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Direito à Identidade Familiar: do Nome e o Combate à Marginalização da População Trans Direito à Identidade Familiar: do Nome e o Combate à Marginalização da População Trans

Direito à Identidade Familiar: do Nome e o Combate à Marginalização da População Trans

A pessoa trans desafia não somente os binários masculinos e femininos, como acaba por desafiar os binários de público e privado, relativos ao nome; o privado demanda a alteração do nome civil, engessado no sistema público registral brasileiro. Neste desafio, o apoio da família, célula mater da sociedade, é essencial, já que é o primeiro local de acolhimento da pessoa trans ou seu primeiro local de marginalização. Esta pesquisa buscou identificar a importância do nome, diante da doutrina, e o impacto causado pelo desrespeito ao nome escolhido das pessoas trans, por meio de uma pesquisa de campo, explorando a ideia do cuidado como um dever jurídico, à luz das atuais tendências jurisprudenciais. Por fim, explorou-se a responsabilização civil como um método de regulação do cuidado, tendo em vista o papel do Estado em evitar a dissolução do núcleo familiar. Com efeito, por meio de uma metodologia dedutiva, somada à uma análise quali-quantitativa dos dados obtidos, conclui-se que o cuidado, que inclui o respeito ao nome, possui grande potencial de transformação social. 

Introdução

Indivíduos cuja identidade de gênero extravasam o gênero atribuído no nascimento enfrentam um grande sentimento de incompatibilidade com seu nome e a carga social que ele carrega, ensejando constrangimentos e humilhações. Assim, este artigo visa analisar o direito ao nome das pessoas transgêneros como uma questão de direitos humanos, essencial para sua dignidade humana.

Além disso, pretende-se discutir a eficácia das duas principais soluções para a incongruência de nome no atual ordenamento jurídico brasileiro: a retificação do nome civil no assento registral e a inclusão do nome social, contextualizando o problema e entendendo as diferentes abordagens legais e sociais relacionadas ao nome das pessoas trans.

Outro objetivo desse trabalho é explorar o papel da família na aceitação e respeito à identidade de gênero da pessoa trans. A família desempenha um papel fundamental na construção da identidade pessoal dos indivíduos, e é crucial compreender como o respeito ao nome escolhido e à identidade de gênero pela família pode impactar positivamente o bem-estar e a qualidade de vida da pessoa trans.

Por fim, busca-se discutir o cuidado como uma obrigação jurídica, abordando a responsabilidade familiar no contexto da rejeição da identidade de gênero da pessoa trans e as consequências cíveis decorrentes dessa rejeição. A pesquisa será embasada na revisão bibliográfica das principais obras que discutem o nome civil e o direito de família, com destaque à autores como Rubens Limongi França, Maria Berenice Dias, Rolf Madaleno; na identificação e análise de legislação e precedentes jurisprudenciais pertinentes, com destaque ao julgamento da ADI nº 4.275 e na realização de pesquisa de campo, através de um questionário eletrônico anônimo, via a plataforma Google Forms, direcionado a membros da comunidade trans, que privilegia o método qualitativo. Assim, propõe-se preencher lacunas acadêmicas e contribuir para uma compreensão mais ampla dos direitos humanos das pessoas trans e dos desafios enfrentados por elas em busca de uma relação familiar saudável.

Alicerce Constitucional e Conceitos Básicos

Inicialmente, buscou-se estabelecer as bases constitucional e convencional que demarcam a importância do tema, bem como oferecem breves explicações acerca do conceito de transgênero e identidade. Em matéria constitucional, destaca-se o direito à dignidade (CF, art; 1°, §2°), acompanhado pelo direito à intimidade; à vida privada; à honra e à imagem (CF, art. 5°, X). Já em quesitos convencionais, sublinham-se dois documentos principais: o Pacto de São José da Costa Rica e os Princípios de Yogyakarta. 

Conforme o Preâmbulo dos Princípios de Yogyakarta, a identidade de gênero, que difere de orientação sexual, consiste na:

experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismos.

