Autoritarismo de mercado
De acordo com Christopher Layne, existe atualmente uma modalidade de pensamento político-econômico que deverá afetar o balanço de poder internacional, chamada de “autoritarismo de mercado”, e é difundida principalmente pela China. Tal modalidade vem a enfrentar a modalidade ainda do status quo, que é a preconizada por uma ordem internacional baseada em regras liberais (LRBIO – liberal rules-based international order). A distinção entre as duas modalidades ocorre muito mais na dimensão política que na econômica. Na economia, ambas correntes defendem o capitalismo, porém divergem na política, onde a democracia está presente como fundamento crucial na primeira mas não na segunda, podendo ser repelida por líderes autocratas.
A premissa de que esta nova modalidade ganhará força é baseada não apenas na observação de que a China já tornou o balanço internacional de poder, pós-Guerra Fria, em um modelo multipolar, mas também por análises da força (ou debilidade) que a democracia tem demonstrado estatisticamente nos países do globo. Levantamentos de importantes projetos institucionais ou acadêmicos que medem o grau de liberdade política no mundo, tais como a Freedom House, Center for Systemic Peace e Regimes of the World (RoW), mostram que hoje a maioria do mundo ainda é democrática, mas já vem se observando uma certa reversão em direção ao caminho oposto, do autoritarismo. A atual pandemia do coronavírus poderá acentuar a emergência desta modalidade de autoritarismo de mercado, à medida que a vertente estatal-realista saia mais forte que a liberal ao final desta crise.
Contexto chinês
De acordo com Layne, “em 2014 o Banco Mundial fez o surpreendente anúncio que a China havia ultrapassado os Estados Unidos e se tornado a maior economia do mundo (medido por paridade de poder de compra – PPC) e que durante a década de 2020 é previsto que a China ultrapasse os Estados Unidos em PIB medido por taxa de câmbio de mercado” (Layne 2018, p. 95). Apesar do domínio militar norte-americano ainda estar vigente, este dado econômico por si só já transforma a China em indiscutível protagonista mundial. Ampliando as dimensões de poder, de acordo com Christopher Layne, “os pilares militares, econômicos, institucionais e ideacionais que sustentaram a Pax Americana” estabelecida pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, “estão sendo desafiadas pela China” (Layne 2018, p. 93).
A partir de conceitos desenvolvidos por Christophe Layne, uma ordem internacional emergente baseada em “autoritarismo de mercado” (Layne 2018, p. 101) poderá estar confrontando de forma muito intensa, a ordem internacional baseada em regras liberais (LRBIO – liberal rules-based international order) (Layne 2018, p. 89).
Utilizando a China como parâmetro, o autoritarismo de mercado pressupõe um sistema capitalista, unipartidário, com um estado muito controlador e interveniente e onde as liberdades civis, direitos políticos e cuidados ao meio ambiente são relegados a um segundo plano. Em contraste, a ordem mundial antagonista é baseada nos princípios do Consenso de Washington: mercados livres, democracia e globalização (Layne 2018, p. 100). Outros países de população considerável que estão seguindo caminho similar ao da China são a Rússia, Turquia e Filipinas.
Ainda vivemos em um mundo predominantemente democrático, porém com alguma tendência de reversão do quadro
A organização Freedom House examina anualmente o grau de liberdade de 195 países, através da análise de diversos indicadores que se referem a direitos políticos e liberdades civis. A metodologia agrupa os países em três categorias: livres, parcialmente livres ou não-livres. Os dados mais recentes revelam que 45% dos países são livres, 30% parcialmente livres e 25% não-livres. Portanto, menos da metade dos países pode ser considerada como efetivamente livre. A organização compara estes percentuais a 2007, e observa que houve uma queda dos países livres, que eram 47%, e dos países parcialmente livres, que eram 31%. Consequentemente, o número de países não-livres aumentou de 22% para 25%.
A organização Center for Systemic Peace realiza um estudo de governança global, denominado projeto Polity IV, que analisa os tipos de regimes políticos presentes em 167 países do mundo. O projeto define três possíveis regimes: democrático, autocrático e “anocrático”. Este último refere-se a regimes políticos onde são observados tanto elementos democráticos como autoritários. Os últimos resultados apresentados, para o ano de 2017, mostram que 58% da amostra dos países é democrática, 29% é “anocrática” e 13% é autocrática. Portanto, em cerca de 42% da amostra não há democracia plena.
