Publicado em 1949, com o enredo situado no então futurístico ano de 1984, o livro mais famoso de George Orwell é atemporal. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é uma das distopias mais impactantes do século XX e a sua poderosa crítica contra governos autoritários reverbera até os dias atuais. Antes de falarmos da obra e de sua relevância para as Relações Internacionais (RI), vamos conhecer um pouco mais sobre o autor.
Quem foi George Orwell?
George Orwell é o pseudônimo do britânico Eric Arthur Blair. Sua vida foi interrompida aos 46 anos por uma forte tuberculose, mas seu legado ainda vive muito depois do seu falecimento. O poder da sua prosa literária e da crítica onipresente em seus livros é tanto que o seu nome se tornou adjetivo: orwelliano passou a corresponder às práticas sociais de cunho autoritário ou totalitário. Como esse autor adquiriu tanto respeito? Para entendermos isso, vamos mergulhar um pouco na narrativa fictícia – tão familiar com a história do século XX – que permeia o livro 1984.
Entendendo o enredo de 1984
O livro se passa num futuro distópico onde a vida política do planeta se tornou penetrada por guerras incessáveis, por uma vigilância governamental, por uma série de práticas controladoras que vão da manipulação da linguagem, da necessidade de instigar o ódio contra os inimigos construídos pelo Estado até a lavagem cerebral e a constante reescrita da história. Nesse contexto opressivo, somos colocados na pele de Winston Smith, um trabalhador inserido em todo esse contexto onde sua vida é perfeitamente vigiada e controlada pelos governantes.
Durante o enredo, o psicológico de Winston passa a se deteriorar, refletindo as dificuldades de uma existência espontânea em tal situação controladora. Os seus relacionamentos, as lembranças de um passado diferente – tudo isso passa a aflorar na pele do protagonista e George Orwell nos conduz, via sua escrita, de forma impecável. A sensação constante do livro é a do desespero e da incerteza, do medo de ser descoberto e da percepção de que o mundo ao seu redor alimenta uma loucura construída politicamente de tal forma que poucas pessoas percebem a distopia que as ronda.
Nesse contexto, a obra se sobressai nas ficções distópicas do século passado na medida em que sua narrativa tem diversos momentos repletos de uma inconfortável familiaridade. E se o livro se situa numa tênue divisão entre a literatura fictícia e a realidade, cabe a nós vislumbrarmos com maior agudeza analítica esses momentos de contato, descobrindo, especialmente, como a área das Relações Internacionais pode absorver o conteúdo do livro.
O que 1984 pode nos ensinar no âmbito das Relações Internacionais?
“Os melhores livros […] são aqueles que lhe dizem o que você já sabe (p. 217).” Orwell nos ensina, por meio de sua linguagem lúdica, criativa e penetrante, algo crucial: a dinâmica do totalitarismo opera nas mais diversas facetas da vida – nos mais minuciosos detalhes. E dizer que já sabemos disso não é o mesmo que negar a necessidade de ouvir, tudo isso, de forma iluminadora.
A contingência e a imprevisibilidade do ser humano são uma afronta ao desejo de poder autoritário. A liberdade é, portanto, uma inimiga mortal de quem detém o poder em 1984. Mais do que isso: a tensão e a ambiguidade características da nossa existência incomodam os tiranos de plantão. A tirania nasce no afastamento do real, no apego cego ao ideal – esteja este em um futuro paradisíaco ou num passado glorioso.
Assim, compreender o valor e a pertinência das reflexões promovidas por Orwell em seu livro, no contexto das RI, só é possível com a percepção desse desejo oculto nas relações de poder. A revelação de Winston é gradual, mas inevitável: o poder é o mais importante elemento social, não pelo seu valor ou por suas possibilidades, mas sim por seu perigo.
Vejamos, então, alguns pontos a respeito da dinâmica de poder revelada em 1984 à luz de discussões presentes nas RI.
A guerra perpétua
Lembremos de um autor clássico das RI: Thomas Hobbes. Para ele, o estado de natureza, isto é, a condição anterior à sociedade política, é uma condição de guerra, medo e constante disputa. Em suma: um perpétuo estado de guerra. O medo é, então, o combustível principal para que se busque instituir uma autoridade soberana capaz de modificar essa situação. A soberania do Estado é, por tanto, fruto de um acordo geral motivado por esse temor; a outra maneira disso ocorrer, também motivada pelo medo, é quando as pessoas, sentindo-se ameaçadas, unem-se num pacto de obediência em troca de proteção.
