Nas últimas décadas, os países sul-americanos construíram uma agenda de integração que desencadeou uma nova visão estratégica sub-regional, com base no adensamento de redes estratégicas de infraestrutura. Embora essa agenda tenha recentemente sido descontinuada, a construção da RILA (Rota de Integração Latino-Americana), que conectará o estado do Mato Grosso do Sul, no Brasil, o Paraguai, o norte da Argentina e o norte do Chile, tem sido um importante elo sub-regional. Ao interligar essas regiões a portos chilenos, a RILA não somente dinamizará o escoamento da produção regional para mercados asiáticos e americanos, mas, também, estimulará os fluxos comerciais, de investimentos e de pessoas no âmbito sub-regional. Essa rota, contudo, passará, também, regiões menos dinâmicas, como a Faixa de Fronteira do Brasil. Desse modo, identificam-se transformações socioeconômicas derivadas da implantação da RILA em diferentes escalas geográficas. Os recursos da análise de escalas de poder e de gestão proporcionam tanto identificar essas transformações quanto relacioná-las a diferentes agentes e atores públicos e privados. No caso do município de Porto Murtinho, no estado do Mato Grosso do Sul, localizado na fronteira do Brasil com o Paraguai, a sobreposição de interesses de diferentes agentes e atores tem imposto novos usos ao território.
Introdução
O projeto da RILA (Rota de Integração Latino-Americana), que está em fase adiantada de construção, conectará o centro-sul do Brasil ao litoral norte do Chile, por meio de redes rodoviárias que passarão pelo território do Paraguai e do norte da Argentina. No território do Brasil, destaca-se a conexão do estado do Mato Grosso do Sul (MS) e, principalmente, do município fronteiriço de Porto Murtinho, como regiões que serão beneficiadas por esse projeto, uma vez que estão em contato com países vizinhos.
Embora os projetos da RILA não sejam financiados exclusivamente por instituições estatais, a consecução e o planejamento deles apresenta a participação central de agências governamentais. Ademais, a consecução desses projetos representa a materialização do poder de diferentes atores e agentes, que buscam objetivos distintos, em diferentes escalas. Nesse contexto, adota-se a definição de poder de Faria (2003), que se fundamenta na capacidade que tem uma classe social, uma categoria social ou um grupo social [ou um segmento desses] de definir e realizar interesses objetivos específicos, independentemente do nível estrutural em que tal capacidade esteja fundamentada. Os interesses objetivos específicos são aqueles de natureza econômica, jurídico-política e institucional, definidos pelos grupos sociais como indicativos da própria condição (FARIA, 2003, p.108-109). Assim, o poder trata-se de:
[…] uma capacidade coletiva e, como tal, deve ser adquirida, desenvolvida e mantida, sendo que os indivíduos se inserem em suas relações a partir de vínculos e atividades que desempenham no âmbito coletivo, de forma organiza ou não, podendo influir, coordenar, liderar, representar, organizar e mesmo conferir legitimidade (Ibidem, 2003, p. 109).
A efetivação de interesses definidos pelos grupos sociais depende da capacidade que esses grupos dispõem de realizá-los. Na medida em que as sociedades contemporâneas estão cada vez menos vinculadas a sujeitos que desfrutam de poderes totais, há, cada vez mais espaços de articulação em que outros poderes se manifestam, o que amplia a possibilidade de enfretamentos políticos e jurídicos, a fim de superar essas contrações, o que pode resultar no surgimentos de novas estruturas de poder (Ibidem, 2003, p. 112). Desse modo, agentes estatais e atores públicos e privados têm buscado, conjuntamente, prover redes de infraestrutura que possibilitem a integração regional, na medida em que estimulem o desenvolvimento por meio do escoamento da produção e da redução de custos operacionais e logísticos.
