No final de agosto, o Partido Democrata dos EUA lançou a plataforma de governo para as eleições presidenciais e legislativas –1/3 do Senado Federal e a totalidade da Câmara dos Deputados – a serem realizadas no dia 3 de novembro. O documento é um esboço antecedente ao plano de governo individual dos candidatos. Embora simbólico, a partir dele conseguimos depreender os temas chaves que nortearão os debates e potenciais políticas em eventual vitória.
Em virtude de fissuras internas nas primárias entre a ala moderada, do ex vice-presidente Joe Biden, e o setor mais liberal, do Senador Bernie Sanders, o texto torna-se um proveitoso indicativo da inflexibilidade do establishment democrata em incorporar pautas da nova geração.
Apesar de recheado das louvadas políticas assistencialistas para mitigar os desdobramentos econômicos do COVID-19, a plataforma não discute a universalização de um sistema de saúde público e o refinanciamento da trilionária dívida estudantil. Ambos foram e são pautas centrais do eleitorado liberal que anseia por uma reforma mais representativa em matéria de gênero e etnia nos assentos dos democratas. Mesmo em temas a princípio convergentes, tal qual a mudança climática, o documento limita-se a discursos vagos, sem apresentar caminhos para reduzir o uso de combustíveis fósseis.
A agenda ambiental decepciona, sobretudo, por ignorar a popular resolução aprovada na Câmara dos Deputados chamada de “Green New Deal”, que articula diretrizes para a elaboração de um pacote de novas legislações e políticas públicas promotoras do desenvolvimento econômico limpo e sustentável. Ambicioso, almejava elevar a mais de 90% a porcentagem de matriz energética renovável e livre de hidrocarbonetos na próxima década. Embora rejeitada no Senado no último ano, a resolução serviria como combustível para captar o eleitorado mais jovem e cada vez mais decisivo.
Política Externa
O capítulo mais preciso e inovador da plataforma refere-se à gestão da política externa na chapa Biden-Kamala. Em oposição à conduta unilateral do “America First”, a intitulada revitalização da diplomacia americana no texto consistirá na retomada do protagonismo nas instituições internacionais, na consolidação de acordos multilaterais que se contraponham à nova rota da seda chinesa e no resgate de alianças geopoliticamente críticas na região do Pacífico e Índico, como a Coreia do Sul e o Japão. A guerra comercial e tecnológica certamente persistirá, haja visto que ambos os partidos interpretam Pequim como uma ameaça iminente. A estratégia, entretanto, passará pela retomada da cooperação e flexibilidade com as demandas dos aliados.
Especialmente na parceria transatlântica com a Europa, a desconfiança e cicatrizes são mais profundas. As ameaças de dissolução da OTAN, negligência das desavenças entre os membros Turquia e Grécia e o plano de retirada de 12 mil soldados estadunidenses da Alemanha irão reverberar ao longo dos próximos anos.
Ainda que desfeitos logo em 2021, um possível Secretário de Estado de Biden empenharia demasiado capital político e financeiro para revalidar o compromisso com o bloco militar e seu artigo 5 de defesa mútua a longo prazo. As justificáveis queixas de Washington a respeito do gasto enxuto com defesa por parte dos Europeus será revista para o próximo triênio conforme exposto no relatório do bloco de 2019. Entretanto, os desgastes diplomáticos alimentam desconfianças e incertezas que minam os alicerces do acordo e fragilizam coalizões de enfrentamento à Rússia e China.
A rara e provável continuidade política ocorrerá na retirada do contingente militar em áreas de conflito. Desde a eleição de Obama em 2009, os candidatos à presidência recusam-se a advogar pela dilatação de tropas no exterior. Especialmente após a pandemia do COVID-19, e a decorrente crise econômica, a retórica será mantida.
Em vários trechos, o partido aponta os gastos exorbitantes e critica a letargia de Trump no processo de retirada das áreas em conflitos. A exemplo, o acordo de paz alcançado entre o governo afegão e o Talibã será preservado, bem como estimulado, desde que o governo local e facções garantam a democracia e pacificação do país frente a ação de grupos fundamentalistas. Em breve passagem, a plataforma promete suspender a venda de armas para os envolvidos na guerra do Iêmen – orquestrada pela Arábia Saudita – e retomar esforços para mediação e fim do conflito.
Em contrapartida a plataforma de 2016, o presente documento explora minuciosamente as diversas variáveis e pontos da política externa de uma eventual administração democrata. A crescente atenção do público dada ao tema reflete as 20 páginas reservadas a gestão da liderança internacional. Talvez, em decorrência da disparada na influência política e econômica chinesa nos últimos 4 anos, o cidadão médio norte-americano esteja mais atento do que nunca dos custos e benefícios de perpetuar a suposta excepcionalidade na condução da ordem global.
Referências bibliográficas
PDF da plataforma: https://www.demconvention.com/wp-content/uploads/2020/08/2020-07-31-Democratic-Party-Platform-For-Distribution.pdf