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CAMPOS DE REFUGIADOS COMO ESPAÇOS DE VULNERABILIDADE: CAMPO DE AL-HOL E A PERPETUAÇÃO DO CAOS CAMPOS DE REFUGIADOS COMO ESPAÇOS DE VULNERABILIDADE: CAMPO DE AL-HOL E A PERPETUAÇÃO DO CAOS

Campos de Refugiados como Espaços de Vulnerabilidade: Campo de Al-Hol e a Perpetuação do Caos

Após a derrota territorial do Estado Islâmico em 2019, milhares de sobreviventes deste evento foram remanejadas para o campo de Al-Hol, no norte da Síria. Isso levou a diversos focos de tensão por conta da pressão exercida pelo Estado Islâmico e o caos humanitário do local. Por isso, mediante uma análise de relatórios sobre o campo e de bibliografia especializada na temática de campo de refugiados e terrorismo foi possível averiguar que a vulnerabilidade extrema e o limbo jurídico vivido pelos indivíduos nos campos tem o potencial de fortalecer o grupo do Estado Islâmico.

Introdução

Em março de 2019, a última fortaleza geográfica do Estado Islâmico foi derrotada pela Coalizão Global liderada pelos Estados Unidos (EUA), na região da cidade de Al-Baghouz Faqwani, na Síria. Naquele momento, o grupo extremista que vinha causando pânico na Síria e Iraque desde a autoproclamação do califado em 2014 estava territorialmente vencido. Entretanto os sobreviventes da batalha de Baghouz e os remanescentes do Estado Islâmico necessitavam ser direcionados para algum lugar, já que o estilo de vida que haviam construído no passado foi superado.

A exacerbação dessas divisões e tensões dentro dos campos ao longo dos territórios da Síria e Iraque foi elevada com a declaração em setembro 2019 do líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi, comunicando aos combatentes livres para libertar as mulheres e crianças dos campos, especialmente o de Al-Hol por conta da presença das famílias da antiga elite governante do califado (Azevedo, 2020). Segundo o relatório da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) (2022), a partir de 2020, com o advento da pandemia de COVID-19 no cenário internacional, as medidas restritivas aumentaram em Al-Hol, o que propiciou maior dificuldade para organizações não-governamentais adentrarem nos campos. Consequentemente, a situação humanitária piorou muito e abriu uma brecha para o surgimento de facções ligadas ao Estado Islâmico suprirem às necessidades de muitas pessoas necessitadas. Esta característica difere, por exemplo, do segundo maior campo na região norte da Síria, o de Al-Roj. 

Segundo relatório do International Crisis Group (ICG) (2019), em Al-Roj, há presença de muitos dissidentes do Estado Islâmico, ou seja, homens e mulheres que desertaram de suas obrigações perante o califado. Portanto há maior liberdade de movimento, inclusive de vestimenta, pois muitas mulheres usam roupas mais coloridas e óculos escuros. Enquanto em Al-Hol a restrição de movimento é intensa e a presença ideológica do Estado Islâmico é muito maior em virtude da presença de mulheres que eram ligadas aos líderes do grupo extremista, ou seja, mulheres completamente absorvidas pela ideologia (Mironova, 2020).

Como aponta Azevedo (2020), esse fator presente no campo de Al-Hol propiciaria a criação de um terreno fértil para a formação de uma nova geração admiradora do Estado Islâmico em virtude da falta de cuidados educacionais, de saúde, infraestrutura e jurídicos. Pois a precariedade do sistema educacional para os jovens, a má administração e a sombra do Estado Islâmico pairando sobre o campo tornam o ambiente tentador para o grupo abordar futuros membros para suas linhas (Zhani, 2020).