A fim de criar uma alternativa logística mais dinâmica e menos onerosa, o COSIPLAN estabeleceu, no âmbito da região do IOC, dois grupos de projetos que fundamentariam conexões físicas no sentido leste-oeste. Um grupo constituiria a conexão entre Brasil, Paraguai, Bolívia e Chile, enquanto o outro formaria outra ligação, entre Brasil, Paraguai, Argentina e Chile. Com base na formação do segundo grupo, as autoridades governamentais dos respectivos países formalizaram, por meio da Declaração de Assunção sobre Corredores Bioceânicos de 2015, o início dos estudos técnicos que embasaram a implantação da RILA (MATO GROSSO DO SUL, 2019).
Para Bitencourt (2021), os atuais projetos logísticos relacionados à RILA apresentaram funções geoeconômicas essenciais à integração sul-americana, que se assemelham àquelas identificadas inicialmente pelo COSIPLAN. Entre essas funções, destaca-se:
a de reduzir os custos logísticos de cargas oriundas do norte da Argentina, do sul da Bolívia, do norte do Chile, do centro-sul do Brasil e do Paraguai, que são embarcadas em portos na costa do Atlântico e na do Pacífico; de estimular a complementariedade produtiva entre esses países vizinhos; de apoiar o setor de turismo na região do Pantanal; de reduzir os custos alfandegários entre os países vizinhos. Cosiplan, 2017, p. 209).
A configuração geográfica do subcontinente América do Sul favorece a construção de conexões entre as duas costas oceânicas que banham a região do IOC. Além da presença de importantes concentrações urbanas, industriais e de produção agropecuária e mineral, a distância entre o litoral brasileiro e o chileno é de aproximadamente 3.000 quilômetros. Na medida em que se avança para o norte, essa distância entre as duas costas marítimas eleva-se gradualmente, devido ao alargamento da faixa continental. Assim, a existência de estruturas portuárias que disponham de infraestruturas suficientes para embarque célere e menos oneroso é estratégica, principalmente, quanto há intenso movimento de cargas em direção aos portos, visto que as exportações de commodities agrícolas se concentram durante o período de safra.
A existência de grandes centros urbanos e de importantes segmentos produtivos na região do IOC reforça, portanto, a busca de integração de infraestruturas logísticas regionais. Embora Argentina, Brasil, Chile e Paraguai disponham de boas conexões domésticas, que conectam os segmentos produtores e consumidores domésticos, as conexões logísticas internacionais são escassas. Além de adensar os fluxos regionais de cargas, a construção da RILA proporcionará, também, um padrão mais efetivo de integração regional, visto que será uma rota rodoviária mais eficiente para o transporte de cargas do que aquelas disponíveis atualmente. Nesse contexto, de acordo com Parkinson (2020), a construção de terminais multimodais e de processamento de cargas, no município de Porto Murtinho e no de Campo Grande, ambos no MS, resultará em redução de custos de frete de bens e de insumos importados, principalmente, para a região de influência dessa rota.
Por fim, a facilitação da mobilidade estimulará os fluxos de turismo, o que tende a beneficiar áreas que apresentam atrações naturais, como o Pantanal brasileiro e o deserto do Atacama. A fluidez decorrente da construção de infraestruturas de transportes proporciona ganhos econômicos, sociais e estratégicos que tendem a transformar uma rodovia em um corredor de desenvolvimento. O estímulo a novos fluxos de comércio e de investimento, além da criação de empregos, intensifica a coordenação entre agentes e atores nas escalas internacional, nacional e local.
A importância da RILA para o estado do Mato Grosso do Sul
Com aproximadamente 3.503 quilômetros de extensão, a RILA será uma alternativa logística eficiente para segmentos produtivos e turísticos do centro-sul do Brasil, do Paraguai, do sul da Bolívia, do norte da Argentina e do norte do Chile, conforme o mapa 1. De acordo com a tabela 1, percebe-se que a pavimentação dos trechos dessa rota, que compete a cada um dos países em seus respectivos territórios, está em fase final de conclusão. O governo do Paraguai obteve financiamento do FONPLATA (Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata) para pavimentar o trecho de 318 quilômetros da Transchaco entre Loma Plata e Pozo Hondo, o que permitirá a conclusão das obras da RILA no país guarani (Paraguay, 2020). Ademais, o trecho de 20 quilômetros no território da Argentina, entre Pozo Hondo e Tartagal será pavimentado em 2021, uma vez que a conclusão da RILA é uma prioridade para o governo argentino, segundo declaração do presidente Alberto Fernandez (Página 12, 2021).
