No ambiente acadêmico brasileiro, sobretudo na área de Relações Internacionais, cumpre dizer que poucos estudos se direcionam para a Ásia. Em grande medida os estudos existentes se voltam a analisar a China e a Índia. Se por um lado, existe razão nisso devido ao crescimento elevado dessas duas potências emergentes, por outro, ignora que os países da antiga Indochina estão entre os dois gigantes asiáticos, e, portanto, também serão afetados por esse crescimento econômico. A pesquisa compreende que o Sul Global é atualmente um campo chave na área das RI contemporâneas, e busca trabalhar o vínculo direto da intervenção norte-americana na República do Vietnã (Vietnã do Sul) com a libertação e unificação nacional em 1975, assim como também iniciar e incentivar o estudo de outros países asiáticos na academia brasileira.
Com o objetivo de compreender como a Guerra de Libertação resultou na unificação nacional sob a República Socialista do Vietnã, o artigo está dividido em duas seções, mais a introdução e a conclusão. A primeira aborda o contexto colonial do Vietnã, a partir do início da colonização francesa em 1858 até a independência do país em 1945 e sua divisão em 1954. A segunda seção descreve de que forma se deu a intervenção norte-americana, bem como a maneira que transformou a sociedade vietnamita e, finalmente, como ocorreu a libertação e unificação do país.
Contexto Colonial do Vietnã
A invasão francesa teve início em 1858, e precisou de trinta anos para consolidar seu domínio. O prestígio que o colonialismo tinha na Europa foi a principal motivação para a França dominar a Indochina, e somado a isso, também havia o interesse francês de rivalizar com o império britânico, que naquele momento estava impondo ao mundo sua paxbritannica. O motivo oficial dado pelas autoridades francesas, contudo, era de que a intervenção seria para proteger os missionários europeus que pregavam atividades religiosas no território do atual Vietnã (GOSCHA, 2016).
Ao tomar a Indochina, os colonos franceses mudaram radicalmente as estruturas político-governamentais dos vietnamitas, destruindo o que havia em substituição a uma monarquia pró-francesa, que se acomodava em privilégios em troca de concessões com os invasores. Os nobres cuidavam da arrecadação de impostos e da administração local, enquanto o restante da população empobrecia (VISENTINI, 2008).
Como em outros sistemas coloniais da época, um sistema de produção moderno, baseado na exploração dos colonizados e na expropriação da riqueza pela metrópole foi implementado no território vietnamita. Assim, a agricultura e a mineração foram desenvolvidas no país, bem como ferrovias, rodovias e portos foram construídos para escoar a produção. Os pequenos centros administrativos foram substituídos por cidades modernas, gerando uma falsa impressão de prosperidade (TAYLOR, 2013). Com todos esses fatores, logo uma classe operária surgiu no país, e essas injustiças foram base dos movimentos revolucionários que surgiriam nas décadas seguintes (GOSCHA, 2016).
O período colonial, desde seu início até a independência, foi marcado por revoltas armadas contra a dominação e agitações pacíficas contra os conquistadores. O maior intervalo ocorreu entre 1918 e 1929 período de ápice do desenvolvimento francês na Indochina (VAN CHI, 1965). Nessa época a resistência armada era majoritariamente de inspiração nacionalista, com exceção dos comunistas. No entanto, os grupos nacionalistas também buscavam alterar a realidade de seu país pela via reformista, e as derrotas de seus pleitos, tal como eventos internacionais do período, os radicalizaram nacionalistas revolucionários nas décadas de 1920 e 1930, favorecendo o Movimento Comunista (GOSCHA, 2016).
Em janeiro de 1930, Nguyen Ai Quoc fundou o Partido Comunista da Indochina (PCI), juntando diversos grupos vietnamitas de inspiração nacionalista (VAN CHI, 1965). A base do partido era de camponeses assalariados e agricultores sem-terra, como também dispunha de intelectuais, operários, pequeno-burgueses e uma parcela de nacionalistas (VISENTINI, 2008). A baixa formação teórica era compensada pela aderência do povo ao movimento popular, e nesse sentido foi crucial para o PCI entender como mesclar a revolta popular com os ímpetos revolucionários, e a simplicidade e perspicácia dessa estratégia se mostrou decisiva para a revolução vietnamita.