Por conta das dimensões tomadas pelo campo e por suas especificidades, Al-Hol será o foco deste artigo. Para tal, será mobilizada literatura sobre campos de refugiados e relacioná-la com a questão da vulnerabilidade para tratar das dimensões humanitárias desse evento pós-califado, pois para além dos eventos geopolíticos envolvendo a queda do Estado Islâmico há necessidade de trazer mais materialidade às pessoas presentes no campo de Al-Hol. 

Portanto, o presente artigo será dividido inicialmente em uma parte mais teórica, envolvendo discussões sobre campos de refugiados, já que é uma das classificações possíveis ao campo de Al-Hol. Em seguida analisaremos a história deste campo, a sua relação com o Estado Islâmico e a importância que ele desperta após a derrota territorial do autoproclamado califado. Por fim, concluiremos analisando como a falta de atenção e negligência com relação a vulnerabilidade presente no campo pode resultar em um fortalecimento da ideologia do Estado Islâmico, permitindo inclusive um possível ressurgimento do grupo. 

Para Além de Agamben: um Olhar Crítico sobre os Campos de Refugiados

O campo de Al-Hol é oficialmente um campo de deslocados internos. Segundo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (2024), este conceito pode ser entendido como um local onde pessoas são deslocadas pelos mesmo motivos dos refugiados, ou seja, perseguição, violência e violação de direitos humanos, mas a diferença é que não cruzam fronteiras durante esse processo. Por isso, apesar de oficialmente não ser chamado de campo de refugiados, é possível incluir os dois dentro do mesmo campo de análise. Pois ambos são locais de formação de identidade, violência, instabilidade, exceção e abandono (Loescher e Milner, 2004; Ramadan, 2012; Azevedo, 2020).

Dentro dos estudos sobre campos, a relevância do filósofo italiano Giorgio Agamben é central (Owens, 2009; Ramadan, 2012; Sigona, 2014; Oesch, 2017). Ele pode ser considerado o ponto de partida para estudos recentes sobre refugiados por ser promotor de uma visão sobre o refugiado como a união entre o social e o político dentro do cenário internacional, permitindo revisitar discussões instigantes sobre o tema (Owens, 2009). Sendo assim, qual seria essa visão desenvolvida por Agamben?

Para Agamben (2005), o soberano é aquele que pode suspender a lei e o ordenamento jurídico para algum fim. Consequentemente, ele é aquele que legitima a exceção. Isso pode levar a criação de um ambiente de exclusão dentro do território, que permite a suspensão da norma, transformando o ser humano em um ser sem ação política (Agamben, 2002). A materialização dessa exceção desenvolvida por Agamben é a formação dos campos, pois são neles que ocorre a suspensão da ordem, da cidadania, dos direitos e do ordenamento jurídico (Minca, 2005).

Portanto o campo, segundo Giorgio Agamben (2002), seria aquele ambiente que se forma quando o estado de exceção dentro de um território torna-se a regra e é normalizado socialmente. Segundo ele, isso perpassa a história ocidental, campos de concentraciones produzidos pelos espanhóis para conter os revoltosos em Cuba na década de 1896 ou concentration camps feitos pelos ingleses para conter os bôeres na virada do século XIX para o XX. Aquilo que era originalmente para ser excepcional tornou-se materializado e permanente (Owens, 2009).

 Por isso, Agamben (2002) analisa que há um “paradoxo do campo”, pois apesar de ser fisicamente e às vezes geograficamente um espaço externo a sociedade que o cerca não é puramente um espaço externo. Pois há pleno exercício de poder do soberano dentro do campo, promovendo a exclusão contínua daquele grupo, ou seja, os excluídos do campo são inseridos a partir da exclusão. Sendo assim, há um híbrido entre norma e fato (Agamben, 2002).