Mapa 1: RILA – Trajeto rodoviário
Em relação às obrigações firmadas pelas autoridades brasileiras, apenas a construção da ponte entre os municípios de Porto Murtinho (MS) e de Carmelo Peralta (AP), Paraguai, não está concluída. A empresa Itaipu Binacional criou um fundo de US$ 82 milhões para a construção dessa ponte, cuja licitação e supervisão das obras será de responsabilidade do Ministério de Obras Públicas y Comunicaciones do Paraguai. O prazo para a conclusão da ponte é de 2 anos (Mattos, 2021).
Tabela 1: RILA: trecho rodoviário em cada país
País | Total (km) | Pavimentado (km) |
Argentina | 977 | 957 |
Brasil | 1.537 | 1.537 |
Chile | 430 | 430 |
Paraguai | 559 | 318 |
Total | 3.503 | 3.242 |
No Brasil, o MS tende a ser um dos mais beneficiados pela construção da RILA. A posição geográfica entre o estado brasileiro de São Paulo e o Paraguai proporciona ao MS a condição de território elo entre o maior PIB estadual do Brasil e um país vizinho que é um importante destino da produção nacional, devido, em parte, às dinâmicas comerciais mais densas derivadas do Mercosul (Mercado Comum do Sul). Além disso, MS destaca-se como grande produtor de commodities agrícolas e de carne bovina, o que influencia o padrão exportador desse estado, principalmente para a bacia do Pacífico e a América do Sul.
Tabela 2: Mato Grosso do Sul: corrente de comércio (2020)
País | Valor (em US$ 1.000) |
1° China | 2.900.000 |
2° Bolívia | 991.000 |
3° Estados Unidos | 333.000 |
4° Chile | 243.000 |
5° Hong Kong | 220.000 |
6° Netherlands | 212.000 |
7° Argentina | 205.000 |
8° Paraguai | 172.000 |
Em 2020, a corrente de comércio apresentada pelo MS corrobora a vinculação da produção estadual ao mercado externo. A maioria dos principais parceiros comerciais desse estado brasileiro poderão ser melhor acessados por meio tanto da RILA quanto por portos marítimos chilenos. Verifica-se na tabela 5 que os fluxos comerciais desempenhados pelo estado do MS apresentam significativa vinculação intrarregional, principalmente com Bolívia, Chile, Argentina e Paraguai, e extrarregional, com China, Estados Unidos, Netherlands e Hong Kong. Entre esses países, apenas Netherlands não apresenta ganhos logísticos com a implantação da RILA.
Tabela 3: Custos de transporte entre Campo Grande/MS (Brasil) e Antofagasta (Chile)
Rota | Extensão (km) | Custo por tonelada (US$) |
Porto de Santos – Canal do Panamá | 14.214 | 897,61 |
São Borja/RS – Argentina | 3.441 | 658,17 |
RILA | 2.254 | 433,81 |
A conclusão das obras da RILA, que está prevista para 2023, indica significativa redução de custos logísticos para mercadorias comercializadas no MS. Atualmente, a rota rodoviária que conecta esse estado aos portos chilenos apresenta extensão de 3.441 quilômetros. As cargas são transportadas por rodovias que cruzam a Argentina a partir da fronteira do estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, o que aumenta substancialmente a distância percorrida e, por conseguinte, o custo de transporte. Além disso, a via marítima, por meio do porto de Santos, no estado de São Paulo, apresenta custos elevados, devido, principalmente, às operações portuárias, conforme apresentado na tabela 3.
Além de cruzar quatro países, o que demanda harmonização aduaneira e de regras de transportes, a construção da RILA deve superar, também, o obstáculo das elevadas altitudes da cordilheira dos Andes. Nesse trecho, com altitudes que atingem mais de 3.000 metros, entre a província de Salta, na Argentina, e de Antofagasta, no Chile, há conexões rodoviárias e ferroviárias que passarão por modernização. Mesmo assim, a sinuosidade desses trechos dificulta a circulação de veículos de carga de grande porte, que são usados, predominantemente, no Brasil, para o transporte de produtos de menor valor agregado, como soja e milho. Assim, o trajeto da RILA apresenta, inicialmente, viabilidade econômica para produtos de maior valor agregado, que sejam transportados por meio de containers.
