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A projeção de poder alemã frente a construção do expresso Berlim-Bagdá entre 1898-1914

Ferrovia que ligaria Berlim à Bagdá | Fonte: Coleção de fotografias de G. Eric e Edith Matson

À luz da geopolítica clássica, este trabalho analisa a expansão da Alemanha guilhermina frente ao projeto de construção do expresso Berlim-Bagdá e sob a ótica do escopo teórico mackinderiano, como a atuação do mercado financeiro alavancou a viabilidade desse projeto. Sendo assim, para além do sucesso da ferrovia, este trabalho se debruça na análise da atuação do mercado financeiro germânico frente às possibilidades de consolidação da Alemanha como um poder anfíbio, conforme a definição do inglês Mackinder, e como essa participação o caracteriza como um importante ator na geopolítica internacional desde o século XIX.

A fim de manter uma linha de raciocínio lógica, este trabalho está dividido em três partes: I) ocupa-se em delinear a respeito do principal escopo teórico da geopolítica clássica que utilizaremos, o pensamento mackinderiano; II) concentra-se na aplicação desse escopo na análise histórica da Alemanha guilhermina frente ao projeto do expresso Berlim-Bagdá; e, por fim, III) dedica-se a ressaltar como o mercado financeiro alemão agiu como um ator importante na projeção de poder geopolítico alemão dentro desse recorte.

O pensamento Mackinderiano e a teoria do Heartland

Em seu pronunciamento na Royal Geographical Society (1904), Halford J. Mackinder alertou a elite política britânica para os perigos da reestruturação do equilíbrio de poder europeu frente aos avanços da Rússia e da Alemanha. Mackinder procurou estabelecer uma correlação entre os aspectos da geografia física e a história humana. Para além da proeminência do primeiro sobre o segundo, e vice versa, o autor preocupou-se com a correlação entre o controle físico geral por parte da ação humana e suas implicações na dinâmica da política internacional. Seu posicionamento inicial é ancorado no que o autor chama de fim da Era Colombiana – que se refere à expansão marítima europeia – o que implica no esgotamento territorial de terras novas a serem desbravadas e colonizadas pelas potências europeias. Nessa linha de raciocínio, o sistema internacional tornou-se, portanto, um sistema político fechado em que as rivalidades entre as potências europeias deixaram de ser travadas no além mar, nas colônias, e passaram a ser disputadas no interior do continente.

De acordo com o pensamento mackinderiano, a disputa pela projeção de poder mundial ocorre em duas frentes antagônicas: terrestre e marítima. Nesse momento histórico, nenhuma outra potência possuía as mesmas capacidades de conquista marítima que a Grã Bretanha, contudo, considerando a composição de um sistema político fechado apresentado por Mackinder, o autor sinalizava a possibilidade da existência de um poder anfíbio capaz de atuar em ambas as frentes, marítima e terrestre e, assim suplantar a supremacia britânica.

Ao longo de seu discurso, o autor ressaltou a importância da relação entre os territórios da Europa e da Ásia na composição de parte da história moderna, sublinhando como os fluxos decorrentes das incursões e batalhas tornaram a região que compreende a Eurásia uma área pivô para o equilíbrio de poder mundial. Nessa linha de raciocínio, Mackinder propôs uma perspectiva para repensar o equilíbrio de poder europeu a partir da teoria do Heartland, que sugere que a área pivô, o coração continental, que caracteriza a região da Eurásia, é onde a política internacional é drenada e definida em termos de projeção de poder. Ao descrever os aspectos físicos geográficos da área pivô, Mackinder ressaltou que, a existência de uma drenagem hídrica composta por uma malha de pequenos rios em uma área extensa e despovoada, indica a capacidade de suportar o desenvolvimento de uma população – sendo ao norte, limitada pelas florestas a pântanos sub árticos com um clima rigoroso e, ao leste é limitado pelos rios da Manchúria e Armur. Assim, a vantagem geoestratégica da potência que dominasse o heartland reside no controle do espaço territorial onde o equilíbrio de poder é definido e essa dominação só pode ser exercida, a priori, a partir de um poder terrestre forte.

