A China no século XX
A China, apesar de sua história milenar, viu no decorrer do século XX um de seus períodos mais importantes, de maior desenvolvimento e da consolidação de sua soberania. No início do século, o país estava em grande parte fragmentado; profundamente envolvido em guerras e conflitos; e seus territórios litorâneos eram frequentemente assediados por potências estrangeiras a séculos.
Após um longo período de guerras, em 1928 o país foi efetivamente unificado sob as forças de Chiang Kai-shek, líder do Partido Nacionalista Chinês, que possuía relativa influência no Ocidente, apesar de seu caráter autoritário. Todavia, a essa altura o Partido Comunista Chinês, sob a liderança de Mao Zedong, havia se fortalecido e se constituído como a segunda maior força no país, introduzindo a China em um conflito civil entre as duas forças políticas.
Em 1937, aproveitando a fragilidade da China, o Japão efetuou uma forte invasão ao litoral no norte do país, tomando toda a província da Manchúria e a península coreana. A campanha japonesa se direcionou para o sul e para o interior em direção ao oeste, afastando-se do litoral e colocando a maior parte do leste da China sob assalto ou ocupação efetiva. A gravidade da invasão interrompeu os conflitos internos chineses, unindo os antigos adversários internos para enfrentar o novo inimigo comum, o Império do Japão.
O apaziguamento das hostilidades internas chinesas perdurou até a derrota japonesa, em 1945. Todavia, o período de guerra contra os japoneses foi crucial para o fortalecimento dos comunistas de Mao Zedong, uma vez que a atenção nipônica estava contra as forças de Chiang Kai-shek, que era naquele momento o governo oficial da China, que era visto pelos japoneses como seu principal inimigo a ser combatido.
Os territórios dos quais os nacionalistas foram expulsos, ou abandonaram, foram gradativamente ocupados pelos comunistas, que cooptaram as populações locais para sua agenda política, alcançando maior popularidade que as forças nacionalistas governamentais. Quando os japoneses se renderam, os nacionalistas estavam desgastados e os comunistas se encontravam presentes na maior parte da China. Após um breve intervalo, a guerra civil entre as partes recomeçou, que acabou com a derrota nacionalista em território continental.
Chiang reuniu o que restou de suas forças e refugiou-se na ilha de Taiwan em 1949, de onde continuou a se proclamar como o legítimo governante de toda a China. Seu novo governo encontrou guarida com o reconhecimento internacional por parte do Ocidente, tendo inclusive o apoio militar da marinha norte-americana, que se encontrava maciçamente no mar da China devido aos combates contra os japoneses.
Nesse intervalo de tempo, o líder comunista Mao Zedong consolidou seu poder na porção continental chinesa e estruturou seu governo, dando início às reformas estruturais que se mostraram catastróficas e custaram a vida de milhões de pessoas. Ademais, buscou o reconhecimento internacional de seu governo, aproximando-se do bloco comunista internacional, liderado pela então União Soviética (URSS), aproximação essa que entraria em colapso alguns anos depois.
O governo chinês no cenário internacional
Nesse contexto, a pretendida fraternidade internacional construída com a aliança para a derrota das forças do Eixo na Segunda Guerra estava definitivamente morta. O mundo já vivia os primórdios da Guerra Fria, com um crescente e violento antagonismo entre o Ocidente capitalista, liderado pelos EUA, e o bloco comunista, liderado pela União Soviética. Devido ao perfil político do novo governo continental chinês e o rápido reconhecimento que este recebeu como governo legítimo da China por parte da União Soviética e seus agregados, acabou por antagonizar o país asiático junto ao Ocidente.
No bloco Ocidental, o Reino Unido se destacou com uma postura pragmática em relação á China. No início de 1950, a Guerra civil estava em grande parte terminada, somente com alguns pequenos bolsões nacionalistas no continente e a ilha de Taiwan ainda se opondo ao governo comunista, e este no controle efetivo da maior parte do território da China, além de deter um sólido apoio popular. Sendo assim, no dia 6 de janeiro de 1950, o Cônsul Geral Britânico em Pequim entregou uma nota ao Sr. Chou en Lai, Ministro das Relações Exteriores Chinês, na qual o Reino Unido reconhecia o governo comunista da República Popular da China como legítimo.
O Reino Unido foi o primeiro grande país ocidental a reconhecer o governo comunista chinês e abriu portas para outros países do Ocidente também adotarem a mesma postura. Segundo a edição do jornal The Guardian sobre a questão à época:
A única diferença entre as opiniões de Acheson e as da Grã-Bretanha parece ser que o secretário de Estado americano considera que um novo regime, antes de ser reconhecido, deve dar provas de sua intenção de “cumprir seus compromissos internacionais”, enquanto que a Grã-Bretanha considera que só precisa ter o poder e a autoridade para tanto (O GUARDIÃO, Janeiro de 1950/tradução nossa).
Todavia, a leitura britânica do ascendente poder chinês foi muito realista e pragmática. O país europeu naquela época já possuía um importante intercâmbio comercial com a China, além de dispor de importantes interesses econômicos no país, desde o controle territorial efetivo, até a presença de importantes empresas e investimentos. Durante um longo período, que se estendeu do século XIX – por volta de 1840 – ao final do século XX, o Reino Unido exerceu o domínio de um dos mais importantes entrepostos comerciais da Ásia e, consequentemente, da China: Hong Kong.
