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Juscelino Kubitschek e Jair Bolsonaro: um paralelo possível? – As lições da subserviência para a política externa brasileira

A política deve ser realista; a política deve ser idealista. Dois princípios que são verdadeiros quando se completam, falsos quando separados.

JOHANN KASPAR BLUNTSCHLI, POLITIK ALS WISSENSCHAFT, I, 4

O poder pessoal e a força da individualidade do Chefe de Estado: o avesso da subserviência

O bom exercício da política em uma determinada nação deriva necessariamente do grau de força pessoal e de individualidade do Chefe de Estado que a representa. O objetivo último da política é o poder, o controle e a influência sobre as massas, premissa que tem sido observada continuamente em seu núcleo duro ao longo da história da humanidade.

Nas relações internacionais, a máxima mantém a sua validade: no jogo de poder hobbesiano entre as nações, o poder, o controle e a influência que determinados Estados procuraram recorrentemente exercer em detrimento de outros, têm sido, seguramente, os elementos de força que, ao longo dos séculos, moldaram o mundo tal como o conhecemos hoje. Assim, os Estados mais fortes e capacitados procuram exercer um poder de atração direcionado contra aqueles que porventura sejam mais vulneráveis na arena mundial.

Esse poder de atração é diretamente proporcional às capacidades do Estado, que podem ser mensuradas de acordo com a sua diplomacia, seus potenciais industriais, econômicos e militares, seu caráter nacional, sua influência e sua organização burocrática.

A par de todos esses elementos, e não menos importante está a figura do Chefe de Estado; aliás, ousamos mesmo inferir que as altas personalidades do cenário político de um Estado detêm o papel principal na condução da política externa correlata, já que nelas reside o poder decisório na seara. Justamente por figurarem na ponta da representação das respectivas nações, os estadistas ganham centralidade ímpar na condução da política externa de seus países, e os movimentos que eventualmente esboçam, ou deixam de esboçar, em seu atuar ganham contornos amplificados aos olhos dos analistas internacionais e, principalmente, dos pares diretamente interessados na movimentação política exógena da contraparte.

É essencial que o estadista mantenha posições fortes, definidas e constantes para o bom andamento da política externa do país que representa, e é natural que assim o seja, pois do contrário, a própria razão de Estado da nação estaria comprometida. Na qualidade de principais responsáveis pela capacidade de projeção internacional de suas respectivas Nações, aos estadistas é absolutamente vedado o servilismo no trato com os representantes homólogos. Eventuais oscilações de poder nas movimentações políticas internacionais, traduzidas em atos de adulação ou vassalagem externados em favor de altas autoridades de outros países, mostraram-se deletérias e muitas vezes irreversíveis em diversos momentos da história mundial.

A Nação, o poder, a personalidade do Estadista e a política externa

Em regra, independentemente do matiz ideológico seguido, as altas lideranças de um país procuram manejar o seu poder no plano internacional de forma a resguardar os interesses de suas respectivas nações e anular politicamente possíveis estadistas rivais.

Na brilhante definição de Bertrand Russell, o poder reside na capacidade de produção de efeitos desejados (RUSSELL, 1957, p. 24) e pode abarcar tudo que estabeleça e mantenha o controle do ser humano sobre o outro, inclusive os relacionamentos sociais que se prestem a tal fim, desde a violência física até os mais sutis laços psicológicos mediante os quais a mente de um ser controla outra (MORGENTHAU, 2003, p. 60).

É justamente a projeção do poder, guiada pela necessidade de satisfação de um dado interesse, o objetivo último dos estadistas quando confrontam seus pares na arena mundial. A capacidade de produção dos efeitos planificados no delineamento da política externa de um país é o fator que pode fazer a diferença entre a ascendência ou a subserviência do mesmo no xadrez internacional, e essa capacidade depende, em grande parte, da habilidade política das altas autoridades envolvidas no processo.

A figura do estadista age, assim, como elemento de síntese, tanto para a imensa maioria das pessoas que compõem o público interno da nação, em geral da opinião de que a política é difícil e por vezes incompreensível mesmo, e que, por essa razão, seria melhor seguir um chefe em quem pudessem depositar a devida confiança, quanto para o público externo, sensível às sinalizações internacionais que eventualmente possam influir no processo decisório interno e no cotidiano de seus países.