A partir dessa consideração geoestratégica do heartland, Mackinder defendeu que, naquele momento histórico, o poder terrestre moderno tornou-se essencial para a projeção de poder de uma potência, pois a mobilidade deste se sobrepõe ao marítimo uma vez que é capaz de, por meio da construção de ferrovias intercontinentais, adentrar um extenso território enquanto o segundo atua pontualmente em portos e armazéns. Além disso, sob a perspectiva da projeção de poder de uma potência, a consolidação do poder terrestre promoveria as bases necessárias para a estruturação e avanço do poder marítimo, tornando-se uma potência anfíbia. De antemão, Mackinder apontou para dois Estados europeus que representavam esse perigo de potência anfíbia, a Rússia e a Alemanha.

Em relação ao primeiro, o autor ressaltou a grandeza do exército russo em relação a expansão moscovita feita a cavalo em direção ao extremo da Ásia capaz de consolidar uma unidade territorial desde o núcleo geo-histórico de Moscou até o extremo leste de Vladivostok. A extensão territorial da Rússia nesse momento compunha a maior malha territorial contínua do planeta e incluía o controle de parte do heartland e, por isso, no pensamento mackinderiano era considerado como um Estado pivô. Contudo, a despeito de sua grandeza territorial a Rússia em sua posição geoestratégica não possuía condições infraestruturais de adentrar todo seu território de maneira eficiente. Nesse sentido, o autor ressalta que a ferrovia Transiberiana, que apesar de precária, demonstrava a importância do avanço em termos de mobilidade terrestre. Em relação ao segundo, a Alemanha, Mackinder alertou para os perigos relacionados a possível aliança Alemanha-Rússia, pois a primeira seria capaz de prover toda a ciência necessária para o avanço infraestrutural da segunda. Nas palavras do autor:

A reviravolta do equilíbrio de poder em favor do Estado pivô, resultando em sua expansão sobre as terras marginais da Eurásia, permitiria o uso de vastos recursos continentais para a construção de frotas navais, e o império mundial estaria à vista.

Com o pensamento estratégico mackinderiano em mente, adentraremos em sua aplicação na análise da projeção de poder alemã frente ao projeto de construção da ferrovia Berlim-Bagdá do início do século XX.

Geopolítica Alemã e a construção do Expresso Berlim-Bagdá

O contrastante entre a política externa adotada por Bismarck após a unificação alemã em 1871 em relação a adotada por Wilhelm II a partir de 1888 pode ser bem exemplificada pelo conceito de Weltpolitik do último imperador. Enquanto o primeiro priorizou consolidar os limites territoriais do novo Estado europeu, a Alemanha, e manter uma relação de coexistência pacífica frente a Rússia com o Tratado de Berlim em 1878, somado ao posicionamento de respeitar suas zonas de influência como os Balcãs, posicionamento consolidado pelo Tratado de Ressegurança firmado em 1887, o segundo não possuía tanto tato diplomático para manter os mesmos posicionamentos que o primeiro.

O jovem kaiser, em seu primeiro ano como imperador, 1889, com o objetivo de expandir as relações exteriores da Alemanha, visitou Constantinopla e outros territórios do Império Turco Otomano, como o Egito, Jerusalém e Síria, causando especulações e alardes entre as demais potências como a Grã-Bretanha. Com um comportamento exuberante e recepções calorosas, o kaiser conquistou a confiança do sultão Abdul Hamid e de todo o mundo islâmico com base em sua simpatia, cordialidade e admiração pela cultura local. Um exemplo sintomático dessa relação, citado por Sean McMeekin em sua obra O expresso Berlim Bagdá, foi o episódio em que Wilhelm II exaltou o guerreiro sultão Saladino, um grande herói do islã, como um cavalheiro sem medo com o objetivo de explicitar sua simpatia e admiração ao Império turco-Otomano, ao sultão e a todo o mundo maometano indicando que a Alemanha seria a protetora do Islã frente a hostilidade com que a religião era vista pelos outros países europeus como a Grã-Bretanha e a França. Assim, o equilíbrio de poder estratégico da Europa deu sinais de ameaça e instabilidade e os jornais britânicos, franceses e russos tornaram-se veículos de conspirações a respeito das reais intenções da política externa do Kaiser.