Dez anos mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão invade a Indochina, devido ao seu posicionamento estratégico. Nesse momento, o PCI – que havia sido proscrito um ano antes, mas ainda operava de forma clandestina -, reuniu outros grupos de resistência com intuito de formar alianças que visavam essencialmente as tarefas de libertação nacional (VISENTINI, 2008). Na prática, o povo foi chamado à luta.
Durante os anos de 1940 e 1941, o PCI articulou dois levantes que impactaram profundamente as relações sociais da colônia. O primeiro, no Norte, foi uma resposta direta ao abandono francês da região, que permitiu a entrada dos japoneses. Apesar de ser rapidamente esmagado, o levante deixou estrutura suficiente para a criação de futuras forças guerrilheiras (VISENTINI, 2008). No Sul, a revolta foi causada pelo recrutamento compulsório e as requisições alimentares pelo exército colonial japonês, que mataram aproximadamente duas milhões de pessoas (LUAN, 1949). O suporte popular nos levantes deixou claro que havia no Vietnã uma base social favorável aos movimentos de libertação nacional, que apesar de tudo ainda carecia de recursos e armas. Em 1941 foi criado o Viet Minh, como resultado da aglutinação de diversas organizações populares que visavam resistir à dominação francesa e japonesa (MACEDO, 2016; VISENTINI, 2008). Eles contaram ainda com o apoio do Partido Nacionalista Chinês para a criação de um movimento de guerrilha anti-japonês.
Em março de 1945, meses antes da derrota do Japão, os japoneses declararam a independência da Indochina e instalaram um governo títere na região. Entretanto, a governança fantoche era fraca nas regiões mais importantes do país, e setores-chave do Estado permaneceram em mãos nipônicas. Além disso, o governo instalado libertou diversos presos políticos que logo se juntaram ao Viet Minh (VISENTINI, 2008).
Dois meses depois, em maio, o Viet Minh criou o Exército de Libertação do Vietnã, fundindo todos os grupos existentes de guerrilhas e milícias de autodefesa. Esse exército desencadeou diversas insurreições locais como estratégia para uma insurreição geral. Com essas áreas libertadas, foram criados os Comitês Populares Revolucionários, que seriam as bases da futura administração popular vietnamita (VISENTINI, 2008).
Em 16 de agosto de 1945, após a rendição do Japão, o Viet Minh declara a independência do Vietnã. Os eventos que ocorreram durante a retirada japonesa, como a disputa dos grupos internos no país, até a proclamação da República Democrática do Vietnã ficaram conhecidos como a “Revolução de Agosto” (HOLCOMBRE, 2020).
Entretanto, dois meses antes, na Conferência de Postdam, os países aliados dividiram o país no paralelo 16º, e estabeleceu que tropas chinesas receberiam a rendição do Japão no Norte do Vietnã, enquanto os britânicos fariam o mesmo no Sul (SINGH, 2015). A França, que desejava reestabelecer o controle de sua antiga colônia, teve permissão dos britânicos para dar um golpe de Estado em Saigon em setembro de 1945. Além disso, os franceses também tiveram o suporte dos ingleses e japoneses no combate contra a resistência do Vietnã no Sul (SPRINGHALL, 2005). O Viet Minh se recusou a aceitar a independência de somente metade do país, e esses fenômenos provocaram uma guerra que durou trinta anos (GOSCHA, 2016).
De 1945 até 1954 diversas batalhas ocorreram, até que em 1954 os revolucionários vietnamitas venceram o imperialismo ocidental na batalha de Dien Bien Phu, após meses de cerco e com a rendição de dezesseis mil soldados franceses (BRADLEY, 2009). A batalha foi vencida dentro do contexto da Guerra Fria, sobretudo dentro da Doutrina Truman e, portanto, a ofensiva francesa no Vietnã teve patrocínio militar e econômico norte-americano: em 1951 os Estados Unidos bancavam 15% dos esforços de guerra francês; em 1954, 80% (SINGH, 2015).