De tal raciocínio, inferimos que a figura do Estadista, além de dotada de uma centralidade sem igual na estrutura burocrática estatal, é indispensável à condução da boa política – tanto interna quanto externa – e que eventuais deslizes ou fraquezas podem trazer prejuízos imensuráveis à nação que governa. Maquiavel, em sua célebre e sempre atual obra “O Príncipe”, capturou com excelência o pesado fardo e o grau de responsabilidade que acompanham a caminhada do estadista, quando escreveu:

Deve um príncipe não ter outro objetivo, nem outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer senão a guerra e a sua organização e disciplina, pois que é essa a única arte que compete a quem comanda.

MAQUIAVEL, 1976, p. 85

O conselho de Maquiavel, reinterpretado em relação ao contexto de paz entre as nações, permite a substituição da concepção de guerra pela de estratégia. O planejamento da grande estratégia deve ocupar os pensamentos do estadista, sob pena de risco à incolumidade do Estado. O estadista, sendo ele próprio uma das ferramentas integrantes das diretrizes estratégicas da nação que representa, não pode desviar um momento sequer o seu pensamento do exercício daquelas diretrizes e deve, no seu mister, refletir, de maneira bastante racional, sobre as ações dos grandes homens na história, à maneira como se conduziram as guerras e às grandes negociações diplomáticas.

Sendo o homem de Estado a figura primordial na estratégia da nação, a importância da sua personalidade, cujo estudo atento jamais escapou aos governos alheios e nem aos seus respectivos diplomatas, avulta sobremaneira. Não por acaso as informações sobre a personalidade dos estadistas têm sido recorrentemente colhidas pelas embaixadas, e já em 1561, Pierre Danès, em sua obra Conseils à un ambassedeur, procurou estabelecer as mais importantes dentre elas:

Enfim, o humor e o gênio do príncipe, sua capacidade, seus exercícios, suas inclinações, suas virtudes, seus vícios, tanto quanto seu conhecimento de todas essas particularidades possa aclarar o que se tiver de negociar com ele.

DUROSELLE, 1967, p. 330

Aí está, portanto, o âmago da questão: a personalidade do estadista, seu poder pessoal e a força de sua individualidade são elementos frequentemente analisados e colocados à prova por homólogos concorrentes na arena internacional, o que, em última análise, implica que o homem de Estado bem-sucedido na projeção de poder de sua nação deve preservar uma personalidade pública inflexível, racional e infensa a influências externas.

No contexto brasileiro, essa regra de ouro passou despercebida por dois estadistas detentores de personalidades políticas influenciáveis – Juscelino Kubitschek e Jair Bolsonaro –, cada um ao seu modo, porém com similitudes que permitem a formação de um paralelo que evidencia um grau de subserviência em favor de outros dois estadistas detentores de personalidades políticas centradas em sua individualidade – Antônio de Oliveira Salazar e Donald Trump, respectivamente.

Tal subserviência foi responsável por prejudicar a condução da política externa do país em dois contextos absolutamente distintos do ponto de vista histórico, porém muito próximos no que diz respeito ao jogo de poder e influência entre os Estados envolvidos e à irracionalidade das motivações dos estadistas brasileiros em estudo. Passemos, pois, à análise detalhada dos referidos contextos.

Juscelino Kubitschek e Antônio de Oliveira Salazar: o vínculo do ocidentalismo e da fraternidade luso-brasileira

Vimos que a personalidade do estadista representa um elemento crucial para a condução da política externa de uma nação. Ainda que encerre conteúdo metafísico, o elemento em questão adquire caráter imanente no estudo em apreço, justo porque no âmbito das tratativas entre países, a captação da realidade se dá através dos sinais esboçados em função do poder pessoal e da força da individualidade do estadista, indispensáveis à firme e precisa movimentação do mesmo na arena internacional.