Tabela 4: Mato Grosso do Sul: principais produtos exportados (2020)
Produto | Valor (em US$ 1.000) |
1° Celulose | 1.700.000 |
2° Soja | 1.620.000 |
3° Carne bovina fresca, refrigerada ou congelada | 700.000 |
4° Farelo de soja e outros alimentos para animais | 332.000 |
5° Milho não moído | 326.000 |
De acordo com a tabela 4, é possível elencar celulose, carne bovina e farelo de soja como produtos oriundos do MS que apresentam maior potencial para serem escoados pela RILA e registrarem aumento de competitividade por mercados da América do Sul e bacia do Pacífica. Além desses produtos, a soja não transgênica, que apresenta maior valor de varejo e grande mercado consumidor na China, será economicamente viável, caso seja transportada por containers, pela RILA, visto que os baixos custos de operação portuária em Antofagasta compensarão o custo adicional de transporte rodoviário.
Em relação à carne bovina, as exportações brasileiras têm mantido a tendência de crescimento, à despeito da crise econômica global desencadeada pela pandemia de Covid-19. Essa tendência é fundamental para expandir a cadeia produtiva de carne bovina, principalmente no MS e no restante da região Centro-Oeste do Brasil, visto que concentram os maiores rebanhos do país. A cadeia produtiva de carne bovina abrange diferentes sistemas produtivos, fornecedores de serviços e insumos, indústrias de processamento e transformação, distribuição e comercialização de produtos e subprodutos, e seus respectivos consumidores finais. Em 2019, essa cadeia produtiva representou 8,5% do PIB do Brasil, com crescimento de 0,2% em relação ao ano anterior (Beef Report, 2020).
A importância econômica da cadeia produtiva de carne bovina para a economia brasileira justifica a busca de ampliação de mercados consumidores em outros países. Em 2020, a categoria carne bovina fresca, resfriada ou congelada atingiu o valor exportado de US$ 7.446,88, o que representou um incremento de 13,8% em relação ao ano anterior. Essa categoria representa 3,55% das exportações brasileiras; ocupa o 5° lugar no ranking de exportações nacionais e o 2° lugar nas exportações da indústria de transformação (Comexstat, 2021). Para Malafaia (2020), a principal estratégica para ampliar o consumo de carne bovina produzida no Brasil é a obtenção de ganho de competitividade, por meio, por exemplo, da redução de custos de transportes.
Tabela 5: Maiores importadores de carne bovina produzida no Brasil (continentes/2020)
Continente | Valor (em US$ 1.000) |
1° Ásia (exclusive Oriente Médio) | 4.000.000 |
2° Oriente Médio | 604.000 |
3° Europa | 600.000 |
4° América do Sul | 516.000 |
5° América do Norte | 96.100 |
Uma vez que os maiores mercados consumidores de carne bovina produzida no Brasil estão na Ásia, a conclusão da RILA torna um instrumento logístico fundamental à busca de redução de custos de transporte. De acordo com a tabela 5, verifica-se que os mercados asiáticos são o destino de aproximadamente 70% das exportações brasileiras de carne bovina. Desse modo, os ganhos de competitividade derivados de maior eficiência logística tendem a ampliar a participação da produção brasileira nesses mercados, na ordem de 20%. (Parkinson, 2020).