Logo, o termo “pessoa transgênero” descreve alguém cuja a identidade ou expressão de gênero não se conforma ao sexo atribuído a ela ao seu nascimento. Por uma questão de nomenclatura, esclarecemos que, em que pese a variedade de nomes que se referem à diversas expressões de gênero, o termo a ser utilizado neste trabalho será “pessoa transgênero” ou “pessoa trans”, pela sua amplitude. 

Do Nome Civil e sua Importância

O nome possui uma função eminentemente identificadora dentro do meio social, distinguindo uma pessoa, animal ou coisa, sendo seu designativo próprio e certo. Neste sentido, este artigo adota a definição elaborada por Rubens Limongi França, segundo o qual o nome civil é “a designação geral pela qual se identificam e distinguem as pessoas nas relações concernentes ao aspecto civil da sua vida jurídica” (França, 1964, p. 571). 

É pertinente notar que o nome civil possui uma dupla importância. Conforme Limongi (1964), refere-se tanto aos interesses particulares do titular quanto ao interesse público do Estado. Desdobra-se, assim, tanto como um direito quanto uma obrigação. 

Do ponto de vista privado, o nome civil revela-se o meio mais proeminente de concretização do bem da identidade, por meio do qual o sujeito afirma a própria individualidade, logrando diferenciar-se dos demais indivíduos: “é o direito à própria identidade, cristalizada através do nome” (França, 1964, p. 152).  

Assim,  o direito à identidade constitui o elo entre o indivíduo e a sociedade, tratando-se de um direito de cunho moral, que permite a individualização da pessoa ao mesmo tempo que evita confusão com outra (Bittar, 2015, p. 195). 

Já sob o ponto de vista público, o nome emana do “grande interesse que tem a sociedade em distinguir os seus diversos componentes, para deles poder exigir com eficácia as obrigações que respeitam a cada um, como tributo ordenado ao Bem Social” (França, 1964, p. 174). 

 É este aspecto que, sob uma interpretação extremada, costuma causar entraves à alteração do nome civil por parte de pessoas trans. O direito a um nome adquire-se com o assento regular no registro civil, e sendo o registro público regido pelos princípios da inalterabilidade relativa do registro civil e da imutabilidade do cadastro, a alteração do nome civil é algo difícil de ser realizado. 

Percebe-se a partir da revisão bibliográfica, que mesmo doutrinas contemporâneas mantêm um viés conservador, eminentemente transfóbico. De acordo com elas, a aplicação do princípio da dignidade humana e da autodeterminação não podem ser privilegiadas diante do princípio da segurança jurídica. Por exemplo, in verbis:

Dentre os caracteres do estado civil, reside o da imutabilidade. O sexo se configura como um elemento imutável do estado da pessoa. A definição do sexo ocorre com a concepção e qualquer mudança artificial, em uma clara tentativa de inverter a ordem natural do processo de definição do sexo, criaria uma situação disforme com a realidade (…) Ao se invocar o princípio da dignidade, simplesmente mutila-se outro princípio constitucional, que constitui o pilar do sistema jurídico: o princípio da segurança jurídica (…) O direito não pode conceder aquilo que a própria medicina ainda é incapaz. A possibilidade de modificação do estado civil pura e simples induziria em erro aquele que viesse a relacionar-se com a referida pessoa, sem a possibilidade de procriar. Admitir a retificação no assento civil quanto ao sexo significaria romper o pilar máximo de sustentação do sistema. Não se justifica abalar todo o sistema para propiciar a garantia de uma minoria em detrimento da maioria. Como alerta Menezes Cordeiro, há uma tendência dos juristas atuais a não enfrentarem as questões polêmicas e se confirmarem em escrever e defender opiniões dentro do ‘politicamente correto’, sem enfrentar o âmago da questão: ‘O desejo de agradar às minorias mais mobilizadas e a vontade de não querer parecer antiquado leva-os a não aprofundar os temas – isso independentemente das conclusões a que se chegue (Neto et al, 2019, p. 125). 

