Em fevereiro de 1976, durante a primeira cúpula da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), chamada de Bali Concord, nascia formalmente a instituição que hoje é a grande entusiasta da globalização e do livre comércio. A organização foi criada em 8 de agosto de 1967, em Bangkok, na Tailândia, a partir da assinatura da Declaração da ASEAN (ou Declaração de Bangkok). Inicialmente, a organização contava com cinco membros: Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura e Tailândia. O objetivo inicial era promover relações pacíficas e impedir a disseminação da influência comunista dentro de seus estados soberanos no contexto da Guerra Fria. Contudo, foi somente após a cúpula de Bali de 1976 que o projeto saiu da teoria e foi para a prática. No documento recém criado ficou estabelecido as seguintes normas:
- Respeito pela independência, soberania, igualdade, integridade territorial e identidade nacional de todas as nações;
- Não interferência externa, subversão ou coerção;
- Não interferência nos assuntos internos uns dos outros;
- Solução pacífica de controvérsias;
- Renúncia à ameaça ou uso de força;
- Cooperação efetiva entre as partes.
A cúpula também estabeleceu um secretariado central e formalizou o fórum ministerial para a cooperação econômica. O foco em cooperação económica, social, cultural e capacitação técnica e científica demonstra um claro desejo dos participantes de tentar manter a neutralidade diante da bipolaridade que vigorava até então.
A necessidade da criação desse documento ainda rudimentar se dava por três grandes motivos:
A) O contexto histórico; o vácuo de poder deixado pelas potências coloniais poderia ser preenchido por outras forças estrangeiras;
B) O fracasso da tentativa anterior; a Organização do Tratado do Sudeste Asiático (SEATO) deixou claro para os países da região que o foco deveria ser a construção de alianças com seus vizinhos;
C) A união de forças era primordial para conseguir alguma projeção no cenário mundial; Vizinhos de China e Índia e dentro da zona de influência da União Soviética e Estados Unidos, somente agindo como bloco poderiam ter alguma chance.
O Brunei ingressou no bloco em 1984, e já em um contexto pós-Guerra Fria, entraram Vietnã, em 1995, Laos e Mianmar, em 1997 e, por fim, o Camboja, em 1999, completando a lista dos dez atuais Estados-membros da ASEAN. Timor-Leste e Papua-Nova Guiné são membros observadores.
Diante do cenário eufórico mundial de vitória do capitalismo liberal, a região foi perspicaz em perceber rapidamente que precisaria se envolver em cooperação econômica e passar por processos de liberalização caso pretendesse ter competitividade no mercado internacional. Em 1992, a ASEAN criou a Área de Livre Comércio da ASEAN (AFTA) e passou a utilizar Tarifas Preferenciais Efetivas Comuns no comércio intra-bloco. Por sua vez, os membros se comprometeram a reduzir tarifas comerciais a zero em um prazo de 15 anos. O clima mundial era favorável, naquele período nascia a Organização Mundial do Comércio, o Mercosul e o Euro, por exemplo.
Ao contrário da União Europeia, o bloco não adotou um caminho que visava união monetária, mas sim fortalecer Estados próximos geograficamente e distantes culturalmente, preservando os diversos valores e objetivos internos de cada nação. Pragmaticamente, as nações notaram que havia mais pontos positivos na cooperação do que na concorrência.
Os países que compõem a ASEAN possuem uma população estimada de 650 milhões de habitantes, cerca de três vezes a população brasileira e terceira maior população do planeta, caso fosse um único país. Em relação à economia, o Produto Interno Bruto (PIB) abarca mais de 3 trilhões de dólares e, caso fosse um país, seria a quinta maior economia do mundo, com previsões de passar a Alemanha até 2050.
A situação demográfica é bastante favorável. Em 2000, a população do bloco era caracterizada por altas participações da população jovem de 19 anos de idade, tanto que chegou a 40,8% da população total da região. Agora esse número fica em torno de 34%. A faixa entre 15 e 59 anos está em torno de 62% e 5,3% entre idosos com mais de 65 anos. Segundo dados do Banco Mundial, o sul da Ásia será a região do mundo com maior taxa de fertilidade até 2070, quando então será superada pela África Subsaariana. Isso basicamente quer dizer que o sudeste asiático será a penúltima região do mundo a precisar se preocupar com problemas como falta de mão de obra, necessidade de importar trabalhadores e também com a previdência.
acordo ratificados
Os frutos da queda de burocracias e barreiras comerciais foram colhidos rapidamente. Ao mesmo tempo em que as potências externas consideram a ASEAN conveniente como organizadora de fóruns e cúpulas sobre interação, esses mesmos eventos oferecem espaços para o bloco dialogar e estreitar relações com os convidados, seja de forma bilateral ou multilateral.
A ASEAN possui acordo de livre-comércio com Austrália, Nova Zelândia, Japão, China, Coreia do Sul e está em negociação tanto com a União Europeia quanto com o Reino Unido. Além disso, possui outros mecanismos mais dinâmicos como o Asean Plus Three, que conta com os dez países do sudeste asiático, a China, o Japão e a Coreia do Sul, mesmo possuindo tratados com estes, separadamente.
Independente de agirem como bloco, as nações atuam agressivamente para criar novos laços econômicos com o mundo todo. Talvez o país mais bem sucedido da região seja Cingapura que, sozinho, possui acordos especiais com 15 países e/ou regiões. Outro destaque é o Vietnã, que apenas no ano passado ratificou um acordo similar com a União Europeia e assinou outro com o Reino Unido.