O projeto acadêmico Regimes of the World (RoW) de 2018, de Luhrmann, Tannenberg e Lindberg, qualifica os países em quatro diferentes tipos de regime político: democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada. Especialmente focado em aspectos como princípios liberais, acesso igualitário por gênero à justiça e transparência do sistema judiciário, eleições livres e justas e multi-partidarismo, o estudo conclui, na amostra de 174 países, que 20% enquadram-se como democracias liberais, 36% como democracias eleitorais, 32% como autocracias eleitorais e 12% como autocracias fechadas. Portanto, o percentual democrático da amostra é de 56%, o que demonstra um certo equilibrio à outra alternativa.
Portanto, podemos tirar as seguintes conclusões destes estudos: (i) a democracia, que viveu importantes ondas de crescimento durante o século XX, não é ainda a forma política fundamental de boa parcela da população mundial e (ii) a democracia pode estar sofrendo queda globalmente.
Impacto coronavírus: um mundo mais realista e menos liberal?
Quais possíveis impactos a pandemia do coronavírus poderá causar no exacerbamento desta modalidade emergente do autoritarismo de mercado? Inicialmente, recordemos duas importantes vertentes que sustentam teorias de relações internacionais: realismo e liberalismo. O realismo preconiza que o Estado é o ator crucial dentro do palco da política internacional. O liberalismo, por sua vez, preconiza que o mundo é mais pluralista e outros atores “não-estado” também são relevantes, tais como empresas multinacionais, organizações não-governamentais e os indivíduos.
Apesar do fato de que o autoritarismo de mercado também seja capitalista, a dimensão do intervencionismo do Estado na vida das pessoas do país é muito mais alta nesta modalidade, quando comparamos com a alternativa liberal-democrática. Portanto, o realismo está mais presente no mundo autocrático do que no mundo democrático. Até o presente momento, em termos proporcionais, a civilização ocidental tem sido mais afetada pelo vírus que a civilização oriental. Portanto, a pressão sobre os líderes ocidentais tende a ser mais intensa. Para controlar a propagação da doença, governos ocidentais estão tendo que tomar medidas muito duras, senão autoritárias, tais como fechamento de aeroportos e de setores importantes da economia, além do isolamento social.
Tais medidas vão contra alguns dos princípios liberais mais básicos como a “liberdade de ir e vir” e menor intervenção do Estado. E ainda geram um efeito adicional de afetar a economia negativamente, o que, se mantido por muito tempo, poderá levar o liberalismo a ter de revisar seu modelo de forma muito mais drástica do que foi o enfrentamento da Grande Crise Financeira de 2008. Em economias onde a iniciativa privada é a proprietária predominante de empresas, se os recursos ficam mais escassos, empresários têm a opção de despedir pessoas e até fechar negócios mais rapidamente. Nas economias onde o Estado é proprietário das empresas, como é o caso da China, os problemas de saneamento das finanças obviamente também serão inevitáveis mas o ente público possui mecanismos de mitigação, ao menos iniciais, tais como a impressão de mais dinheiro e a manutenção de empregos públicos por leis como a da estabilidade do emprego. De acordo com Abhijit V. Banerjee e Esther Duflo, “na China, o Estado, tanto no nível nacional quanto local, exerce um pesado papel na alocação de terra, de capital e até de trabalho“ (Banerjee e Duflo 2020, p. 25).
Considerações finais
Portanto, ao menos no curto prazo, é bastante plausível imaginar que o liberalismo sairá mais arranhado desta atual situação da pandemia global, do que o “realismo” estatal. E isto poderá acelerar a difusão e absorção global de aspectos relacionados à esta modalidade emergente de autoritarismo de mercado.
Referências:
Abramowitz, M. J. Freedom House: Freedom of the World. 2018.
Banerjee, A. V., Duflo, E. How Poverty Ends – The Many Paths to Progress – and Why They Might Not Continue. Foreign Affairs, 22-29. 2020.
Layne, C. The U.S.-Chinese Power Shift and the End of the Pax Americana. International Affairs, 89-111. 2018.
Luhrmann, A., Tannenberg, M., & Lindberg, S. I. Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes. Politics and Governance, 6:1. 2018.
Systemic Peace. Polity IV Project. 2020.
Mestre em Relações Internacionais pela Florida State University (EUA), programa realizado no campus da cidade do Panamá, Panamá. MBA pela University of Rochester (EUA). Bacharelado em Administração de Empresas pela FGV-SP (Brasil). Trabalha na área financeira do Programa do Meio Ambiente das Nações Unidas (PNUMA) - ONU