Tabela 6: Shanghai/China: transporte marítimo de cargas
Rota | Distância (em quilômetros) | Tempo de viagem | |
Santos (Brasil) e Shanghai (China) | Via Canal de Suez | 25.078 | 56 dias e 10 horas |
Via Canal do Panamá | 24.156 | 54 dias e 8 horas | |
Via Cape Horn | 22.143 | 49 dias e 20 horas | |
Via Estreito de Magalhães | 21.989 | 49 dias e 11 horas | |
Antofagasta (Chile) e Shanghai (China) | 18.667 | 42 dias e 1 hora |
Os ganhos de competitividade que serão proporcionados pela RILA derivam de diferentes variáveis. Embora a distância rodoviária entre Campo Grande/MS até os portos brasileiros de Santos e de Paranaguá seja inferior àquela entre Campo Grande/MS e Antofagasta, por meio do futuro trajeto da RILA, a distância marítima entre o litoral chileno e o porto de Shanghai, por exemplo, é significativamente menor, de acordo com a tabela 6. Desse modo, o transporte de cargas marítimas até a China é menor, o que determina, por conseguinte, menor custo de frete.
No entanto, a variável referente à redução de distância a ser percorrida e do tempo de viagem não deve ser a única a ser analisada quando se considera o custo total de frete internacional. Além da distância marítima menor, o porto de Antofagasta dispõe de outras vantagens em relação, por exemplo, ao porto brasileiro de Santos. O porto chileno apresenta custos de operações portuárias significativamente menores, do que aqueles do porto brasileiro, conforme evidenciado nos exemplos apresentados pela tabela 7.
Tabela 7: Custo médio de Praticagem portuária
Porto | Custo (US$) |
Antofagasta (Chile) | 3.600/navio |
Santos (Brasil) | 30.000/navio |
A praticagem é o serviço de assessoria aos comandantes de navios que trafegam em águas restritas, ou seja, onde há condições que dificultam a navegação livre, como portos e hidrovias (Brasil, 2016). No porto de Antofagasta, o custo de praticagem é aproximadamente 88% menor do que o praticado em Santos. A combinação entre redução de distância percorrida, de tempo de viagem e de custos portuários é suficiente para viabilizar o escoamento, por exemplo, de carne fresca, refrigerada e congelada por meio da RILA, embora a distância rodoviária entre Campo Grande/MS e o porto de Antofagasta seja maior do que aquela entre Campo Grande/MS e o porto de Santos, de acordo com a tabela 8. Segundo Malafaia (2020), os segmentos produtores de carne bovina projetam um aumento de produção na ordem de 23,8%, sendo a carne bovina responsável pelo crescimento de 16,2%, até 2030. As mesmas projeções indicam, também, um elevado incremento das exportações de carne bovina brasileira, o que tornará o Brasil, em 2030, o líder na exportação desse segmento, com 28,7% do volume total mundial. Assim, a elevação da fatia de mercado da produção brasileira depende, inexoravelmente, de ganhos de competitividade, que, em parte, advirão da redução de custos logísticos.
Tabela 8: Transporte marítimo de carne fresca, refrigerada ou congelada para Shanghai
Rota terrestre | Extensão (km) | Rota marítima | Extensão (km) | Custo (US$) por tonelada |
Campo Grande – Santos | 1.089 | Santos – canal do Panamá – Shanghai | 24.156 | 281,85 |
Campo Grande – Antofagasta | 3.441 | Antofagasta – Shanghai | 18.667 | 253,85 |
Em relação a produtos importados que têm como destino os mercados consumidores de MS, conforme a tabela 9, adubos e fertilizantes químicos, que são oriundos, principalmente, da Rússia, do Marrocos e do Canadá (COMEXSTAT, 2021), e chegam ao Brasil por meio do porto de Santos, poderão ser fornecidos por empresas da costa oeste do EUA, com redução de aproximadamente 14% no custo de transporte, caso sejam desembarcados em Antofagasta e transportados pela RILA, até o MS (PARKINSON, 2020). Na medida em que não somente o MS, mas, também, a região Centro-Oeste do Brasil, são grandes produtores agropecuários, essa redução proporcionará maior competitividade a esses segmentos nos mercados internacionais. Ademais, para que uma rodovia seja transformada em corredor econômico, é necessário, fundamentalmente, que fluxos de transporte de cargas ocorram nos dois sentidos, o que reforça a importância do transporte de produtos importados pelo Brasil por meio da RILA.