Nas relações entre Juscelino Kubitschek e Antônio de Oliveira Salazar, tais sinais permaneceram acobertados pelo vínculo que unia ambos: o ocidentalismo e os laços de fraternidade entre Brasil e Portugal. Devidamente evidenciados, isolados e dissecados, esses sinais se mostram úteis para tentar explicar a ostensiva ascendência que a grande estratégia portuguesa exerceu sobre a política externa brasileira durante o mandato presidencial do estadista brasileiro.

Em termos de relações internacionais, Juscelino se revelou um político sem visão própria e articulada, e essa característica contrastava vivamente com a fina percepção de política externa que Salazar cultivava.

O estadista português, altamente experimentado na política internacional e hábil no trato da Realpolitik, contrariava as características do estilo de liderança fascista, largamente atreladas ao culto da personalidade, e procurava firmar seu poder pessoal no mérito acadêmico, na bem-sucedida política de equilíbrio orçamentário, na relação zelosa com a Igreja Católica e na ascendência da autoridade do Estado corporativo e centralizador. Mas a atitude de desdém pelo poder não queria dizer que ele não zelasse pela sua imagem nem a manipulasse para ganhos políticos. A aversão à política era parte da estratégia de construção da personalidade pública de Salazar e a compilação e divulgação de seus discursos, além de entrevistas concedidas a inúmeros jornalistas internacionais, ajudariam a tornar mundialmente palatável o regime do Estado Novo.

Kubitschek, por sua vez, sempre revelou um extremado lusismo ao longo de sua trajetória política e, ao atingir o posto de Chefe de Estado, alçou a retórica da afetividade luso-brasileira ao patamar de uma diretiva de política externa para ambos os países. Certamente isso decorreu de suas deficiências de cultura em matéria histórico-sociológica e da admiração pelo fenômeno salazarista ainda nos tempos em que exercia o cargo de prefeito de Belo Horizonte (LINS, 1960, p. 382).

No contexto da política externa brasileira, duas grandes linhas evoluíram como resultado da fricção entre o sistema internacional e os processos políticos internos: uma que defendia uma ideologia liberal conservadora, adstrita ao bloco ocidental – no qual se inseria o império ultramarino português –, sendo por isso chamada de “ocidentalista”, e outra, “nacionalista” que percebia as mudanças do sistema internacional como um fenômeno benéfico para o Brasil, que assim teria ampliadas as oportunidades de efetivar sua condição de Estado independente.

A grande habilidade de Kubitschek em se mover no labirinto político-partidário nacional, costurando apoios e formando alianças que proporcionaram a estabilidade ao seu governo, desaparecia completamente quando os problemas situavam-se na arena externa. Só o interessava politicamente o que rendesse votos e por isso não hesitava em seguir os caminhos ora apontados pelos nacionalistas, ora apontados pelos ocidentalistas, desde que esses caminhos não implicassem a violação da estratégia geral do bloco ocidental (GONÇALVES, 2003, p.115). No afã de conseguir o êxito do programa de metas e garantir o futuro retorno à presidência da República, Juscelino descurou da formação de uma visão definida da política externa brasileira e do próprio papel do Estado Brasileiro no cenário internacional. Essa deficiência transpareceu na percepção equivocada da perspectiva americana e na tentativa frustrada de implementação da Operação Pan-Americana e, mais especificamente, nas relações com o regime salazarista.

O que poderia levar um governo democraticamente eleito, ansioso por incluir o Brasil no rol dos países desenvolvidos, a formalizar uma aliança com uma ditadura corporativista e defensora intransigente de ideais colonialistas? Aparentemente não existe resposta lógica e plausível para essa pergunta, mas ela pode ser justificada em razão do lusismo de Kubitschek e de sua idealização irracional da fraternidade luso-brasileira; sua ostensiva admiração por Salazar o levou a afinar as diretivas da política externa brasileira aos interesses estratégicos portugueses.