Como forma de negociar a paz, um dia após a vitória revolucionária em Dien Bien Phu foi organizada a Conferência de Genebra de 1954. As hegemonias do período viam a negociação como uma forma de administrar a coexistência pacífica do período. Nela foi acordada a divisão temporária do Vietnã no paralelo 17º, criando a República Democrática do Vietnã (RDV) no Norte, presidida por Ho Chi Minh, e a República do Vietnã (RV) no Sul, sob o comando de Bao Dai. Os EUA, contudo, não reconheceu o que foi acertado na reunião (SINGH, 2015).
Milhares de pessoas cruzaram a fronteira nos dois sentidos, e as células comunistas-revolucionárias do Sul ficaram enfraquecidas, sobretudo de poder militar. Ho Chi Minh continuou seu governo no Norte, e ao Sul Ngo Dinh Diem virou primeiro-ministro (VISENTINI, 2008).
Da divisão à unificação: guerra revolucionária comunista
O governo de Diem foi marcado pela perseguição política desenfreada. Enquanto o Vietnã do Norte se ocupava com sua reestruturação, o Sul perseguia os comunistas, os budistas, os camponeses e as seitas religiosas-militares que antes apoiaram o governo (GOSCHA, 2016). Rapidamente surgiram focos de resistência, ainda desconectados e sem controle central (TANHAM, 1969). Somente em 1960 que a Frente para a Libertação (FNL) foi organizada, se aproveitando da experiência do Viet Minh e sua influência com os camponeses (VISENTINI, 2008).
O objetivo principal da FNL até a chegada das tropas americanas era a derrubada da ditadura neocolonial de Diem e o estabelecimento de um governo de coalizão democrático. Para isso, a Frente usou a estrutura deixada pelo Viet Minh nas aldeias e estabeleceu administrações paralelas nas áreas libertadas (BURCHETT, 2018), assim como os antigos comitês populares revolucionários. Em 1964, com a escalada dos conflitos, a FNL passou a reivindicar a unificação do Vietnã como fundamento de autodeterminação nacional (GOSCHA, 2016). Em agosto do mesmo ano acontece o Incidente de Tolkin, e em fevereiro de 1965 os EUA desembarcam no Vietnã, iniciando a operação Rolling Thunder (VISENTINI, 2008).
As tropas americanas entraram em campo devido ao crescente avanço da FNL e das deserções do exército de Saigon. O governo norte-americano acreditava no crescimento do comunismo no sudeste asiático caso o Vietnã “caísse” em mãos comunistas (SOUZA, 2019).
A estratégia vietnamita era chamada de guerra total do povo inteiro, e toda a população seria mobilizado no esforço militar e produtivo. O ponto tático era de desgaste psicológico dos adversários, minando a moral e combatividade dos inimigos ao atacar de surpresa e na retaguarda, tornando todo o território numa possível frente de combate (VISENTINI, 2008). A organização do exército com o povo era especial, pois não se podia distinguir entre militares e civis no Vietnã. A mistura se deu porque a luta contra o imperialismo foi combinada com a construção da revolução, e as duas se tornaram uma (BURCHETT, 2018).
Os EUA se retiraram após assinatura dos Acordos de Paris de 1973, devido à generalização dos protestos e da crise econômica a nível mundial. Saigon foi libertada em abril de 1975 após violentas batalhas, dando fim aos trinta e cinco anos de guerra quase ininterrupta e unificando, o país (GOSCHA, 2016).
Durante os anos de secessão, o Vietnã do Sul teve um regime neocolonial alinhado aos Estados Unidos, que se aprofundou com a guerra. Os bombardeios forçaram o êxodo rural da imensa população camponesa, e a capital Saigon chegou a ser caracterizada como “a cidade das cem mil prostitutas” pela revista Time. A economia do país era baseada nos subsídios americanos, e o país precisava importar alimentos que outrora exportava. Além disso, a moeda estava desvalorizada e a inflação descontrolada (VISENTINI, 2008).
A experiência do Viet Minh contra os franceses décadas antes foi fundamental para o sucesso da libertação do Sul, assim como a existência de apoio industrial, econômico e militar de potências desalinhadas com o capitalismo, como a China e a União Soviética (BRADLEY, 2009).
Após a libertação o Vietnã precisou lidar com os problemas herdados dos combates, bem como os erros de suas próprias políticas. Somado a isso, o país também se envolveu em outros dois conflitos armados: um com o Camboja e o outro com a China. Os conflitos ocorreram por disputas fronteiriças, e por arranjos da Guerra Fria, respectivamente (VISENTINI, 2008).