Tabela 9: principais produtos importados pelo Mato Grosso do Sul (2020)
Produto | Valor (em US$ 1.000) |
1° Gás natural, liquefeito ou não | 962.000 |
2° Adubos ou fertilizantes químicos | 292.000 |
3° Cobre | 122.000 |
4° Tecido, tramas, de matérias têxteis ou sintéticas | 64.700 |
5° Fios têxteis | 47.700 |
Nesse contexto, os fluxos regionais de comércio tendem a se intensificar, na medida em que Argentina, Brasil Chile e Paraguai passem a transportar diretamente, por via rodoviária, bens e serviços comercializados regionalmente. Destarte, o cobre produzido e exportado por empresas sediadas no Chile, principalmente para o Brasil, ganha competitividade, no âmbito regional, ao passo que outros itens que não figuram, atualmente, entre as maiores importações realizadas pelo Brasil, como o trigo argentino, tendem a conquistar maior parcela do mercado do MS.
Em suma, a construção da RILA resulta, em grande medida, da convergência de interesses de segmentos políticos e produtivos, em diferentes escalas. Enquanto na escala sul-americana, as autoridades nacionais têm buscado retomar o crescimento econômico por meio do incremento de exportações, na escala nacional e regional, agentes políticos fazem uso dessa conexão rodoviária como uma estratégia para promover o desenvolvimento e a integração regional, visto que o MS apresenta uma estrutura produtiva significativamente vinculada a mercados externos, além de ser um estado que dispõe de um posicionamento estratégico que lhe proporciona a condição de ser o elo entre o centro-sul do Brasil e os países vizinhos da América do Sul.
Atributos geopolíticos da RILA
Identificado por Travassos (1947) como uma “futura plataforma” para conectar o território brasileiro aos países sul-americanos, o Mato Grosso do Sul é um espaço estratégico para a integração regional. A construção da RILA busca alavancar esse potencial de integração, por meio não somente do incremento dos fluxos comerciais, mas, também, da retomada de iniciativas estratégicas no âmbito sub-regional.
A Rodovia Interoceânica, entre o Acre e o Peru, desencadeou fluxos locais e regionais de comércio e de turismo, mas conecta regiões com baixa densidade demográfica e com segmentos produtivos que buscam se inserir em mercados internacionais. O Corredor Bioceânico Central, entre Rio Grande do Sul, Argentina e Chile, por sua vez, tende a dinamizar fluxos comerciais, de turismo e cadeias produtivas que dispõem de significativo grau de integração, devido tanto à existência de redes multimodais de circulação quanto à proximidade entre importantes aglomerações urbanas, como Porto Alegre, Caxias do Sul, Montevidéu, Buenos Aires, Córdoba e Mendoza.
A RILA, devido à redução de custos logísticos, proporcionará maior competitividade a produtos exportados por segmentos sul-mato-grossenses, como o de proteínas animais e derivados de soja, assim como alguns que são importados, como fertilizantes. Ademais a RILA tem o potencial de articular rotas turísticas que estão geograficamente próximas, como o deserto do Atacama, o altiplano boliviano e o pantanal sul-mato-grossense, mas que não dispõem de conexões rodoviárias ou aéreas entre si. Em suma, o potencial de transformação social, econômica e política da RILA é maior do que aquele apresentado pelos outros dois corredores rodoviários entre o Brasil e o litoral do oceano Pacífico.
Novos usos territoriais em Porto Murtinho/MS, Brasil
Grande parte do contingente populacional e dos segmentos produtivos brasileiros estão próximos à fachada atlântica, devido a um processo histórico desigual de ocupação. Essa formação socioespacial deriva, também, da divisão territorial do trabalho, cuja manifestação é a hierarquização entre os lugares e a redefinição da capacidade de agir das pessoas, das firmas e das instituições (SANTOS; SILVEIRA, 2003, p.20).
Como resultado desse processo, regiões que apresentam vínculos mais intensos com mercados globais dispõem de maior concentração de sistemas de engenharia, técnicos, de capital humano e financeiro, ao passo que as demais regiões são caracterizadas por baixas densidades de capital, populacionais, técnicas e informacionais, com restrita fluidez nas circulações, o que caracteriza, nessas regiões periféricas, a existência de “espaços opacos” (SANTOS, 1999, p.194).
