o eco da sua presença, em certos bairros. Nunca irei saber como ela passava os dias, qual era seu esconderijo, a quem via durante os meses de inverno de sua primeira fuga, e durante as semanas da primavera, quando novamente fugiu. Aí está o seu segredo. Um simples mas precioso segredo que os algozes, os decretos, as autoridades ditas da Ocupação, a prisão, os quartéis, os campos, a História, o tempo – tudo aquilo que nos empesta e nos destrói – nunca mais lhe poderão roubar. (MODIANO, 1997, p. 109)

É necessário ressaltar que o autor especula bastante acerca dos pensamentos de Dora e de suas motivações. Na verdade, o autor procura preencher as lacunas da história por meio dessas especulações, ponderando acerca do que provavelmente ocorreu nos últimos meses de vida da garota. Como a narração do livro tenta ao máximo seguir uma linha cronológica correta, o leitor consegue acompanhar a história de vida de Dora desde sua infância, e assim torna-se gradualmente envolvido na investigação liderada pelo autor, que consegue despertar bem a curiosidade de quem está lendo. Neste terceiro ponto, há mais um gênero literário envolvido: o de investigação policial, também conhecido como detetive.

Outrossim, retraçar o caminho de Dora não é uma tarefa fácil, e todas as dificuldades encontradas são explicitadas pelo autor, que opta por detalhar diretamente ao leitor todos os procedimentos que adotou na busca por informações simples, como fotografias, registros ou datas. Neste sentido, qualquer pequena descoberta torna-se uma grande vitória, e de valor simbólico enorme para a memória de Dora Bruder.

Por mais que seja cediço, desde o início, que Dora Bruder provavelmente faleceu em um campo de concentração ainda na sua adolescência, isso não torna a obra menos interessante, pois assim como Patrick, quem está lendo o livro também torna-se esperançoso de que haja algo que indique um final bom para a história, ou que nesse entretempo seja descoberto algo significativo acerca da vida de Dora, algo que satisfaça ainda mais a curiosidade do leitor em saber mais sobre essa misteriosa jovem e sua personalidade.

Em um último plano, vemos o autor elaborar uma crítica emocionante sobre a inutilidade dos campos de concentração e no desperdício de energia que fora gasto perseguindo pessoas inocentes, puramente em função de sua confissão religiosa, de seus familiares ou pelo simples fato de estar na rua errada no momento errado. A crítica ao genocídio vira – merecidamente – o tópico principal nos momentos finais da obra, e o autor aproveita para mencionar o nome de outras vítimas que também estavam listadas junto com Dora, dando ao leitor uma breve noção da quantidade de vidas afetadas em cada prisão e deportação, ainda que estas fossem realizadas rotineiramente, seguindo ordens.

O autor também transcreve uma carta extraviada, descoberta por acaso, provavelmente escrita por Robert Tartakovsky, vítima do Holocausto, revelando-a à humanidade cinquenta anos após sua escrita:

Anteontem me chamaram para a partida. Há muito tempo que eu já estava preparado moralmente para isso. O campo está assustado, muitos choram, têm medo […] Se vocês não tiverem notícias, não se aflijam, por favor; havendo necessidade devem dirigir-se à Cruz Vermelha. Somos em torno de mil, os que partem. Há também arianos no campo. São obrigados a usar a insígnia judia […] Recomendem a todos os amigos que, podendo, mudem de ares, que por aqui não há esperança alguma de nada. Eu não sei se nos enviarão até Compiègne antes da grande viagem […] Mamãe querida, e vocês minhas três queridas, eu as abraço com emoção. Sejam corajosas. Até depois, são 7 horas. (MODIANO, 1997, p. 92-97)

Dora Bruder vira a heroína de sua narrativa, assim como milhões de outros indivíduos, cujos nomes nunca serão revelados, e que infelizmente fazem parte de uma grande rede de fantasmas. É extremamente difícil não simpatizar com as mil histórias e vozes entremeadas à de Dora, e a obra de Patrick Modiano, em sua mistura literária única, consegue impactar e emocionar qualquer um que decida ler. É uma pequena amostra de um período da humanidade que ainda precisa ser relembrado, e que sempre será relevante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MODIANO, Patrick. Dora Bruder. Paris, Gallimard, 1997.

FICHA TÉCNICA

  • Título: Dora Bruder
  • Autor: Patrick Modiano
  • Editora: Rocco
  • Idioma: Português
  • ISBN-10: ‎ 8532508898
  • ISBN-13: ‎ 978-8532508898

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