Já na década de 1980, o presidente Nguyen Van Linh deu início a diversas mudanças estruturais, e também as reformas conhecidas como Doi Moi, ou renovação (TAYLOR, 2013), que tinham como objetivo desenvolver o socialismo usando instrumentos do capitalismo: “queremos alcançar o socialismo, mas queremos ir de avião e não de bicicleta” (SOUZA, 2019). Desde os anos 2000 o país apresenta um crescimento médio de 6% no PIB anual, e desde 2009 é caracterizado como país de renda média (SOUZA, 2019). O Fundo Monetário Internacional estima, ainda, que a renda média vietnamita ultrapasse a brasileira antes de 2030 (ALVES, 2021).
Considerações finais
A vitória do povo vietnamita sobre três potências industriais deve-se principalmente ao amplo apoio popular no projeto revolucionário, que acontecia em paralelo às batalhas. A base de toda a resistência a partir da década de 1940 foi feita nas áreas libertadas, inicialmente pelo Viet Minh e depois pelos Vietcongs, que organizavam a população rural para se auto defender, e construíam administrações paralelas nesses locais, nunca adiando a construção de uma nova sociedade para o final do confronto. De fato, essa era a primeira revolução anticolonial de inspiração marxista a triunfar.
O momento posterior foi marcado por esforços de restauração anticolonial, trabalhados na construção da unidade e identificação nacional. O Vietnã do Sul (Saigon), que havia sido dominado por décadas, aproximava-se de um sistema capitalista moldado no Ocidente (semelhante ao Japão ou Taiwan), enquanto o Norte (Hanói) estava mais próximo do regime praticado na China e União Soviética.
Cabe registrar que os esforços políticos que vieram após a guerra carecem de exame pela perspectiva pós-colonial, que busca entender o processo de autonomia de um povo não mais dominado por potências estrangeiras, mas é certo afirmar que o país obteve avanços em todos os seus indicadores sociais e econômicos, sobreviveu a terríveis experiências e atualmente está situado no centro da região mais prospera do planeta, plenamente inserido nela. A história do Vietnã é, ainda, uma importante referência histórica da Guerra Fria, da ascensão da região, e da humanidade como um todo.
Referências
ALVES, José E. Diniz. Vietnã emergente e Brasil submergente. EcoDebate, 2021. Disponível em: <https://www.ecodebate.com.br/2021/04/16/vietna-emergente-e-brasil-submergente/> Acesso em 30 de agosto de 2022.
BRADLEY, Mark Philip. Vietnam at war. New York: Oxford University Press, 2009
BURCHETT, Wilfred G. A guerrilha vista por dentro. 1ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
GOSCHA, Christopher. Vietnam: a new history. New York: Basic Books, 2016.
HOLCOMBE, Alec. Mass Mobilization in the Democratic Republic of Vietnam, 1945–1960.University of Hawaii Press, 2020.
MACEDO, Unzer Emiliano. História da Ásia: uma introdução à sua História Moderna e Contemporânea. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2016.
SINGH, Sudhir Kumar. Colonialisms, Nationalism And Vietnam’s Struggle For Freedom. Proceedings of the Indian History Congress, vol. 76, 2015, p. 620–30.
SOUZA, Carolina Pereira de. República Socialista do Vietnã: contexto, política externa e trinta anos de relações com o Brasil (1989 – 2019). Conjuntura Austral, v. 10, n. 50, p. 26-46, julho, 2019.
SPRINGHALL, John. Kicking out the Vietminh’: How Britain Allowed France to Reoccupy South Indochina, 1945-46. Journal of Contemporary History, vol. 40, n. 1, 2005, p. 115–30.
TANHAM. George K. Guerra Revolucionária Comunista. Tradução de Ignez de Castilhos França. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1969.
TAYLOR, K. W. A History of the Vietnamese. Cambridge: Cambridge University Press, 2013
VAN CHI, Hoang. Do colonialismo ao comunismo: um histórico do Vietnã do Norte. Tradução de Heloisa de Carvalho Tavares. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1965.
VISENTINI, Paulo Fagundes. A revolução vietnamita: da libertação nacional ao socialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2008.