Com a fundação da Organização das Nações Unidas em 1945, criaram-se também mecanismos e estruturas para proteção e defesa de pessoas vulneráveis, entre as quais destacam-se pessoas que, forçadamente ou não, deslocam-se de seus locais de origem para outros países. Nas últimas décadas, com a intensificação de conflitos nacionais e internacionais de grandes proporções, vimos surgir também o uso constante do termo “crise dos refugiados” para se referir ao movimento de quase 90 milhões de pessoas que foram forçadas a fugir de seus países de origem, por medo de perseguições, violência, a até efeitos de mudanças climáticas (ACNUR, 2020).
Com a Convenção da ONU de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados, cria-se a primeira definição do termo, que veio seguida de outras declarações e estatutos referentes ao tema e que tinham como objetivo estabelecer princípios legais e definir os direitos dos refugiados e os deveres dos Estados em relação a eles. Com o objetivo de definir os encargos e responsabilidades entre os países com relação a esse movimento constante de pessoas, em 2016, chefes de Estado se reuniram nos Estados Unidos para a assinatura da Declaração de Nova York para Refugiados e Migrantes, com compromissos e posturas a serem assumidos visando uma maior cooperação em grande escala entre os Estados para lidar com o enorme fluxo de pessoas se deslocando pelo mundo, grande parte delas contra suas vontades.
Contexto global
Embora muitas vezes utilizados como sinônimos, os termos refugiados e migrantes carregam diferenças importantes, principalmente no que diz respeito ao tratamento que elas recebem dos Estados e Organizações Internacionais. De acordo com a definição da Agência para Refugiados da Organização das Nações Unidas, refugiados são pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados (ACNUR, 2021).
Ao serem acolhidos por um país, os refugiados têm a garantia no direito internacional de que não poderão “ser expulsos ou devolvidos a situações em que sua vida e liberdade estejam em perigo” (ONU, 2018). Já o termo migrante se refere às pessoas que “escolhem se deslocar não por causa de uma ameaça direta de perseguição ou morte, mas principalmente para melhorar sua vida em busca de trabalho ou educação, por reunião familiar ou por outras razões” (ACNUR, 2015). Ao contrário dos refugiados, os migrantes podem retornar a seu país de origem e permanecem recebendo a proteção de seu governo.
Com relação à situação dos migrantes, a Declaração tem por objetivo criar “uma abordagem cooperativa para otimizar os benefícios gerais da migração, além de mitigar seus riscos e desafios para indivíduos e comunidades nos países de origem, de trânsito e de destino” (ONU, 2018). De acordo com um relatório de 2019, feito pela Organização Internacional para Migrações (OIM), estima-se que haja em torno de 272 milhões de migrantes internacionais no mundo, correspondendo a aproximadamente 3,5% da população mundial (OIM, 2019)
Já no que tange a questão dos refugiados, de acordo com a Agência para Refugiados da Organização das Nações Unidas, até o final de 2020, em torno de 8,4 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar por conta de conflitos, perseguição, fome, violação de direitos humanos, entre outros motivos. A figura 1 (abaixo) mostra um gráfico elaborado pela ACNUR, demonstra a evolução do número de refugiados desde a década de 1990.
Também de acordo com a ACNUR, cerca de 68% dos refugiados vieram principalmente de cinco países: Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar. Entre os países que mais acolheram refugiados estão Turquia, Colômbia, Paquistão, Uganda e Alemanha, sendo os quatro primeiros devido à sua proximidade dos locais mais afetados por conflitos, e outras causas (ACNUR, 2021). Com números nunca vistos de pessoas sendo forçadas a sair de países, no que muitos chamam de “crise dos refugiados”, deve-se atentar às necessidades primárias que a maior parte dessas pessoas não têm acesso, como água potável, comida, abrigo, segurança pessoal e serviços de saúde.
Além da situação de vulnerabilidade em que se encontram a maioria dos refugiados, outro problema que a Declaração de Nova York busca mitigar é a distribuição de recursos para os países que mais recebem essas pessoas. Aproximadamente 85% dos refugiados no mundo vivem em países em desenvolvimento, o que por muitas vezes agrava as condições econômicas e sociais já difíceis que esses países se encontram (ONU, 2018).