Porto Murtinho é um município que integra o MS. Situado na Microrregião do Baixo Pantanal, o núcleo urbano do município está localizado na latitude 21º41’56” Sul e na longitude 57º52’57” Oeste. Está distante 437 quilômetros de Campo Grande, capital do MS, e 1.463 quilômetros de Brasília, capital do Brasil (IBGE, 2021). Por estar assentado na margem esquerda do rio Paraguai, Porto Murtinho dispõe de conexão hidroviária à montante, com o Pantanal Sul-Mato-Grossense, embora a navegação seja inviável durante a estação sem chuvas, e à jusante, com o Paraguai, e com os Departamentos argentinos de Chaco, Corrientes, Entre Ríos, Santa Fé e Buenos Aires (PORTO MURTINHO, 2020).
A conclusão das obras da RILA, notadamente da ponte binacional, entre Porto Murtinho e Carmelo Peralta mudará significativamente o padrão de integração fronteiriça. Prejudicado pela distância em relação à capital do MS, Campo Grande, que concentra grande parte das atividades industriais e de serviços do estado, e em relação aos principais centros econômicos do Brasil, Porto Murtinho também sofre restrições, no que se refere à atração de investimentos estrangeiros, devido à localização na área de Faixa de Fronteira do Brasil. No entanto, a posição estratégica do município favorece a superação desses obstáculos econômicos e legais.
A dificuldade de navegação à montante do rio Paraguai durante o período de ausência de chuvas, entre março e setembro, tem inviabilizado o uso de portos fluviais nessa área, uma vez que o calado do rio Paraguai se torna muito raso. Desse modo, após a conclusão a implantação de infraestrutura rodoviária até o porto fluvial, por meio do PROEXP (Programa de Estímulo à Exportação ou à Importação pelos Portos do Rio Paraguai), o governo do MS tem estimulado o uso e a construção de terminais para armazenagem de grãos, como um modo de ampliar os investimentos em Porto Murtinho e, ao mesmo tempo, evitar que a produção de grãos do estado perda competitividade, devido à dificuldades logísticas e aos elevados custos de embarque apresentados pelos portos de Santos e de Paranaguá (ANDRADE, 2021).
A soja escoada pelo porto do município de Porto Murtinho/MS tem como destino os portos de San Lorenzo e Timbues, na província argentina de Santa Fé. Nessa província, a soja é transformada em farelo e em óleo e, posteriormente, exportada. Com contratos de exportação de 500.000 toneladas desse grão, as autoridades portuárias de Porto Murtinho/MS registraram o incremento de 57,83% no volume registrado de exportações, com base no ano de 2019 (ANDRADE, 2021). Para Parkinson (2020), a conclusão da RILA proporcionará que o beneficiamento dessa matéria-prima, que agrega valor ao produto final, seja realizado no município de Porto Murtinho/MS e, depois, exportado. Destarte, esse município passará a desempenhar importante papel na cadeia regional de beneficiamento da soja, uma vez que, por meio da RILA, ampliará as exportações de derivados de maior valor agregado.
Assim como grande parte dos municípios brasileiros, Porto Murtinho não dispõe de instrumentos de ordenamento territorial. O crescimento urbano espontâneo, na margem esquerda do rio Paraguai, em uma planície de inundação, tornou a cidade vulnerável a enchentes recorrentes. A construção de um dique fluvial em torno da cidade, em meados da década de 1980, protegeu a cidade de inundações, mas limitou a expansão do sítio urbano aos limites desse dique. Na medida em que a construção da RILA iniciou, começou a ocorrer intensa demanda imobiliária, devido ao potencial de investimentos a serem destinados ao município de Porto Murtinho, o que resultou em rápida valorização de imóveis locais:
Uma parte da população local tem se animado a vender seus imóveis diante da valorização e passam a enfrentar um outro problema: a ausência de ofertas de imóveis para venda, devido à escassez e também à elevação dos preços, dessa forma àqueles que vendem os próprios imóveis, resta a possibilidade de buscar áreas mais distantes, além dos limites do dique fluvial, para construir casas, muitas vezes de formas improvisadas. Isso também acontece com as famílias que chegam de outras regiões de MS, a fim de buscar melhores oportunidades de vida (entrevistado Antônio José Ângelo Motti).