A região tem muito a oferecer, há uma alta diversidade de produtos e serviços oferecidos por ela. O Vietnã é especializado em tecidos e vestuário, enquanto Cingapura e Malásia são os principais exportadores de eletrônicos. A Tailândia exporta veículos e peças automotivas. Outros membros construíram indústrias de exportação em torno dos recursos naturais. A Indonésia é o maior produtor e exportador mundial de óleo de palma, o maior exportador de carvão e o segundo maior produtor de cacau e estanho; já Mianmar, que está começando a abrir sua economia, possui grandes reservas de petróleo, gás e minerais preciosos. Além de exportar produtos manufaturados e agrícolas, as Filipinas estabeleceram uma próspera indústria de terceirização de processos de negócios.
Parceria Regional Econômica Abrangente (RCEP)
Esse acordo merece um capítulo à parte por se tratar do maior acordo comercial da história da humanidade. Em novembro de 2020, foi assinado o RCEP, participando dele os dez Estados membros da ASEAN, Japão, Coréia do Sul, Austrália e Nova Zelândia, representando cerca de 30% da população e do PIB mundial. Os países do sudeste asiático não foram apenas participantes da negociação como o grande eixo central fundamental para o avanço do acordo, afinal, após a saída dos EUA, o projeto ficou em xeque.
O RCEP é uma sequência do Tratado Transpacífico (TPP), que foi desenhado pela administração Obama para integrar as economias de todas as nações da região da Ásia-Pacífico com exceção da China, como forma de tentar frear o avanço econômico de Pequim. Um dos primeiros movimentos de Trump foi sair do acordo alegando que ele afetaria empregos internos e, diante da incerteza, a ASEAN foi firme em manter as negociações. Basicamente, o que mudou foi que a China entrou e os EUA e a Índia saíram.
O pacto reduz tarifas em até 90% por 20 anos, abrange os setores de comércio, serviços, investimentos, e-commerce, telecomunicações e direitos autorais, assim como estabelece regras comerciais comuns para todos os signatários do bloco. Segundo estimativas, ele vai adicionar o valor de US $186 bilhões ao comércio dos países-membros por meio da queda de barreiras tarifárias e não-tarifárias.
O impacto da geopolítica no subcontinente
O fator geográfico e o cenário internacional também são cruciais para entender o posicionamento e o destaque do subcontinente. Com a pandemia, o mundo acordou para a cilada que ele mesmo criou, que é a total dependência de produtos chineses. O capitalismo ocidental, que sempre se beneficiou da farta mão de obra do país, agora sentiu o peso negativo da concentração da produtividade mundial.
Diante desse cenário, o sudeste asiático surge naturalmente como alternativa ao monopólio industrial chinês. Baixos salários, boas taxas de alfabetização e qualificação, e um ótimo mercado interno graças ao projeto de décadas de redução de burocracias entre seus membros, colocam os 10 países como os novos queridinhos do capitalismo liberal.
Há também, conforme planejado no governo Obama, a necessidade de manutenção de boas relações e de investimentos por parte das potências mundiais devido à proximidade da região com a China. Alguns países mais, outros menos, todos pertencentes a ASEAN, possuem grandes laços, sejam geográficos, culturais, históricos ou econômicos, com Pequim.
Por outro lado, justamente por considerar a região mais ao sul de seu território como sua zona natural de influência, a China não deseja que outras potências diminuam sua importância e também passa a precisar investir e ter bom relacionamento com as nações do bloco. Ou seja, dada a sua localização e ótimo ambiente para negócios e a instalação de novas empresas multinacionais, o sudeste asiático virou o eixo gravitacional das próximas questões mundiais.
Considerações Finais
Com premissas e necessidades variando conforme o contexto histórico mundial desde sua criação, em 1967, o sudeste asiático soube tirar proveito do cenário macro e administrar conflitos regionais como ninguém; pragmatismo é a palavra que melhor define essa sub-região.
Medidas concretas de construção de uma comunidade e integração econômica regional conceberam uma base sólida que propiciou criação de empregos, aumento da eficiência produtiva, diminuição de custos de produção e promoção de competitividade de empresas e trabalhadores, criando automaticamente paz, estabilidade e confiança mútua entre seus membros.
O histórico de destruição econômica gerado pela exploração colonial/imperial por parte de europeus, estadunidenses e japoneses foi, sem dúvidas, o ponto de partida da estratégia de fortalecer a região dessas nações altamente castigadas por interesses de povos longínquos.
A alta densidade demográfica, com uma grande diversidade religiosa e cultural, faziam muitos analistas chamar a região de “Segundo Oriente Médio”; muitos apostaram em um grande conflito interno com diversos atores envolvidos. Certamente, o progresso econômico conjunto, a política de não-interferência e os canais de conversas abertos desde 1967 formaram o tripé do sucesso de todo sudeste asiático.
Atualmente, o continente asiático como um todo possui um comércio interno superior ao europeu e a parcela asiática no PIB global deve chegar a 52% até 2050. A guerra comercial entre EUA e China evidenciou o que deve ser visto nas próximas décadas, o ocidente protecionista e o oriente fomentando a globalização, seja por meio do bilateralismo ou do multilateralismo, e com isso, aumentando gradativamente a fatia do comércio global.
Referências bibliográficas:
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