O que diz a Declaração?
A Declaração, adotada por todos os 193 países-membros da ONU, apresenta inicialmente compromissos gerais que atendem aos interesses tanto dos migrantes quanto dos refugiados. Todos os pontos baseiam-se no respeito aos direitos humanos, incluindo o repúdio a manifestações raciais e xenofóbicas e também o reconhecimento da maior vulnerabilidade de certos grupos, como o das mulheres e das crianças (ONU, 2016).
O documento abrange todos os passos seguidos por essas pessoas, desde a condição do país de origem até os direitos como imigrante ou refugiado no país de acolhimento e a possibilidade de retorno futuramente. Portanto, para que todos os objetivos sejam atingidos, há uma notável concordância sobre a necessidade da cooperação entre todos: os governos nacionais, a sociedade civil, as instituições privadas e outros órgãos internacionais, como o Banco Mundial (ONU, 2016).
Alguma medidas propostas são voltadas a diminuição dos riscos que essas pessoas correm ao transitar pelos lugares, uma vez que elas estão mais sujeitas a situações discriminatórias e de exploração, como casos de tráfico humano, trabalho escravo, abuso sexual, físico e pscicológico. Já nas próprias fronteiras dos países de destino, existe uma certa preocupação sobre as condições tanto sanitárias quanto burocráticas dos migrantes. Assim, especialmente para os casos de refugiados, recomenda-se a rápida identificação e documentação dos migrantes logo no momento de chegada desses, além da coleta de informações sobre as demandas e da providência de assistência devida, como acesso a abrigo, água, comida, etc (ONU, 2016).
Tanto para os migrantes quanto para os refugiados, é proposta a expansão do número de opções para a admissão legal e de regulamentação nos países de destino. Sempre em respeito ao princípio da soberania das nações, esperam-se acordos que reconheçam e facilitem o processo para certas nacionalidades envolvidas em fluxos migratórios mais intensos. Antes disso, torna-se relevante o auxílio da comunidade internacional na promoção de certas medidas preventivas nos países de origem. Essas medidas poderiam amenizar as condições precárias referentes à falta de acesso à educação, saúde e saneamento básico, que em muitos casos representam a razão da emigração (ONU, 2016).
Em relação a providências mais específicas, a Declaração de Nova York indica a formação de dois pactos globais, sendo: (i) o Pacto Global sobre Refugiados, que dependeu da criação do Marco Integral de Resposta aos Refugiados, e que possui quatro objetivos principais: (a) redução da pressão em países de acolhimento; (b) aumento da autossuficiência dos refugiados; (c) expansão do acesso à soluções de países terceiros; e (d) o auxílio para melhores condições nos países de origem, visando um possível retorno com segurança e dignidade. Além dos pontos apresentados anteriormente sobre as condições da jornada e o processo de regulamentação, o Pacto Global de Migração Segura, Ordenada e Regular aborda a ideia de que a migração deveria ser uma escolha e não uma necessidade.
É mencionada a grande quantidade de jovens que chegam em países como mão de obra, com habilidades diferentes. Esse fato representa ao mesmo tempo uma adição de novas habilidades no mercado de trabalho, contribuindo com o dinamismo das economias dos países acolhedores, e representa também uma perda para os países de origem desses migrantes.
No Brasil
O Pacto Global de Migração foi firmado em dezembro de 2018 por 164 países, incluindo o Brasil. Já em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro retirou o país do Pacto, apontando a defesa da soberania de cada país como justificativa. Todavia, a saída do Brasil representa a privação do país de participar dos debates e tomadas de decisão que interessam a muitos brasileiros, visto que há uma grande quantidade de nacionais residindo no exterior.
Porém, em relação às normas vigentes no país, a Lei de Migração de 2017, que substituiu o Estatuto do Estrangeiro de 1980, propõe uma visão mais próxima ao estipulado pela Declaração de Nova York. A lei é norteada pela proteção dos direitos humanos, a não criminalização da migração, a inclusão social, laboral e produtiva do migrante e outras questões que favorecem a regulamentação da condição específica do imigrante e auxiliam no processo de integração como parte da sociedade brasileira.