Em tempos mais recentes, a reação dos EUA pós-2001 permitiu o desenvolvimento de atualizações da visão de Agamben, adicionando os campos prisionais entre os espaços a serem analisados. O estado entre vida e morte, dentro e fora, legal e ilegal, criado na baía de Guantánamo, em Cuba, Abu Ghraib, no Iraque, e Bragam, no Afeganistão, criou o que foi chamado por Claudio Minca (2005) de “novas geografias da exceção”. Mas, em paralelo a essas atualizações pós-2001 começou a ocorrer uma formação crítica ao que era visto como a visão mainstream no tratamento da questão dos campos (Oesch, 2017).

Essa crítica deve-se ao fato de que, na perspectiva de Agamben (2002; 2005), aquele que vive dentro dos campos não possui agência, sendo desprovido de qualquer ação política, ou seja, era completamente submisso ao ambiente que o rodeava em razão do excesso de poder soberano operando no campo. Por isso, passou a haver um movimento para demonstrar que havia espaço político nos campos (Owens, 2009; Ramadan, 2012; Sigona, 2014; Oesch, 2017). O foco passou a ser demonstrar que dentro dos campos havia agência através de meios diversos, como arte e arquitetura (Oesch, 2017). 

Portanto, dentro dessa visão mais crítica ao que vinha sendo formulado desde o final dos anos 1990 e no início dos 2000, argumentam Pain e Smith (2008) que os eventos geopolíticos e o terror resultante deles devem passar a ser considerados dentro de um espectro mais reduzido, aproximando-o do cotidiano, olhando para materialidade das pessoas e de suas relações sociais. Sendo assim, o espaço do campo passou a ser visto como local de relações sociais que auxiliam a formar a identidade dentro de um determinado ambiente, em que indivíduos diferentes criam uma coletividade (Ramadan, 2012). Isso permite analisar como os indivíduos em sofrimento agem e reagem frente a um contexto geopolítico específico (Pain e Smith, 2008).

Por isso surge a noção de que as pessoas dentro de um campo de refugiados não são seres isolados dentro das fronteiras do campo e somente receptores das consequências dos eventos internacionais, mas em decorrência de sua vivência cerceada foram obrigados a produzir novas formas de expressarem-se, seja cultural ou politicamente (Ramadan, 2012; Owens, 2009). Essa formação social, cultural e política foi chamada por Adam Ramadan (2012) de “camp-society” (sociedade do campo, em tradução livre).

Isso levou a uma discussão sobre o pertencimento dentro dos campos, especialmente os de refugiados, deslocados internos e imigrantes (Sigona, 2014; Picker e Pasquetti, 2015). Pois a duração de existência do campo, o conglomerado de pessoas diferentes e a dificuldade de integrar essas pessoas na sociedade de maneira mais ampla faz com que os indivíduos presos nessas situações desenvolvam conexões internas e consequentemente sentimentos de pertencimento, inclusive de uma nova cidadania (Picker e Pasquetti, 2015). Por isso, dentro dos estudos sobre campos nômades na Itália, Nicola Sigona (2014) desenvolveu o conceito de “campzenship”, que é uma mistura de citizenship (cidadania, em tradução livre) e camp (campo, em tradução livre).

Essa cidadania paralela passa a ocorrer quando o governo ignora as condições humanitárias, econômicas e sociais em que vivem muitas pessoas dentro dos campos. Sigona (2005) traça inicialmente essa análise ao olhar para o povo Roma ou ciganos na Itália e o intenso preconceito que sofriam dentro do território italiano, gerando a formação dos chamados “campos nômades”, que seriam o local de abrigo desse grupo populacional que não possui um território fixo e acabam sendo entrincheirados em guetos ao longo do país. Assim sendo como não há pleno reconhecimento dos direitos do povo Roma e há pouco contato tranquilo com outros italianos, os campos passaram a ser o local de exercício pleno da sua cultura, relacionamentos, trabalho e atuação política crítica ao sistema injusto em que vivem, ou seja, produzem benefícios materiais e reconhecimento (Sigona, 2014). A subjetividade dessas pessoas passa a ser completamente vinculada ao ambiente geográfico do campo (Oesch, 2017).