O trecho acima aborda algumas suposições de cunho preconceituoso: (i) a suposição de que sexo biológico equivale ao gênero, sendo ambos imutáveis; (ii) por ser imutável; a modificação do estado civil seria uma inverdade que induz terceiros ao erro; (iii) a retificação do assento civil é uma afronta ao sistema registral brasileiro; (iv) não se pode privilegiar uma minoria em detrimento da maioria, e juristas que assim o fazem estão cometendo ativismo político. Neste viés, o instituto do nome social não sana completamente as problemáticas acima expostas.

Direito à Identidade Familiar: do Nome e o Combate à Marginalização da População Trans

Do Nome Social

O nome social, introduzido ao ordenamento jurídico brasileiro, em 28 de abril de 2016, por meio do Decreto n° 8.727, consiste na designação pela qual “a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida” (art. 1°, parágrafo único, I).

Assim, dispondo o reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais, os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, em seus atos e procedimentos, deverão adotar o nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo com seu requerimento (art. 2°). 

Ainda, inova ao apresentar como exigência somente a manifestação, mediante requerimento escrito, de vontade da pessoa transgênera. Outrossim, para se usar o nome social, basta que o indivíduo se autorreconheça enquanto trans, e se identifique com o nome escolhido. Isto torna desnecessária qualquer documentação, como laudo médico ou psicológico, certidões, testemunhas, ou procedimentos de saúde, como cirurgias trans genitais ou tratamento de hormônios. Sem dúvida, são grandes passos para a despatologização e desburocratização da identidade transgênera, bem como sua inserção social.

Todavia, o instituto do nome social em si está longe de ser a única solução para a concretização do direito ao nome e à honra da comunidade trans. Isto pois, apesar de muitas entidades públicas, como universidades e ministérios, já terem editado regulamentos aprovando a utilização do “nome social”, a exclusão social permanece: 

uma estudante transexual terá seu nome feminino na chamada escolar, mas no mercado de trabalho e em todas as dimensões da vida terá que continuar se submetendo a todas as situações vexatórias e humilhantes e portar documentos em completa dissonância com suas performances de gênero (Bento, 2014, p 175). 

De fato, Berenice Bento (2014) destaca uma grande dissonância no modo como a identidade de gênero é historicamente tratada no Brasil. De um lado, há uma concepção de reconhecimento de gênero, em que cabe ao Estado somente reconhecer a autodeterminação do indivíduo (como acontece com os demais direitos da personalidade); e do outro, uma concepção de autorização de gênero, na qual cabe ao Estado autorizar, mediante uma análise de laudos médicos e psiquiátricos, a mudança de nome e marcadores no documento do sujeito.  

Há de se mencionar que, após o julgamento recente da ADI 4.275 pelo STF (que será discutido mais adiante), o processo de alteração de nome no registro civil adotou uma concepção de reconhecimento de gênero, impedindo que o cartório, por qualquer dos seus prepostos, solicite qualquer prova, seja médica, psicossocial ou documental que comprove o gênero com o qual a pessoa transgênero se identifica.

Portanto, o nome social desempenha a função essencial de normatizar o respeito à identidade de gênero nas micro interações cotidianas, porém, há de se ressaltar que ele não assegura às pessoas trans uma existência digna em todos os espaços e circunstâncias da vida. O nome social sempre será limitado pelas margens do enorme vácuo de leis que garantem a diversidade humana, mantendo assim a precariedade existencial das pessoas trans: entre a lei e as práticas cotidianas há um considerável espaço de contradições e violências (Bento, 2014, p. 176). 

O Julgamento da ADI 4.275 e seus Desdobramentos

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275, adotou-se uma interpretação ampla do art. 58 da Lei de Registros Públicos, ao se reconhecer aos transgêneros, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à alteração de prenome e gênero diretamente no registro civil.

Foi pacificado que a validação externa da autoidentificação de gênero de alguém, com todas as suas consequências cíveis, consiste em um pressuposto de realização pessoal do indivíduo e da busca da felicidade. Neste sentido, o Ministro Celso de Mello afirma que decisões que combatem a invisibilidade, oriunda de exclusão jurídica, imposta à comunidade transgênero, em contextos alicerçados em preconceitos inaceitáveis e anacrônicos, possuem a virtude de realizar os valores da igualdade, da tolerância e da liberdade. 