É possível que Kubitschek, na ânsia de promover o Plano de Metas e consolidar o seu perfil ocidentalista e inovador, capaz de distingui-lo perante o eleitorado, tenha enxergado na relação com Salazar uma oportunidade de angariar o apoio das agremiações lusitanas que, à época, tinham bastante influência na então capital do país – o Rio de Janeiro – e sobre a cultura, os meios de comunicação, o comércio e importantes setores da política doméstica. Essa hipótese deixa inconteste que, a despeito das reais intenções de Kubitschek, o seu objetivo mais importante na relação com o dirigente luso não era o interesse nacional ou a ascendência do país no plano das relações com Portugal, mas sim o intento de garantir a sobrevida de seu capital eleitoreiro.

A irracionalidade do alinhamento entre Kubitschek e Salazar foi tamanha ao ponto de superar a incoerência da política externa levada a cabo em relação aos EUA; na relação com Eisenhower, as motivações do estadista brasileiro, ainda que frustradas ao longo das tratativas, se baseavam em objetivos estratégicos coerentes com o viés desenvolvimentista do Plano de Metas. Mas nas relações com Portugal, reinava a absoluta falta de perspectiva de ganhos políticos sólidos para o Brasil no concerto das nações, fosse a curto, médio ou longo prazo.

Jair Bolsonaro e Donald Trump: o vínculo do antiglobalismo e do americanismo ideológico

Vimos que Salazar magnetizava Kubitschek no contexto das relações luso-brasileiras, por meio da exploração de um vínculo meramente simbólico que se estabelecia na contramão do pragmatismo característico da política externa brasileira.

Décadas depois, o fenômeno tornaria a se repetir em relação a outro líder brasileiro. No contexto de uma ideologia dita conservadora, cristã, nacionalista, antiglobalista e pró-ocidental, o presidente Jair Bolsonaro sacrificou a força de sua individualidade política e o seu poder pessoal em favor de uma aliança irracional com seu homólogo americano, o presidente Donald Trump, considerado o expoente mundial desse ocidentalismo anacrônico e pitoresco.

Trump, um empresário de sucesso com ares de celebridade e detentor de uma personalidade extravagante, ascendeu na esfera pública norte-americana sem o escopo de uma tradição política. Seu temperamento narcisista cativou a parcela do eleitorado cansada da velha política e interessada em outsiders que pudessem desafiar o establishment. Ele sagrou-se, assim, como o representante legítimo de uma tendência populista temperada por um forte sentimento antiglobalista. O estilo agressivo de liderança, o gosto por holofotes e a sua capacidade de improvisação o distinguiram na presidência dos EUA, mas a exacerbação do imediatismo em suas ações políticas custou-lhe a reeleição.

Bolsonaro, um parlamentar egresso do Exército Brasileiro, dado a posições polêmicas, chegou à presidência da República também em razão da parcela do eleitorado insatisfeita com a política tradicional, em especial com os sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores. À semelhança de Trump, ele sagrou-se como representante pátrio de uma tendência populista, nacionalista e antiglobalista, mas a vinculação a esse ideário foi seguida de uma forte subserviência ao homólogo norte-americano.

Novamente, o padrão de vulnerabilidade política do estadista se fez presente: da mesma forma que Kubitschek cortejara Salazar, Bolsonaro o faria em relação à Trump, quando, em verdade, deveria ter feito o estadista americano cortejá-lo. Tal subserviência levou Bolsonaro a adotar posicionamentos flagrantemente contrários à orientação tradicional da diplomacia brasileira em temas sensíveis de política externa. A negação dos problemas ambientais, o menosprezo aos direitos humanos, o abandono do Pacto Global para Migração – acordo intergovernamental promovido pela ONU –, o discurso geopolítico hostil à Venezuela e a postura declaradamente anti-chinesa, esboçada por diversos canais do Governo Federal, constituem evidências do esforço do estadista brasileiro em alinhar-se ao nacionalismo antiglobalista, ideário capitaneado por Trump.

A aproximação de Jair Bolsonaro em relação a Donald Trump caracterizou o sacrifício de sua personalidade pública de Estadista e a sua submissão ao homólogo estadunidense, à semelhança do que ocorreu com os estadistas citados anteriormente. Apenas a devoção de Bolsonaro à personalidade de Trump é capaz de explicar a política exterior de concessões de benefícios sem contrapartida e o alinhamento incondicional aos EUA, em uma caracterização absolutamente anacrônica do americanismo ideológico, contrário ao americanismo pragmático que marcou a esmagadora maioria dos governos anteriores.