Por conta do pertencimento e dessa construção da identidade, o tempo de exposição ao campo propicia a formação de dinâmicas próprias dentro de cada localidade. Segundo aponta Lucas Oesch (2017), o campo não é universal nas suas experiências, mas um espaço de ambiguidades. Isso pode gerar um processo de inclusão e exclusão ao mesmo tempo, como é o caso dos palestinos vivendo com uma cidadania jordaniana dentro dos campos de refugiados da Jordânia desde a década de 1950 (Oesch, 2017). Isso origina uma configuração própria para o campo, em que os refugiados podem ser consumidores, produtores, beneficiários do governo ou até mesmo críticos dele e, ao mesmo tempo, viverem dentro do campo (Oesch, 2017). 

O campo de deslocados internos de Al-Hol passa por essa formação ambígua de campzenship, pois os seus membros são de múltiplas nacionalidades e deixados em um limbo de esquecimento pelos seus próprios governos, ou seja, estão excluídos de seus territórios originários e ao mesmo incluídos em outra dinâmica na Síria. O problema, portanto, é como lidar com as consequências que podem advir deste local insalubre. Como destacam Pain e Smith (2008), as reações que indivíduos comuns imbuídos de suas visões de mundo podem tomar frente a um evento geopolítico podem afetar diretamente a política internacional. Isso pode ser refletido dentro da parte emocional completamente instável de seus membros, pois há um sentimento de revolta, vazio, desamparo e raiva que cresce a cada ano que são deixados lá, dificultando o trabalho de ONGs e órgão governamentais e dando mais valor para o grupo que promete libertá-los dessa condição desumana, que é o Estado Islâmico e seus mediadores dentro do campo (Médicos Sem Fronteiras, 2022). Beattie, Eroukhmanoff e Head (2019) salientam precisamente esse fator emocional na política internacional ao dizerem que as emoções possuem mais força quando são compartilhadas por outras pessoas. Consequentemente, segundo as autoras, as reações advindas dessa emoção compartilhada podem tomar proporções cada vez maiores, pois dão força para uma reação contra aquilo que incomoda.

A vulnerabilidade, nesse sentido, é o principal sentimento a chamar atenção dentro da dinâmica interna de um campo de refugiados, pois ela pode gerar insegurança e violência (Loescher e Milner, 2004). O termo aqui utilizado parte da definição de Francesco Rossi (2020) de que a vulnerabilidade é resultado de uma situação de fragilidade e marginalização no contexto das relações sociais, econômicas, afetivas, religiosas e ideológicas enfraquecidas, cujas consequências podem ser de naturezas e intensidades diversas a depender do ambiente. Sendo assim, o contexto em que esta situação se desenrola importa, sobretudo se há uma presença de longo prazo de um campo em uma localidade, porque isso propicia a oportunidade para o aumento das fontes de instabilidade (Loescher e Milner, 2004). Por isso, segundo Rossi (2020), nesses casos mais prolongados de vulnerabilidade pode ocorrer o que ele chama de “anulação do indivíduo”, em que não existe mais o pensar por si do indivíduo e a tentativa de superação psicológica desta condição ocorre com a absorção completa do estilo de vida predominante naquele ambiente.

CAMPOS DE REFUGIADOS COMO ESPAÇOS DE VULNERABILIDADE: CAMPO DE AL-HOL E A PERPETUAÇÃO DO CAOS

Estado Islâmico e o Surgimento do Campo de Al-Hol

Para melhor entender a situação urgente deste campo, é necessário olhar brevemente para a história do causador de toda esta situação, o Estado Islâmico, e entender como o campo de Al-Hol foi formado ao longo do combate contra o grupo.