Portanto, negar a alteração registral é perpetuar um sentimento de não pertencimento à sociedade, ou seja, fadar às pessoas trans uma perda da capacidade de se referir a si mesmo como parceiro em pé de igualdade na interação com todos os próximos (Honneth, 2003, p. 216). 

Neste sentido, o Poder Legislativo, influenciado por sentimentos conservadores enraizados na sociedade brasileira, mostra-se omisso na elaboração de leis que efetivem o direito à identidade de gênero. Ademais, ignora a necessidade de adequação do ordenamento nacional às demandas da população trans. Diante disso, evidencia-se a função contramajoritária do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito. 

O Supremo Tribunal Federal (STF), bem como os demais órgãos judiciários, possui o dever institucional de resguardar minorias contra eventuais excessos da vontade hegemônica da maioria, isto pois, “ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República” (Mello, fls. 133). O Judiciário, bastião da Constituição e, portanto, da democracia, deve ocupar uma posição de vanguarda, garantindo o livre exercício da liberdade e igualdade às minorias. Assim, não há que se falar em ativismo judicial, mas sim de mero cumprimento da própria essência da jurisdição constitucional. 

Os Ministros entenderam ser necessário adotar uma abordagem social, fundamentada no direito à autodeterminação da pessoa, ao invés de uma abordagem biomédica. Deste modo, a solução constitucionalmente correta é o reconhecimento dos direitos dos transgêneros de “serem tratados de acordo com sua identidade de gênero e não com a expectativa social sobre o sexo biológico do cidadão” (Weber, fls. 81). 

Isto é, prepondera-se o princípio da dignidade da pessoa humana, na sua qualidade de pilar da ordem republicana e democrática consagrada pela Carta Magna, constituindo verdadeiro valor-fonte interpretativo do ordenamento jurídico pátrio vigente. 

Ao final, ficou consignado que a pessoa trans “dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial”. Diante disto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento n° 73/2018, que dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). Com sua entrada em vigor, a retificação do registro civil pode ser realizada diretamente nos cartórios, mediante a apresentação da documentação necessária.

Contudo, há quem argumente que o Provimento n° 73/2018 impôs exigências exacerbadas para seu cumprimento ao exigir doze certidões; requisitos que ultrapassaram as considerações dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, inviabilizando a eficácia da interpretação do Supremo

Concluído este panorama doutrinário e jurisprudencial pertinente ao tema em voga, o que se observa é que uma pessoa trans, ao buscar a alteração de seu prenome, enfrenta duas principais dificuldades: (i) a falta de leis que resguardem o seu direito à autodeterminação de gênero; (ii) a excessiva burocratização que dificulta o processo de alteração de nome nos cartórios, envolvendo tanto os custos de emissão das certidões como a dificuldade de montar e organizar todos os documentos. 

Focaremos na primeira dificuldade, que se encontra dentro do escopo da pesquisa, a partir da suposição de que essa problemática é um reflexo da falta de aceitação das pessoas trans na sociedade. Tendo em vista que a família consiste na célula mater social, a rejeição observada nas Casas do Congresso Nacional é um espelho da rejeição e do preconceito encontrados no lar familiar.

A falta de reconhecimento da pessoa trans pela família provoca sua primeira marginalização, que irá se repetir pela sociedade ao longo da sua vida. Se a família é produto do sistema social e reflete o estado de cultura desse sistema, conforme dita Friedrich Engels (Engels, 1908, p. 109), é por meio dela que mudanças em uma escala macrossocial serão conquistadas.

Direito de Família e a Relevância do Cuidado

Atualmente, a família moderna desencarnou-se de seu caráter eminentemente biológico, e passou a se constituir ao redor da primazia do valor do afeto, sendo este a condição de diferença específica que define a entidade familiar (Pereira, 2022, p. 36). 

Desde 1916, o Código Civil brasileiro estabelece que é dever dos cônjuges o sustento, guarda e educação dos filhos, o que se reproduziu, outrossim, na codificação atual (CC, art. 1.566, IV); caso os pais deixem de cumprir este dever, isto pode ocasionar, caso o filho fique em estado de abandono, aà perda do poder familiar (CC, art. 1.638).  