 A orientação presidencial para que a Petrobrás não abastecesse navios de bandeira iraniana que carregavam milho importado do Brasil não deixa dúvida acerca da ascendência de Trump sobre Bolsonaro, segundo seus próprios dizeres:

Vocês já sabem que estamos alinhados com a política deles (dos EUA). Então fazemos o que temos que fazer. (…) Nosso governo está alinhado, sim, com o governo Trump. (…) Então espero que nas próximas horas, ou até no máximo segunda-feira, a gente resolva esse problema sem criar qualquer rusga com os Estados Unidos.

(Revista Exame, 2019)

A essa altura, cabe uma indagação: o que poderia levar o governante de uma nação democrática, comprometida com a proteção do meio ambiente, dos direitos humanos e da diversidade cultural a tecer uma aliança pessoal com um dirigente sequaz de um ideário absolutamente contrário aos princípios e objetivos fundamentais contidos na própria constituição do país?

À semelhança da relação entre Kubitschek e Salazar, aparentemente não existe uma resposta lógica e plausível para essa pergunta, mas ela pode ser justificada em função do exacerbado americanismo de Bolsonaro e de sua idealização irracional do antiglobalismo. Sua ostensiva admiração por Trump o levou a formatar as diretivas da política externa brasileira aos limites daquele ocidentalismo anacrônico, sempre secundado pela gestão de Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores.

Independente das razões da subserviência de Bolsonaro, o fato é que em sua relação com Trump, ele não procurou promover a ascendência do país no plano das relações com os EUA. Assim como sucedera com Kubitschek, o intento de Bolsonaro foi o de garantir a fidelidade de seu eleitorado, identificado com o inusitado ideário professado por Trump. Novamente, a política externa foi utilizada como base para a manutenção da política doméstica, com o consequente sacrifício do poder individual e da individualidade do estadista em favor de um simbolismo de ocasião utilizado como “isca” pelo homólogo ascendente.

O paralelo entre Juscelino Kubitschek e Jair Bolsonaro e as lições expostas à política externa brasileira

Os perfis das personalidades políticas de Juscelino Kubitschek e Jair Bolsonaro permitem estabelecer um paralelo entre os dois: ambos abdicaram de seus poderes pessoais e da força de sua individualidade no trato com seus homólogos em nome de uma aliança despida de racionalidade, atrelada a um simbolismo frugal em termos de política doméstica e inoperante no que toca à política externa.

Com efeito, durante ambos os mandatos dos estadistas brasileiros, houve a utilização sistemática e intensa da política externa brasileira em favor do direcionamento da política interna. Não por acaso, os vínculos que ligaram Juscelino Kubitschek e Jair Bolsonaro respectivamente a Antônio Salazar e Donald Trump – o ocidentalismo e o antiglobalismo – representam concepções coloidais de largo espectro conceitual, verdadeiros slogans políticos. Os termos em apreço se destacam pela sua vagueza, o que os tornou parte da estratégia política posta a serviço das personalidades ascendentes dos estadistas adversos na relação estudada.

Da mesma forma que Juscelino Kubitschek encampou o slogan político da “fraternidade luso-brasileira”, promovendo a sua elevação à categoria de diretriz da política externa brasileira, Jair Bolsonaro adotou também outro slogan político, o do “antiglobalismo”, igualmente como diretriz da política externa do país.

Essas concepções políticas ostentam, assim, uma dupla face: do ponto de vista dos estadistas brasileiros, elas representaram uma estratégia para procurar garantir objetivos da política doméstica de cada governo em seu contexto, necessariamente vinculadas à base eleitoral de cada presidente e aos seus respectivos projetos de manutenção do poder. Lado outro, na perspectiva do ditador português e do presidente americano, as referidas concepções ganharam ares de estratégia pragmática destinada ao incremento da inserção de seus respectivos países no sistema internacional vigente em cada contexto.