Estado Islâmico foi uma organização que mudou o Oriente Médio em razão da sua dinâmica administrativa, de recrutamento e atuação local e global (Napoleoni, 2016; Cockburn, 2015). O grupo extremista islâmico privilegiou uma estratégia de fixação no território entre a Síria e o Iraque como uma forma de manter sempre uma base para suas operações, como, por exemplo, atacar os yazidis no Iraque ou perseguir minorias religiosas (Napoleoni, 2016). Dessa forma, agiria de maneira diferente do que fazia Al-Qaeda, que agia de maneira mais descentralizada territorialmente. O grupo sob a liderança de Abu Bakr al-Bagdadi adquiria seu êxito na esteira de uma série de movimentos derivados da Al-Qaeda que passaram a ter mais relevância após a morte de Osama Bin Laden, em 2011 (Cockburn, 2015). Pois originalmente o Estado Islâmico é uma filial da Al-Qaeda surgida em meados de 2004 sob a liderança de Al-Zarqawi (Cockburn, 2015; Napoleoni, 2016).

No mesmo ano de 2013, o Estado Islâmico do Iraque penetrou na guerra civil síria e adquiriu força lutando contra as forças do governo de Assad, focando especialmente nos sunitas presentes nas rebeliões sírias. A partir de então, foi estendendo sua relevância no território sírio (Thiollet, 2016). No início de 2014, eles tomam Fallujah. Alguns meses depois, tomam Mosul e Tikrit, proclamando o califado em junho e tornando-se o Estado Islâmico da Síria e do Iraque (Cockburn, 2015). 

Entre agosto e setembro de 2014, os EUA anunciam a formação de uma coalizão global para enfrentar essa nova entidade no Oriente Médio. A partir deste momento, a dificuldade de manutenção territorial do Estado Islâmico foi imensa. Segundo Azevedo (2020), entre 2015-2017 diversos territórios no Iraque foram retomados, em partes da Síria, inclusive a capital do califado, Raqqa, foi derrotada. Até o final de 2018, 95% do território do Estado Islâmico havia sido superado, sobrando essencialmente somente Baghouz (Azevedo, 2020). Região esta que foi recapturada em março de 2019, dando fim aos territórios do califado do Estado Islâmico.

O campo de deslocados internos de Al-Hol surgiu oficialmente como um campo de refugiados durante a Guerra do Golfo em 1991, sob o auspício das Nações Unidas, e foi expandido em 2003 após a invasão dos EUA (Saad, 2020; Khani, 2020). No início a capacidade era por volta de 15 mil pessoas. Após as expansões, a capacidade máxima gira em torno de 40 mil (Azevedo, 2020). Segundo Saad (2020), o número era de aproximadamente 73 mil pessoas em maio de 2019. Em 2022, o número aproximado após algumas repatriações, mortes e liberações é de 53 mil, segundo Médicos Sem Fronteiras (Médicos Sem Fronteiras, 2022). Mesmo com as imprecisões sobre a quantidade oficial, é possível ter dimensão de quão forte foi a movimentação populacional dentro do campo e quão urgente é buscar uma resolução para o problema, especialmente tendo em vista a presença descentralizada do Estado Islâmico.

Entre março de 2019 e março de 2020, ocorreram mais de 2000 ataques em diversas áreas da Síria e do Iraque, entre as regiões mais afetadas estão Deir Al-Zor, na Síria, com 580 ataques e Diyala, no Iraque, com 452 (Azevedo, 2020). Isso mostra a intensa presença intensa dos remanescentes do Estado Islâmico nos dois países, principalmente em regiões fronteiriças e no norte da Síria. Somado a esse fator, existe a precariedade de segurança e infraestrutura do campo. 