Estabelecendo um paralelo com o campo da saúde, Roseni Pinheiro (2009) defende o imperativo de se considerar o cuidado como um valor. O valor está ligado à capacidade humana de dar sentido à sua existência, o que se dá por meio de escolhas e ações. Neste sentido, Pinheiro expõe que o cuidado como valor é percebido tanto por quem cuida como por quem é cuidado, sendo uma escolha capaz de reorganizar a vida social. 

O cuidado encontra-se em uma relação dialética com o cotidiano, que “se constroi e se identifica com o dia-após-dia em que tudo é igual e tudo muda – ‘nada como um dia após o outro’ ao menos em algumas sociedades, mas não em todas” (Pinheiro, 2009). Logo, o cuidado reflete o cotidiano ao mesmo tempo em que exerce efeitos e repercussões na vida das pessoas, transformando a realidade.

Cabe lembrar que devido a sua importância social, a família não pertence somente à esfera privada, mas é também tutelada pelo Estado. As crianças e adolescentes compõem as futuras gerações brasileiras, de modo que seu cuidado ou a falta de cuidado possui fortes repercussões para a nação como um todo. E como foi previamente estabelecido, o cuidado é capaz de moldar o cotidiano: inserir o cuidado familiar de pessoas trans no dia a dia tem o potencial de alcançar transformações sociais a longo prazo. 

A integralidade faz-se cardinal no presente caso pois o crescente respeito pela identidade dos filhos, que nem sempre segue os desígnios e aspirações parentais, segue a própria evolução da família, em que os genitores não possuem sua prole, mas sim tem o dever de zelar por ela na busca pela sua própria felicidade. Portanto, o ato de cuidar, na alçada do Direito de Família, deve promover a polifonia – ou seja, quando essas vozes se deixam escutar (Pinheiro, 2007, p. 24), concretizando um dialogismo plural, ético e democrático. 

A família, a sociedade e o Estado (CF, art. 227) devem colaborar para atender os direitos das crianças, adolescentes e jovens, através do cuidado cotidiano, constante e atento. Ainda, devido ao peso constitucional que se deu à proteção da dignidade humana, certos grupos merecem proteção especial tendo em vista sua maior vulnerabilidade. Contudo, a comunidade LGBT+ é uma das populações que ainda não recebeu um tratamento legal arquitetado para atender suas particulares necessidades.

Assim, o cuidado, sendo um valor, implica um dever moral e um dever jurídico. Neste sentido, respeitar o nome escolhido é cuidar, o que além de ser um dever jurídico, é algo que somente fortalece e protege a família moderna enquanto instituição, concretizando o objetivo do Direito de Família. 

Marcha Trans · 09/06/2023 · São Paulo (SP) Por midianinja

Pesquisa de Campo e Resultados

Para fins de verossimilhança, foi realizada uma pesquisa de campo para colher vozes e relatos de pessoas trans sobre o assunto. O formulário anônimo, realizado por meio da plataforma Google Forms, e respondido por 37 indivíduos transgêneros, mapeou os principais sentimentos de pessoas trans quando confrontadas com o respeito ou o desrespeito de seu nome no âmbito familiar. Logo, buscou-se descobrir (i) a importância do nome escolhido; (ii) como a recepção do nome escolhido no meio familiar afeta a construção da identidade familiar; (iii) os desafios enfrentados por pessoas trans em sua busca de uma relação familiar saudável.

A sistematização dos dados da pesquisa de campo revelou que mais da metade dos entrevistados sentem-se inseguros para expressar o seu gênero dentro de seus lares, e que 39,4% dos entrevistados não se abriram com suas figuras parentais por medo, seguido por falta de confiança (18,2%) e por falta de intimidade (12,1%) (Figuras 1 e 2).

Figura 1: Representação gráfica das respostas à pergunta “Você sente liberdade para expressar o seu gênero em seu lar de uma maneira segura?”.

Gráfico, Gráfico de barras

Descrição gerada automaticamente

Figura 2: Representação gráfica das respostas à pergunta “Caso as suas figuras parentais não saibam que você é transgênero, qual é o motivo?”

