Não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio
FREIRE, [1967] 1997, p. 35
No ano de 2021, celebrou-se o centenário de Paulo Freire, sendo possível perceber que seus estudos e considerações acerca da educação se fazem ainda atuais. O livro ‘Educação como prática da liberdade’ escrito pelo educador e filósofo brasileiro, representa um marco para a educação brasileira. Se trata de uma obra na qual o autor, discorre sobre as suas principais ideias e problematiza a educação brasileira. Para que possamos melhor compreender a sua temática e seus desdobramentos, é necessário entender quem é o seu autor, suas aspirações enquanto sujeito e trajetória, bem como, traçar o contexto histórico na qual a mesma é concebida
Paulo Freire nasceu em 1921, na cidade do Recife, Pernambuco. Vindo de família pautada nos preceitos cristãos e de origem humilde, Paulo e seus irmãos sofreram não apenas emocionalmente, mas também financeiramente com a morte prematura do pai e, logo em seguida, com a grandiosa crise de 1929. Mesmo enfrentando grandes dificuldades financeiras, sua mãe se empenhou em encontrar uma boa escola para os filhos e é nesse momento, após obter êxito na procura, que Paulo dá os seus primeiros passos rumo a se tornar um dos maiores intelectuais de todos os tempos. Nessa mesma escola, alguns anos mais tarde, o filósofo é contratado como professor de Língua Portuguesa e, a partir daí, carregará consigo a preocupação com a linguagem, educação e com as classes socialmente desfavorecidas.
A obra em questão, conta com a apresentação de Pierre Furter, filósofo suíço. Furter aponta que a filosofia de ensino freiriana é pautada na dialogicidade, na troca de conhecimentos e na liberdade. Para Freire, educador não é um mero reprodutor de conhecimento, mas um sujeito que auxiliará o educando, por meio de teoria e práxis, a se emancipar da marginalidade social.
O livro é escrito durante o primeiro ano de exílio de Paulo, mas chega ao Brasil dois anos depois, em 1967. É publicado então pela editora Paz e Terra. Ele conta com 123 páginas, sendo elas dividas em: uma apresentação, uma introdução e quatro capítulos.
A introdução escrita pelo importante cientista político brasileiro Francisco Correia Weffort denominada “Educação e Política”, também marca as linhas mais importantes do pensamento freiriano contextualizando a obra no tempo e no espaço. O estudioso afirma que a indissociabilidade entre educação e política, a construção de uma educação democrática, dialógica, libertadora e crítica, se configuram como o eixo central da obra de Paulo Freire. Além disso, Weffort faz uma importante relação entre o momento histórico e a vivência de Freire.
Ao longo de sua trajetória enquanto professor, Paulo se dá conta não apenas da ineficácia do sistema educacional brasileiro, mas também do escasso acesso que a classe trabalhadora tinha às escolas. É nesse contexto de descobertas, problematização e incômodo, que o filósofo busca soluções para o cenário educacional do país e implanta o seu método de alfabetização em massa que, por sua vez, tinha como objetivo propiciar aos sujeitos mais pobres, acesso não somente às letras, mas ao entendimento da situação de miséria e opressão em que estavam inseridos, a saber:
Desde logo, pensávamos a alfabetização do homem brasileiro, em posição de tomada de consciência, na emersão que fizera no processo de nossa realidade. Num trabalho com que tentássemos a promoção da ingenuidade em criticidade, ao mesmo tempo em que alfabetizássemos. Pensávamos numa alfabetização direta e realmente ligada à democratização da cultura, que fosse uma introdução a esta democratização.
FREIRE, [1967], 1997: 103, 104
Para Freire, a educação não pode ser neutra ou isenta de posicionamentos, ela é necessariamente política e deve ter como função, a orientação do seu sujeito para uma concepção crítica de mundo, que contribua com a sua formação e permita que ele seja livre em suas escolhas e não parte constituinte da massa de manobra útil aos interesses das elites. A partir da criticidade do sujeito, é que a democracia pode ser alcançada de fato.