Além disso, foram identificadas várias ações favoráveis aos princípios da Declaração. Um dos dados mais importante refere-se a quantidade de aceitações das solicitações de refugiados – somente em 2020 mais de 26 mil pessoas foram reconhecidas, sendo a maioria da Venezuela (ACNUR, 2021).
A partir da Operação Acolhida, obteve-se também resultados bem positivos quanto a questão de interiorização desses refugiados, com mais de 50 mil pessoas beneficiadas desde sua criação em 2018. Esse tipo de atuação contribui com o avanço de diversos fatores, como minimizar “o impacto sobre os serviços e infraestruturas públicas na região” (ACNUR, 2021), principalmente em Roraima e na cidade de Manaus, e facilitar o acesso aos refugiados a mais oportunidades de emprego.
Considerações Finais
Embora existam muitos mecanismos de atuação e auxílio, não só das organizações internacionais, mas também de Estados individualmente, as pessoas que saem de seus países em busca de melhores condições de vida, voluntariamente ou não, podem notar que ainda estamos longe de um cenário ideal. Imagens e relatos sobre pessoas que perderam suas vidas ao se arriscarem por caminhos tortuosos para chegar a certos países ainda são constantes, assim como dados sobre a falta de oportunidades em relação à entrada nesses países de destino e às circunstâncias instáveis vivenciadas nesses lugares, demonstrando as condições extremamente precárias de todo o processo.
Iniciativas como a Declaração de Nova York representam movimentos necessários para que possamos conquistar melhores condições para os migrantes e os refugiados. Assim, esse documento, que expõe a importância da participação de todos os atores, nacionais e internacionais, serve como um guia para lidar com esse assunto tão urgente.
Referências
ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Dados sobre Refúgio. 2021. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/. Acesso em: 23 de setembro de 2021.
ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Dados sobre Refúgio no Brasil. 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/dados -sobre-refugio-no-brasil/>. Acesso em: 23 de setembro de 2021.
ACNUR – ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Interiorização beneficia mais de 50 mil refugiados e migrantes da Venezuela no Brasil. 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2021/04/20/interiorizacao-beneficia-mais-de-50-mil-refugiados-e-migrantes-da-venezuela-no-brasil/>. Acesso em: 23 de setembro de 2021.
ACNUR BRASIL – ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Refugiados. 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/ quem-ajudamos/refugiados/>. Acesso em 18 de setembro de 2021.
ACNUR BRASIL – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Refugiado ou Migrante? ACNUR incentiva a usar o termo correto. 2015. Disponível em <https://www.acnur.org/portugues/2015/10/01/refugiado-ou-migrante-o-acnur-incentiva-a-usar-o-termo-correto/>. Acesso em 18 de setembro de 2021.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em: <http://www.planalto .gov.br /ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 23 de setembro de 2021
FELLET, João. Em comunicado a diplomatas, governo Bolsonaro confirma saída de pacto de migração da ONU. BBC Brasil, São Paulo, 8 janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46802258>. Acesso em 23 de setembro de 2021.
ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração de Nova York. Organização das Nações Unidas. 2016. Disponível em <https://www.un.org/en/ga/search/view _doc.asp?symbol=A/RES/71/1>. Acesso em 20 de setembro de 2021.
ONU – Organização das Nações Unidas. Saiba tudo sobre o Pacto Global para Migração. 2018. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2018/12/1650601>. Acesso em 18 de setembro de 2021.
ONU – Organização das Nações Unidas. Pacto Global sobre os Refugiados: Em que aspecto é diferente do pacto dos migrantes e como ajuda as pessoas forçadas a fugir? Organização das Nações Unidas, 2018. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2018/12/1652121>. Acesso em 18 de setembro de 2021.
ORGANIZAÇÃO NACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES. Migrantes internacionais somam 272 milhões, 3,5 da população global, aponta relatório da OIM. 2019. Disponível em: <https://brazil.iom.int/news/migrantes-internacionais-somam-272-milh%C3%B5es-35- da-popula%C3%A7%C3%A3o-global-aponta-relat%C3%B3rio-da-oim>. Acesso em 19 de setembro de 2021.
UN REFUGEE AGENCY. Figures at a glance. 2020. Disponível em: <https://www.unhcr .org/figures-at-a-glance.html>. Acesso em 18 de setembro de 2021.