Kubitschek vinculava a sua admiração pelo regime salazarista ao ideário do bloco ocidental, ao qual procurava se alinhar, e às suas metas na política interna. Assim, os ganhos perseguidos com a sua política externa para Portugal não se guiavam por objetivos pragmáticos econômico-comerciais, mas pelo simbolismo que aquela aproximação representava. A ascendência desse simbolismo puro encontrou o seu nexo de causalidade na subserviência esboçada pelo estadista brasileiro, sempre pronto a cortejar o homólogo português gratuitamente.

Bolsonaro, por sua vez, vinculou a sua admiração por Trump ao ideário conservador, antiglobalista, cristão, nacionalista e pró-ocidente, ideário esse que entendeu ser de fundamental importância para as suas metas na política interna. À semelhança do que sucedera com Kubitschek, os ganhos perseguidos com a sua política externa para os EUA também não se guiaram por objetivos pragmáticos, e sim pelo simbolismo do contexto. De igual forma, apenas a subserviência gratuita esboçada pelo chefe de Estado brasileiro em relação ao colega americano é capaz de explicar tal deslocamento irracional na linha da política externa brasileira.

Juscelino Kubitschek e Jair Bolsonaro buscaram uma aproximação com seus respectivos pares estrangeiros para fortalecer as suas bases políticas internas e garantir sobrevida aos seus capitais eleitoreiros. A preocupação com a continuidade do Estado não constituiu, mutatis mutandis, o objetivo mais importante nas relações entre os dois estadistas brasileiros e seus homólogos; na luta pelo poder interno, cada uma sacrificou, à sua maneira, interesses sensíveis do Estado brasileiro.

É importante notar que as concepções que atrelaram o par de estadistas brasileiros não se revelaram despidas de racionalidade quando confrontadas com o contexto político interno; elas ganhavam sentido quando relacionadas aos fins eleitoreiros e à manutenção do poder conquistado. Porém, quando analisadas na ótica do plano internacional, elas revelavam o nítido descompasso gerado na política externa brasileira, o manifesto prejuízo à imagem do país e aos seus negócios exteriores, além do retrocesso em seu processo de inserção no sistema mundial.

Os prejuízos causados à política externa do Brasil foram inúmeros em ambos os contextos dos estadistas em estudo, mas podem ser distribuídos em dois grandes grupos que dialogam perfeitamente com o paralelo estabelecido entre os dois estadistas brasileiros: o político e o econômico.

O desgaste da imagem do Brasil no exterior, presente à época em que o governo Kubitschek, influenciado pelo salazarismo, chancelava votos na ONU em favor do colonialismo português na África, fez-se notar novamente no governo Bolsonaro, influenciado pela retórica de Trump, com o gradativo abandono do tradicional papel de mediador nos conflitos regionais e o enfraquecimento da política multilateral ativa.

Em 1960, o voto brasileiro na Assembleia Geral das Nações Unidas foi veiculado em sentidos contraditórios; em relação à declaração geral anticolonialista, oriunda de proposta do grupo de nações afro-asiáticas, o país votou favoravelmente. Mas, em relação à recomendação que incluiu expressamente as províncias ultramarinas de Portugal entre os territórios não-autônomos referidos na Carta de São Francisco, o Brasil votou contrariamente, apoiando com isso a posição portuguesa (ARINOS FILHO, 2001, p. 211). A posição sagrava a concepção unitária do Estado português, articulada pelo regime salazarista e deixava clara a instrumentalização da delegação permanente do Brasil em favor dos interesses lusos, em um inequívoco ato de subserviência.

 A subserviência de Bolsonaro trouxe também prejuízos à reputação do país no exterior. O alinhamento automático à política externa estadunidense trouxe a perspectiva real de isolamento do Brasil e de enfraquecimento de seu poder brando, construído a duras penas durante décadas pelo prodigioso, disciplinado e uniforme serviço diplomático. Em razão do alinhamento por antecipação e por escolha própria aos interesses do governo Trump, a política externa conduzida por Bolsonaro diminuiu significativamente a sua margem de manobra no tabuleiro internacional.