É nítido que o grande objetivo de Freire, era o de que todos os cidadãos fossem livres e que participassem ativamente das questões políticas e sociais de sua nação. Para isso, a escola tradicional deveria ser substituída pelo que o autor chama de ‘círculos de cultura’, espaço onde a formação consciente e crítica pudesse ser alcançada. Ainda na introdução, Weffort nos fala sobre eles:
Nos círculos de cultura, o aprendizado ou a discussão das noções de “trabalho” e “cultura” jamais se separa de uma tomada de consciência, pois se realiza no próprio processo desta tomada de consciência. E esta conscientização muitas vezes significa o começo da busca de uma posição de luta.
FREIRE, [1967], 1997. P. 8
A partir dessa crença, o educador executa o seu primeiro plano de ação rumo ao seu ideal de alfabetização crítica e libertadora. Em 45 dias cerca de 300 trabalhadores foram alfabetizados por Freire e sua equipe de professores na pequena cidade de Angicos, situada no Rio Grande do Norte, onde o nível de analfabetismo era alarmante. Todavia, é inquestionável que tal ação resultaria na desaprovação das elites dominantes que sempre temeram o levante das massas.
O Brasil, carrega em sua história, a constante tentativa de apagamento das vozes constituintes de sua camada popular. Entretanto, a pedagogia de Paulo Freire, abriu espaço para que o movimento popular ganhasse força e fosse ouvido pela classe dominante. As práticas políticas do educador e seu projeto de alfabetização em massa, contribuíram para o empoderamento da massa popular.
A admirável coragem em defender esse tipo de educação, torna Paulo um dos primeiros exilados durante a ditadura militar. Visto como um subversor e doutrinador da educação (mesmo que seus ideais fossem anti-doutrinários), no ano de 1964, ele é preso e parte para exílio no Chile onde, como já mencionado, concebe a obra aqui discutida.
Após a importante introdução de Francisco C. Weffort, seguem os 4 capítulos do livro. O primeiro, ‘A Sociedade em Transição’, contextualiza o leitor sobre o momento de travessia política que o país vivia. Na sequência, o capítulo 2 ‘Sociedade Fechada e Inexperiência Democrática’, Paulo denuncia a falta de vivência do povo brasileiro em assuntos como política e democracia sendo ainda um mero reprodutor de um comportamento pautado em sua experiência como colônia. O capítulo 3, ‘Educação Versus Massificação’, Freire compara esses dois conceitos e argumenta como o fator educacional interfere diretamente na forma como os educandos se relacionarão com as questões sociais e políticas posteriormente. O último capítulo, ‘Educação e Conscientização’, resume o que Paulo Freire compreende ser o ideal dentro do campo educacional, reforçando a importância da perspectiva crítica nos processos de ensino-aprendizagem.
Na parte um do exemplar, Freire expõe que o período que antecedeu a proposta e implantação de seu movimento de educação popular, foi um momento no qual o país se encontrava em “trânsito”, ou seja, “vivia o Brasil, exatamente, a passagem de uma para outra época” (FREIRE, [1967], 1997, p. 46). Se antes o Brasil era amplamente dominado por uma pequena elite detentora do poder, que se utilizava do povo em busca de atingir seus interesses, agora, com a crescente industrialização, parecia haver espaço para questionamentos e mudanças, mesmo que de forma ainda muito pequena. Nessa “sociedade fechada”, escravocrata, patriarcal, latifundiária e violenta a classe popular e não letrada, era apartada das decisões políticas e foi, para ela que Paulo dedicou todo o esforço de seu trabalho ao longo dos anos.
Desta forma, o autor nos apresenta a necessidade de humanização. A partir desse importante conceito presente na obra de Freire, é possível compreender que o momento histórico era excludente, segregador e que uma sociedade mais justa deve se valer da liberdade individual do homem. Deve ser garantido a todos eles a possibilidade de desenvolvimento de sua capacidade crítica e integrativa, caso contrário, há a desumanização e a completa incapacidade de mudança de realidade, em outras palavras, era exatamente isso que acontecia com as massas populares do país. A luta de Freire, não era apenas pela alfabetização, mas era também pela garantia de uma sociedade democrática para esses sujeitos que se encontravam à margem do sistema.