O totalitarismo onipresente de 1984 é o poder engendrado pelo medo descrito por Hobbes. Orwell dialoga com essa análise teórica hobbesiana, tão relevante para o realismo nas RI, por meio de sua constante discussão a respeito das guerras que ocorrem em ciclos no livro:
Mas sempre — não se esqueça disto, Winston —, sempre haverá a embriaguez do poder, crescendo constantemente e se tornando cada vez mais sutil. Sempre, a cada momento, haverá a excitação da vitória, a sensação de pisotear o inimigo indefeso. Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano — para sempre (p. 280).
O estado totalitário da Oceania em que o nosso protagonista Winston vive está sempre buscando investir em armamento e materiais militares em vez de tecnologias que possam melhorar a qualidade de vida da sua população.
Por que razão fazer isso? Ao manter sua população com uma qualidade de vida no limiar da sobrevivência, a elite totalitária que comanda a Oceania pode instigar o medo frequentemente, seduzindo seus cidadãos com facilidade à cederem suas liberdades em nome do “bem maior”.
Ao invés de atacar seus inimigos com toda a força militar que possui, a Oceania prefere uma abordagem mais sutil, porém não menos efetiva: guerras em localidades distantes da massa urbana, com poucas vítimas, são empreendidas e posteriormente infladas por meio da propaganda. Com isso, os donos do poder podem fortalecer a lealdade dos cidadãos ao vender a imagem de um inimigo cruel, ao mesmo tempo em que as perdas, causadas pelos conflitos armados, são minimizadas.
A novilíngua como instrumento de repressão psicológica
Um elemento que se destaca no texto do livro pela sua originalidade é a criação do conceito de novilíngua. Essa “nova língua” corresponde não à formação de palavras com o intuito de enriquecer a linguagem – muito pelo contrário; a ideia consiste em remover termos e, às vezes, limitar o número de significados que uma palavra pode ter. A ideia é, portanto, reduzir as possibilidades de pensamento dos indivíduos a uma limitada gama de termos simplórios e incapazes de promover a articulação de análises críticas ou posicionamentos genuinamente próprios. Vejamos um trecho do livro que pontua com perfeição o nefasto objetivo por trás da novilíngua:
Você não vê que a verdadeira finalidade da [Novilíngua] é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo. Todo conceito de que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com significado rigidamente definido, e todos os seus significados subsidiários serão eliminados e esquecidos. […] Menos e menos palavras a cada ano que passa, e a consciência com um alcance cada vez menor. […] A Revolução estará completa quando a linguagem for perfeita (p. 79).
À luz dessa inovação conceitual, muito do que ocorre na realidade social e política de tempos contemporâneos ganha sentido. A busca por banalizar discussões, tornar opiniões diversificadas em verdadeiros ultrajes e salientar sempre a “pureza” ideológica que marca os chavões típicos de discussões políticas em tempos de polarização: esses são alguns elementos do ambiente político atual que, sem dúvidas, tornam-se cristalinos se comparados com as estratégias da Oceania de Orwell em criar a novilíngua.
Teorias das RI que detém um arcabouço normativo como o liberalismo utópico explorado pelos 14 pontos de Woodrow Wilson ou a teoria da paz democrática desenvolvida por Michael W. Doyle por meio do resgate do pensamento político de Immanuel Kant são inevitavelmente bastiões na batalha contra a instauração de fragmentos do que seria uma novilíngua.
Tais teorias enfatizam a importância da liberdade de pensamento dentro do escopo democrático e como estratégias que buscam banalizar e deslegitimar qualquer empreitada dialética nas discussões do debate público ameaçam o próprio tecido social da democracia.
Assim, a reflexão promovida pelo livro de Orwell nos dá clareamentos tanto na compreensão da realidade política enfatizada pelos realistas quanto na atenção aos perigos que rondam a democracia valorizada pelos teóricos idealistas e liberais.
A lição final
Ler 1984 no século XXI é um exercício de educação política que reflete, em parte, os riscos à democracia que tem surgido nos últimos anos por parte de políticos populistas e de governos com ânsias autoritárias. É uma leitura engrandecedora que, apesar de nos avisar sobre a distopia que sombreia nossas democracias, nos fortalece e nos permite valorizar ainda mais o nosso poder de escolha e a nossa liberdade de expressão.
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