Gráfico

Descrição gerada automaticamente

Isto demonstra que a maioria das famílias brasileiras não se caracteriza como um espaço de acolhimento. Outrossim, nota-se que a falta de cuidado ainda é bastante presente, apontando para a possível ruína do núcleo familiar, na medida em que o respeito pelo nome é uma condição para um relacionamento saudável familiar, como restou evidente pelo relato abaixo:

“Minha mãe e minha irmã são as únicas pessoas na minha família que respeitam meu nome. Com minha irmã foi automático. Minha mãe demorou. Meu pai não respeita nem meu nome, que já está retificado, nem meu pronome. Isso contribui para meu afastamento dele.”

Considerando que, devido a sua importância social, a família também é alvo de interesse público, cabe às figuras parentais, em conjunto com o Estado e com a sociedade atenderem aos direitos de jovens LGBT+, por meio do cuidado cotidiano, constante e atento. 

Considerações Finais

Durante a presente pesquisa, é evidente que o nome, assim como a parentalidade, são formados por próprias dialéticas – respectivamente, direito-obrigação e poder-dever. Devido à sua natureza complexa, emanam relações jurídicas que permeiam tanto a esfera pública como a esfera privada. E é impossível falar de um sem falar do outro:  à família cabe o poder de nomear o recém-nascido, e é em torno deste nome que a criança é identificada socialmente, ao mesmo tempo em que cria sua própria identidade. 

Acontece que, por vezes, a autodescoberta leva a pessoa para caminhos distintos daqueles esperados dela, e para viabilizar a sua busca pela felicidade, surge um novo nome; para formalizar essa nova identidade que vem sendo construída. 

A pessoa trans desafia não somente os binários masculinos e femininos, como acaba por desafiar os binários de público e privado relativos ao nome; o privado demanda a alteração do nome civil, engessado no sistema registral brasileiro. Tradicionalmente, o princípio da dignidade humana encontrava dificuldades em se sustentar diante da imutabilidade do Registro Público. Porém, tal como a imutabilidade de categorias como o gênero não possui mais contornos dogmáticos, a imutabilidade no assento registral não deve ser privilegiada sobre a dignidade humana da pessoa trans.

O respeito pela identidade de gênero das pessoas trans é o alicerce de mecanismos de alteração de nome, seja ele o nome social ou a retificação, e percebe-se que em nosso país, a nação que mais mata pessoas trans no mundo, é necessário abordar o problema em sua origem. E a raiz de alguém é sua família; tal como indica Freud, o seio familiar molda a personalidade da criança, tanto de maneira positiva como negativa, de modo que a mudança tem que começar de baixo para cima.

A família é o primeiro local de acolhimento da pessoa trans ou seu primeiro local de marginalização. Como foi constatado a partir da pesquisa de campo, o impacto causado pelo desrespeito ao nome escolhido é sentido duramente pelas pessoas trans, que tendem a evitar o convívio, ocasionando na dissolução da unidade familiar. 

Neste sentido, o cuidado enquanto um dever alvo de tutela jurídica assume um grande protagonismo. Como já mencionado, não se fala em obrigar o pai a amar o filho, mas sim a compelir as figuras parentais a respeitar e acolher sua prole, de modo a proporcionar seu desenvolvimento saudável, resguardando sua dignidade. 

E como o cuidado é, por disposição constitucional, uma ação integral que deve ser conscientemente tomada diariamente, de maneira conjunta pela família, pela sociedade e pelo Estado, a incidência de responsabilidade civil desponta como uma maneira de regulamentar essas relações. Isto não somente concede uma urgente proteção ao indivíduo trans, como também detém a capacidade de refletir em outras dimensões da sociedade, tais como espaços legislativos e administrativos, atribuindo-lhe grande potencial de transformação social. 

Referências

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PINHEIRO, Roseni. Cuidado como um valor: um ensaio sobre o (re)pensar a ação na construção de práticas eficazes de integralidade em saúde. Roseni Pinheiro e Ruben Araújo de Mattos (org.). IMS/UERJ: CEPESC: ABRASCO, 2007. 

________________. Cuidado e a vida cotidiana. Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2009. Disponível em: http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/cuisau.html. Acesso em: 21 jul. 2023. 

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