A Vulnerabilidade como Arma do Extremismo

Segundo Vera Mironova (2020), o campo nem sempre foi tão instável, pois quando ele foi reaberto definitivamente depois da vitória sobre os territórios iraquianos em meados de 2017, a população era fundamentalmente de civis sem ligação com o Estado Islâmico. Nesse período, aponta a autora, houve uma pacificação e tratamento para essas pessoas, porém tudo mudou com a chegada em 2019 dos sobreviventes do Estado Islâmico que misturaram-se com a população comum. Por consequência, houve a necessidade de modificar a dinâmica interna do local. Segundo Khani (2020), o campo foi dividido em uma área com sírios e iraquianos e outra somente com os estrangeiros que faziam parte das fileiras do Estado Islâmico, que é chamado de Anexo. Levando em conta somente este último grupo, há aproximadamente 43 mil pessoas de um total de 60 países, de acordo com relatório da Humans Rights Watch (2023). A partir desse momento gerou-se um clima de desconfiança constante dentro campo, que era permeado por uma situação estrutural debilitada, já que o trabalho humanitário era precário e ameaçado por aqueles ainda ligados ao Estado Islâmico, além de haver preconceito por parte dos guardas curdos (Médicos Sem Fronteiras, 2022). A violência também aumentou exponencialmente. Segundo relatório do Médicos Sem Fronteiras (2022), somente em 2021 o número de mortes causadas por crimes era de 38% e deste número, 35% eram crianças. Além disso, a insegurança alimentar também era grande, pois dentre 9 mil consultas entre maio e julho de 2019 no campo de Al-Hol 50% era por conta de diarreia aguda, enquanto a outra metade era sobre desnutrição, desidratação ou doenças relacionadas ao mau tratamento da água (Saad, 2020).

Todas essas questões são exacerbadas por uma limitada administração. Segundo Azevedo (2020), existem por volta de 300-400 soldados curdos para monitorar todo o campo, que é um número insuficiente frente a um local altamente povoado. Isso levou inclusive a diversos conflitos internos e o desejo da liderança do campo de liberar pelo menos 25 mil iraquianos para aliviar a manutenção, mantendo somente aqueles mais perigosos (Kahan, 2020). Esses eventos são consequência de uma vigilância frágil numericamente e em recursos, porque além das brigas, é frequente o aparecimento de combatentes do Estado Islâmico para entregar dinheiro e suprimento às mulheres presentes no campo (Mironova, 2020). 

O intuito dessa aproximação é disseminar a ideologia do Estado Islâmico para os mais jovens, que são vistos como parte do futuro ressurgimento do grupo (Azevedo, 2020). Segundo Médicos Sem Fronteiras (2022), diversas mães não-filiadas ao Estado Islâmico estão preocupadas com essa nova geração que vem formando-se no campo, pois muitos deles cresceram cercados pelas grades de Al-Hol, sem educação, tecnologia e perspectiva de futuro. Como ressalta Kahan (2020), é precisamente nesses mais vulneráveis, sem rumo e desesperançados que o Estado Islâmico tem como seus alvos primários, já que entendem que foram abandonados por seus governos e não possuem qualquer expectativa de vida. Foi dessa maneira que o Estado Islâmico insurgiu e ganhou proeminência na Síria e Iraque: aproveitando-se do caos social e ódio contra o governo local para espalharem suas ideias (Cockburn, 2015).

Esta vulnerabilidade é incrementada pela alta presença de jovens em Al-Hol, principalmente estrangeiras, que são aqueles mais expostos ao caos humanitário presente no campo. Pois o tempo prolongado em um mesmo campo e com pouca perspectiva de resolução da sua condição causa uma vinculação profunda com aquele local, sendo nele o local onde vão sendo formadas as relações sociais e o reconhecimento por parte do outro, o que dificulta a separação do indivíduo do campo em que vive mesmo que as condições sejam adversas (Sigona, 2014). Por isso Oesch (2017) descreve que a situação prolongada em um mesmo campo gera uma ambiguidade na formação do indivíduo, já que a realidade conhecida é somente uma, mas, ao mesmo tempo, há o desejo de sair. Ao olhar para Al-Hol, há casos em que as crianças cresceram naquela localidade e a formação da sua identidade é totalmente fundamentada por aquele ambiente (Médicos Sem Fronteiras, 2022). 