Portanto, com o governo nacionalista acabado e com a solidez instalada do governo comunista, o Reino Unido percebeu a ameaça aos seus interesses comerciais se continuasse a adotar uma postura hostil ao novo poder, portanto, tratou de reconhecê-lo e propor o pleno estabelecimento da diplomacia, que somente seria consolidada de forma plena em 1972, com a troca de Embaixadores entre Londres e Pequim.
Após o reconhecimento, as relações entre o Reino Unido e Taiwan desencalharam gradativamente no âmbito político e diplomático de modo intenso, uma vez que ambos os governos da China Continental e de Taiwan defendiam uma política de “Uma só China”. As relações do país europeu com Taiwan se restringiram ao comércio e à cultura, com representações governamentais mínimas e quase sempre amparadas fortemente pela iniciativa privada.
O reconhecimento britânico da República Popular da China – comunista, impulsionou o governo chinês no cenário internacional e influenciou outros governos a adotarem a mesma postura. A consolidação desse processo de reconhecimento foi solidificada em outubro de 1971, quando a resolução 2758 da Assembleia Geral das Nações Unidas determinou que a República Popular da China substituísse os representantes do governo de Taiwan em todas as instâncias e órgãos da organização multilateral. A mudança deu ao governo comunista chinês o direito ao veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, o principal órgão mundial de segurança internacional.
Em 1997, a China conquistou outro importante avanço diplomático e político no cenário internacional e, em especial, nas suas relações com o Reino Unido; o país obteve pacificamente a soberania de Hong Kong do controle britânico após longas negociações, que estabeleceram uma política de “Um país, dois sistemas”, no qual a cidade de Hong Kong obteve relativa autonomia nos seus assuntos internos, cabendo á China a responsabilidade pela defesa e relações exteriores do território. O acordo elevou as relações sino-britânicas a outro patamar, permitindo o fortalecimento da agenda bilateral entre os países em todas as esferas, com destaque para o comércio e investimentos.
Atualmente, as relações entre o Reino Unido e a China estão severamente abaladas em decorrência dos comportamentos recentes chineses no cenário internacional, como a postura obscurantista chinesa na pandemia do coronavírus; sua postura agressiva no cenário internacional com países parceiros do Reino Unido, como a Austrália, a Índia e Taiwan; a supressão de liberdades em Hong Kong – inclusive descumprindo o tratado de 1997; as alegações constantes de violação dos Direitos Humanos contra minorias étnicas e dissidentes políticos; a tentativa de constituição de grupos de pressão pró-chineses na política interna britânica; e as alegações de espionagem e aquisição indevida de tecnologias.
Ademais, o alinhamento de agendas do atual governo britânico e norte-americano também contribuiu para esse cenário, tendo em vista que o governo estadunidense possui uma forte política de contenção à influência chinesa no sistema internacional. Esta postura é um dos raros consensos que parece estar estabelecida no bipartidarismo norte-americano e se consolidando também na agenda bipartidária britânica.
A atual conjuntura tem se mostrado um pouco mais complexa que os meados do século XX, uma vez que a China tem sido percebida no Ocidente cada vez mais como um adversário. O desequilíbrio econômico causado pela atual pandemia expôs a fragilidade das cadeias de produção globais, que nos anos áureos da globalização se assentaram com intensidade no mercado chinês. Essa constatação fez com que diversos países securitizassem suas agendas econômicas e de investimentos, visando diminuir gradualmente a dependência do mercado chinês.
Países próximos, e historicamente hostis à China, como o Japão e a Índia, têm desenvolvido políticas de atração de investimentos de empresas nacionais instaladas na China, e também aprimorado suas capacidades militares e de mobilização. Além disso, tem-se observado um arranjo de cooperações defensivas na região imediata de influência do gigante asiático, com cooperações a serem construídas e atualizadas entre países como a Austrália, a Filipinas, o Vietnã, et al. O cenário que se desenha aproxima cada vez mais o mundo de um panorama infeliz que terminou muito recentemente para estar outra vez renascendo: Uma nova Guerra Fria.
Referência bibliográficas:
Embassy of the People’s Republic of China in the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland. Overview on China-UK relations. Disponível em: http://www.chinese-embassy.org.uk/eng/zygx/introduction/t693272.htm.
Permanent mission of the People’s Republic of China to the UN. Disponível em: http://chnun.chinamission.org.cn/eng/
Taipei representative Office in the U.K. Taiwan – UK relations. Disponível em: https://www.roc-taiwan.org/uk_en/post/39.html.
The Diplomat. The UK-China relations: From Gold to Dust. Disponível em: < https://thediplomat.com/2020/10/uk-china-relations-from-gold-to-dust/>. Acesso em: 04 de janeiro de 2021
The Guardian. Britain recognises communist government of China – archive, 1950. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/jan/07/britain-recognises-communist-government-of-china-1950.
UK Parliament. House of Commons Library. The U.K.-China relationship. Disponível em: https://commonslibrary.parliament.uk/research-briefings/cbp-9004/#
US Department of State. US relations with Taiwan. Disponível em: https://www.state.gov/u-s-relations-with-taiwan
The National Archives, UK. China. Disponível em: http://www.archivesdirect.amdigital.co.uk/FO_China/Introduction