No capítulo seguinte, “Sociedade Fechada e Inexperiência Democrática”, Freire analisa as condições estruturais da formação histórico-social brasileira e nos revela a “inexperiência democrática” vivida em território nacional desde a época da colonização. Apesar de ter deixado de ser colônia, o Brasil não rompeu com os seus ideais e seu povo continuou se comportando como tal. A elite afastou do povo o esclarecimento político e a educação para domina-lo. Num lugar onde não há povo consciente de sua dominação, há massificação e exploração.
Foi essa burguesia dominadora e excludente que organizou o golpe que o Brasil sofreu em 1964 e que tornou a sociedade intransitiva e fechada outra vez, tirando Paulo Freire e seu projeto de alfabetização de cena. Tudo que pudesse comprometer a manutenção dos privilégios dessa elite opressora, foi duramente apagado por mortes, torturas e exílio como já mencionado anteriormente. Nessa sociedade, não havia espaço para democracia.
No terceiro capítulo de seu livro, ‘Educação Versus Massificação’, Paulo busca encontrar modos de romper com a dominação e, principalmente, propiciar ao povo brasileiro uma educação libertária, política, dialógica, participativa e crítica. Para que esse objetivo fosse atingido, Freire aponta que o conteúdo programático desta nova educação deveria ser pautado na não neutralidade e na não doutrinação. A conscientização do sujeito como parte ativa e determinante de sua realidade é fundamental nesse novo modelo. O homem precisa estar inserido em todos os processos educacionais e políticos que o cercam pois, somente assim, ele poderá atingir a sua autonomia.
No último capítulo, ‘Educação e Conscientização’, o autor nos traz relatos do que foi o seu método de alfabetização popular para adultos. Para Paulo Freire, a educação para adultos, não deve partir das letras do alfabeto, mas de sua conscientização de sujeito parte do mundo. Essa percepção, o torna consciente de sua relevância na sociedade e de como está nele a capacidade de transformação e mudanças, ou seja, há a recuperação de sua autoestima e o rompimento com a ideia de que as classes menos favorecidas não podem conquistar, por meio de sua educação e trabalho, espaços melhores dentro da sociedade.
O autor nos aponta que na década de 1960, os números de crianças sem escola e analfabetos eram alarmantes no Brasil. Sendo assim, ele propõe uma crítica ao sistema educacional vigente e propunha como alternativa, o que ele chama de ‘círculos de cultura’, espaços onde haveria diálogo, mediação de debates, troca de conhecimentos e de relação horizontal entre os seus participantes. Fica claro que a pedagogia freiriana, pode ser compreendida como uma pedagogia da democracia, do diálogo e da horizontalidade das relações entre educador e educando.
Ao final de livro, fundamentado nesses conceitos acima mencionados, Paulo chama a atenção para a sua metodologia de educação. Os educadores faziam o levantamento do universo vocabular dos educandos, ou seja, cada um trazia palavras que caracterizam seu mundo e elas se tornaram a base de sua alfabetização. Estas palavras ficaram conhecidas como ‘palavras geradoras’.
Esta metodologia partia de situações reais da vida das pessoas, por meio de cartazes, cartolinas, pinturas que, por sua vez, não vinham com palavras, apenas com alguma situação retratada. A partir dessas situações existenciais de seu cotidiano, gerava-se a problematização e dessa discussão, eles analisavam as palavras, que eram divididas em sílabas e partir disso se dava a alfabetização crítica e libertária.
O livro pode ser lido por todos aqueles que buscam entender como a educação pode contribuir com o real desenvolvimento de povos e nações. Professores e educandos podem se valer desta obra para refletir sobre suas práticas e sobre como é necessário e indispensável tornar-se consciente dentro do sistema opressor em que vivemos pois, só assim, poderemos avançar de fato rumo à uma sociedade mais justa para todos.
Ficha técnica da obra:
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade
Ano de Publicação: 1967
Editora: Paz & Terra; 50ª edição (19 novembro 2019)
Idioma: Português
Capa comum: 192 páginas
ISBN-10: 8577534235
ISBN-13: 978-8577534234