Nesse momento histórico, o Império Turco já demonstrava dificuldades em manter sua unidade política, mas com o apoio da Grã-Bretanha o império mantinha suas condições de poder enquanto atuava como um Estado satélite inglês. Um exemplo dessa relação é a Guerra da Crimeia, que aconteceu entre 1853 e 1856 quando o Império Russo, fundamentado em uma política expansionista para ter acesso às águas quentes, ocupava a península, mas teve a tentativa frustrada pela coalizão da França, Reino da Sardenha, Império Turco e Grã Bretanha. Assim, os ingleses eram como protetores políticos para o Império Turco e, por isso, a primeira potência especulada para incentivar a infraestrutura local – para ter acesso, inclusive à Babilônia e à Ásia Menor. Além disso, sob a ótica econômica, o Império Turco dependia financeiramente na Inglaterra e da França, sendo, segundo McMeekin, a dívida pública do império basicamente tomada por esses dois países, o que ameaçava a autonomia e soberania plena do sultão.

As articulações em torno da construção de uma estrada de ferro que ligasse a Europa à Ásia tangia os interesses de todas as potências, pois assim como afirma McMeekin, essa área proporcionaria a expansão dos negócios comerciais internacionais, uma vez que alcançaria o Oriente por meio de um caminho comercial mais rápido quando comparado ao tráfego marítimo pelo cabo da Boa Esperança ou através do Canal de Suez. Essa possibilidade alavancaria a performance econômica da potência responsável pela estrada de ferro, o que corrobora com o argumento mackinderiano de que no heartland se define o equilíbrio de poder que drena a política internacional e que, mediante a supremacia do poder terrestre, seria possível dominá-lo.

A Grã Bretanha já tinha participação na estrada de ferro, construída na década de 1860, com extensão de Mersin até Adana e até o mar Egeu. Em seguida, em 1875, com a ajuda do mercado financeiro francês, a Companhia do Canal de Suez construiu uma estrada de ferro costeira que cruzava a área asiática da Turquia, o que indicava a Grã-Bretanha como a principal potência a conseguir construir uma linha férrea que cruzava todo o Império Turco. Contudo a relação entre Londres e a Porta já estava suficientemente desgastada, devido a atuação do liberal William Gladstone, com a anexação do Chipre (1878), somado também a invasão do Egito em (1882). A França também sinalizava interesses em tomar frente da construção da estrada de ferro, pois além da sua posição dominante frente a administração da dívida pública turca, também foi uma das principais incentivadoras da via férrea de Paris até a Turquia. No entanto, as relações políticas da França em relação à Porta também estava fragilizada em virtude do alinhamento da primeira com a Rússia em 1894 frente a invasão inglesa no Egito. Por fim, a Rússia posicionava-se com veemente preocupação em relação a uma estrada de ferro que transpassasse o território turco, o que, sob a ótica militar, promoveria agilidade na mobilidade das tropas turcas até às fronteiras russas.

Nesse xadrez internacional, o sultão Abdul Hamid pressionava uma aliança entre otomanos e alemães. Para o primeiro, a vantagem residia no a) alinhamento com uma potência europeia em expansão que é territorialmente distante dos limites do império, b) amenizaria a influência inglesa nessa região, c) combateria a dominação financeira francesa na economia turca e, d) garantiria a integridade das fronteiras turcas-russas. Para a Alemanha, as vantagens eram inúmeras pois, ao mesmo tempo em que ameaçava a superioridade inglesa no campo da política internacional por meio da projeção de poder alemã, garantiria a demanda industrial local por matéria prima, gêneros alimentícios e petróleo. Assim, fundamentada nessa aliança que garantiria a entrada da Alemanha no heartland e, confirmando a possibilidade da existência de um poder anfíbio indicado por Mackinder, a Alemanha dominaria a política internacional.