O resultado é o surgimento de aglomerados subnormais em áreas propensas à inundação, o que tem pressionado o governo municipal a buscar soluções. A principal delas surge do apoio do MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional), que aportou recursos para financiar a participação de especialistas de instituições de Ensino Superior de MS. Esses especialistas constituíram um GT (Grupo de Trabalho) para apoiar o município de Porto Murtinho na construção de um Plano Diretor Municipal, que proporcione não somente o atendimento das demandas locais por crescimento econômico e social, por meio de melhor ordenação do sítio urbano, mas, também, a identificação de possibilidades de verticalização predial, em função do predomínio da existência de solos argilosos e arenosos, que são típicos de planícies inundáveis. Desse modo, esse GT busca identificar as condições ideais para o desenvolvimento local para os próximos dez anos.
A disponibilidade de mão de obra qualificada é outro desafio a ser enfrentado pela sociedade de Porto Murtinho. A maior parte da população adulta dispõe de apenas o ensino fundamental completo (IBGE, 2021). Embora haja crescente demanda de mão de obra pouco qualificada, como o embarque e o desembarque de cargas e a construção civil, as projeções de ampliação do fluxo de caminhões, de embarcações fluviais, de armazenagem de grãos e, por conseguinte, de pessoas, demandará trabalhadores aptos a realizar atividades relacionadas à manutenção automotiva, naval, de infraestruturas de armazéns; atividades hoteleiras; bancárias; de saúde; de alimentação, entre outras. O Centro de Triagem Mécari, que é um terminal apto a receber até 400 caminhões, conta com serviços de hotel, restaurante e centro comercial. Entrou em operação em 2020, mas enfrenta dificuldades para contratar trabalhadores para os serviços disponibilizados (SEMAGRO, 2021).
Considerações finais
A construção da RILA, que será concluída até 2023, apresenta potencial para impulsionar os fluxos de bens e de pessoas entre Argentina, Brasil, Chile e Paraguai. Além de exportações mais competitivas para mercados da bacia do Pacífico, por meio de portos chilenos, os segmentos produtivos desses países apresentam possibilidade de complementariedade comercial no âmbito regional. Em uma conjuntura de retração dos fluxos internacionais de comércio, como desdobramento da pandemia Covid-19, a recuperação das economias sul-americanas passa pela integração de infraestruturas logísticas.
Na medida em que a ampliação da participação em cadeias regionais e globais de valor representa incremento de poder, autoridades governamentais e representantes de segmentos produtivos atuam, nas escalas regional, nacional e estadual, por meio de diferentes modos, a fim de dinamizar a construção da RILA e de obter ganhos setoriais de competitividade. Nesse contexto, representantes públicos e privados, que atuam na escala local, no município de Porto Murtinho, MS, Brasil, também buscam projetar interesses em relação à RILA. No entanto, devido à assimetria de poder, esses representantes não conseguem exercer a mesma influência que é praticada por atores de outras escalas. Embora Porto Murtinho tenha recebido importantes investimentos públicos e privados nos últimos anos, problemas estruturais – como limitação de espaço para expansão urbana, especulação imobiliária e escassos meios para qualificar mão de obra –, permanecem como grandes desafios para as autoridades, embora comecem a ser enfrentados pelo conjunto das instituições, por meio, por exemplo, de iniciativas vinculadas ao Sistema S.
O crescimento econômico de regiões transfronteiriças é um instrumento estratégico que garante a segurança do território nacional. As dinâmicas produtivas decorrentes RILA podem forjar um paradigma de integração baseado em um amplo espectro de prosperidade social e política, desde que o objetivo principal não apenas levar desenvolvimento às pessoas, mas, acima de tudo, prover o desenvolvimento das pessoas.
Referências bibliográficas
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Um excelente trabalho! Me surpreendeu com a profundidade dada ao pequeno município de Porto Murtinho (com seus ~18 mil habitantes) em meio à todo um macro-processo de integração regional. Parabéns!