De acordo com Francesco Rossi (2020), a exposição de indivíduos a essas situações altamente instáveis propicia a brecha necessária para que o grupos extremistas abordem essas pessoas e surjam como os salvadores daquela situação de vulnerabilidade. Sendo assim, há um risco cada vez maior de exposição a ideologia extremista do Estado Islâmico. Pois quanto mais tempo passa-se sem uma resolução para um evento que era visto como temporário e paliativo, como é o caso de um campo de refugiados e de deslocados internos, os indivíduos passam a pensar em uma possibilidade de vida dentro uma organização que propõe o reconhecimento oficial que essas pessoas tanto desejam, o que fortalece a existência do Estado Islâmico e o risco de futuros atentados (García-Calvo, 2022).

Diante do caos humanitário e limbo jurídico vivido por muitas mulheres e crianças neste ambiente, o Estado Islâmico é a fonte de sobrevivência de muitas dessas pessoas. Como aponta Mironova (2020), muitas mulheres aliam-se ao Estado Islâmico não tanto por uma convicção ideológica ou religiosa, mas por serem eles os auxiliadores para aliviarem o sentimento de vulnerabilidade. Além disso, essas mesmas mulheres tornara-se peças essenciais para perpetrar a ideologia do Estado Islâmico para crianças. Além disso, a divisão do campo entre os locais e os estrangeiros desenvolveu antagonismos internos ao permitir que o Estado Islâmico abordasse e inculcasse seus ideais sobre determinados grupos, disseminando ainda mais restrições de pensamento e ação dentro do campo de Al-Hol (Khani, 2020).

Por conta da exposição ao que prega o grupo extremista islâmico através desse contato frequente com essas pessoas vulneráveis, a chance de tornar-se um adepto é real. Isso leva ao que chama Rossi (2020) de “vulnerabilidade de entrada” e “vulnerabilidade de saída”. O primeiro sendo o momento entidade terrorista aborda a fragilidade daquele indivíduo, suprimindo o que falta naquele momento. O segundo termo, por sua vez, seria a influência do ambiente que circunda aquele indivíduo, que cria a repulsa a tudo que é diferente daquela realidade vivida por aquela pessoa e faz com que esses indivíduos redirecionem essa agressividade contra o outro. Dentro de um campo isso é ainda mais proeminente, pois o campo molda a subjetividade do indivíduo por ser o tipo de mundo que aquelas pessoas estão acostumadas a viver (Oesch, 2017). Pois a cidadania do indivíduo já não é mais vista como aquela ligada ao Estado-nação, mas ao campo em que está vinculado (Sigona, (2014). Consequentemente, há uma miríade de emoções, sentimentos e frustrações divididas entre seus membros. Como salientou Beattie, Eroukhmanoff e Head (2019), emoções tomam formas mais fortes quando são compartilhadas, por isso não podem ser ignoradas como fator de propulsão para uma revolta.

Conclusão

Após o último pronunciamento oficial de Abu Bakr al-Baghdadi em setembro de 2019 declarando que havia necessidade de libertar as mulheres e crianças presas nos campos de deslocados internos na Síria, a presença do Estado Islâmico foi constatada como uma ameaça real dentro do local que foi transformado em reduto dos remanescentes da batalha de Baghouz (Kahan, 2020). Por isso, olhar para a dinâmica do campo de Al-Hol torna-se relevante, por ser o campo mais povoado em território sírio e os seus membros estão em situação de vulnerabilidade e fragilidade física e emocional profunda, desde antes do fim territorial do Estado Islâmico. 

Diante desse cenário, analisar a fragmentação e vulnerabilidade vivida por esses grupos dentro do campo se torna fundamental para que haja uma resposta apropriada ao sofrimento vivido por milhares de pessoas dentro dessa localidade, especialmente os estrangeiros, que não tem para onde ir devido ao esquecimento por parte de seus países de origem.

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