O mercado financeiro alemão como um ator na geopolítica clássica

Segundo McMeekin, os investidores alemães avançaram nos negócios turcos nas décadas de 1880 e 1890 com o pioneirismo do diretor do Deutsche Bank, Georg von Siemens, que, em 1888, concedeu um empréstimo de 30 milhões de marcos ao sultão que, com o apoio de secretário de Estado alemão na Porta, Marshall von Bieberstein, visava assegurar ao máximo a supremacia alemã na consolidação do projeto da ferrovia. O objetivo alemão, portanto, orbitava em torno de garantir o monopólio do Estado alemão sobre o projeto da ferrovia que partiria do coração da Alemanha, contudo, era necessário uma camuflagem para mitigar os alardes que o projeto causaria em Londres, Paris e São Petersburgo.

Num primeiro momento, esse empréstimo do Deutsche Bank proporcionou o início dos trabalhos da Companhia de Estrada de Ferro Anatólia, mas ainda demandava milhões de libras esterlinas para ser concretizado todo o projeto do expresso de 3200 km; então a atuação da Administração da Dívida Pública Otomana tornou-se imprescindível. Para resolver esse problema frente a dominação financeira turca pelos franceses e ingleses, o Deutsche Bank utilizou a Companhia de Estrada de Ferro Anatólia para o financiamento do expresso, vendendo ações a investidores ingleses e franceses no sentido de mitigar o risco financeiro alemão e estrategicamente maquiar seu pioneirismo no projeto.

Além disso, em 1899, para cooptar a companhia ferroviária francesa, Smyrna-Kasaba, que operava na região da Anatólia, os alemães prometeram 40% das ações de capital emitidas para a viabilização do projeto férreo à Bagdá aos franceses. No mesmo ano, após a pressão exercida pelo embaixador alemão Marschall, por meio de um depósito no valor de 200 mil libras turcas ao Tesouro Otomano que o sultão Abdul Hamid concedeu à Alemanha o direito de construção da ferrovia que iria até Bagdá. Mediante um acordo assinado entre o ministro de obras públicas otomano e o banqueiro Georg von Siemens, a ferrovia teria oito anos para ser finalizada por meio do Deutsche Bank e da Companhia de Estrada de Ferro Anatólia.

Para além do sucesso de construção da ferrovia, é importante ressaltar que o fato do Sultão ter endossado a supremacia alemã nesse projeto estava pautado para além da sua simpatia pelo kaiser, mas na repulsa de conceder esse benefício a Grã-Bretanha ou França. Ao longo dos anos subsequentes, diversos impasses financeiros aconteceram que demandaram no aumento de cobrança dos impostos e taxas alfandegárias da população otomana e o desembolso de capital alemão para o financiamento do projeto, uma vez que a dependência econômica da Turquia em relação à França e Inglaterra empacava a continuidade do projeto.

Contudo, nos termos que o presente ensaio versa, toda essa movimentação financeira alemã estava voltada para alavancar a projeção de poder da Alemanha no heartland, o que, no médio e longo prazo, por meio da supremacia do poder terrestre, indicaria alterações no equilíbrio de poder europeu pendendo para a força alemã.

Considerações finais

Este trabalho objetivou elucidar a forma como o mercado financeiro alemão atuou inicialmente no projeto de construção do expresso Berlim-Bagdá, pensado num contexto de expansão do vetor externo alemão nos primeiros anos do período guilhermino. Para além do sucesso da ferrovia e dos acontecimentos subsequentes a sua concretização, objetivou-se analisar o pensamento geopolítico alemão nesse recorte sob à ótica do pensamento Mackinderiano. Esse ensaio pretendeu corroborar com o argumento do inglês de que a supremacia do poder terrestre na dominação do heartland garantiria os insumos necessários para a consolidação de um poder anfíbio que implicaria no rebalanceamento do equilíbrio de poder europeu indicando a supremacia alemã.

Referências bibliográficas

MACKINDER, Halford J. O pivô geográfico da história. GEOUSP Espaço e Tempo (Online), n. 29, p. 88-100, 2011.

MCMEEKIN, Sean. A visão. In “O expresso Berlim-Bagdá: O império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial”; 1898-1918. Globo, 2011

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