Essa diminuição voluntária do espectro de manobras no plano internacional foi regada por concessões unilaterais feitas pelo governo brasileiro aos EUA, tais como a promessa do fim da exigência de visto para cidadãos estadunidenses, a entrega da Base de Alcântara, por meio do acordo de salvaguardas tecnológicas, além da perda da condição de país em desenvolvimento na OMC, assimétricas em relação às contrapartidas ofertadas pelos americanos: o ingresso na OCDE e a atribuição de aliado prioritário extra-OTAN.

O resultado direto dessa vinculação ideológica reducionista da política externa brasileira foi sentida no progressivo isolamento do país; houve atritos com o governo argentino em razão da ojeriza política dedicada ao peronista Alberto Fernández, com os países árabes, em razão da intenção de transferência da Embaixada do Brasil em Israel em Tel Aviv para Jerusalém e uma inédita e pitoresca aproximação em relação ao governo ultraconservador húngaro de Viktor Orban, além da reprovação mundial acerca do desempenho do governo brasileiro no combate à pandemia da COVID-19 e da sua apagada atuação na Cúpula Mundial de Líderes pelo Clima, ocorrida em abril de 2021.

Do ponto de vista econômico, a “fraternidade luso-brasileira” arvorada por Kubitschek praticamente não rendeu dividendos. As exportações brasileiras para Portugal ocuparam níveis pífios durante o seu mandato, o café angolano passou a concorrer acirradamente com o nacional, as autoridades portuguesas recusavam qualquer aumento da lista de mercadorias brasileiras, de forma a manter a balança comercial favorável ao país e, não bastasse isso, o florescente mercado das colônias daquele país na África permanecia fechado ao Brasil, já que o intercâmbio comercial nessa região era facilitado para a Grã-Bretanha, os EUA e a então República Federal da Alemanha (RODRIGUES, 1964, p. 362). Ironicamente a bem-sucedida política industrialista do Estado brasileiro enfrentava um impasse comercial decorrente da própria submissão de Kubitschek à estratégia política portuguesa.

Bolsonaro também enfrentou reveses econômicos em relação aos EUA, por conta de sua adesão irrestrita à “agenda antiglobalista” de Trump. O aumento das tarifas de aço e alumínio importados do Brasil pelos americanos, como medida de compensação à desvalorização do real frente ao dólar em fins de 2019, foi o primeiro deles, e atestaria o caráter pragmático que Trump dispensou à sua relação com Bolsonaro, que admitiu haver “se enganado” sobre o estadista estadunidense. Posteriormente, mediante hercúleo esforço, o governo brasileiro conseguiu a isenção de tarifas sobre os produtos, mas, às vésperas da disputa pela reeleição, Trump retomou a medida protecionista de forma a agradar o eleitorado conservador. Desta feita, a justificativa oficial seria a suposta prática de dumping por empresas brasileiras do setor, responsáveis pela exportação do montante de US$ 97 milhões.

Em fevereiro de 2020, uma decisão unilateral do governo americano retirou o Brasil e outros 23 países da lista de países em desenvolvimento com relações comerciais com os EUA. A medida representou uma ameaça direta sobre as exportações brasileiras, em razão da aplicação da tributação destinada a produtos de países desenvolvidos. A previsão dos especialistas era de acentuada queda ou restrição das exportações, mas o governo brasileiro, ao contrário dos governos dos outros países atingidos pela medida, não protestou e preferiu a subserviência ideológica pura e simples.

O contexto comparativo mostra que tanto Kubitschek quanto Bolsonaro, em suas atitudes de subserviência no plano mundial, esvaziaram o necessário conteúdo realista da política externa do país e, com isso, retiraram o seu direcionamento. A ideologização da política externa fez reverter a própria lógica que informa o contato com a política doméstica; em linhas gerais, é a política interna que dita os rumos da externa, justamente em razão da condição anárquica da ordem internacional e da necessidade que todo país tem de definir a sua posição dentro dela.

Mas, nos dois contextos ora estudados, o esvaziamento da política externa setorial foi o artifício utilizado exclusivamente para garantir a continuidade da política interna. Essa situação reversa revelou-se absolutamente deletéria para a credibilidade do país perante o mundo e, por essa razão, deve ficar evidenciada, de forma a servir de lição para os estadistas que sucedam no comando da Nação, no sentido de que a vigilância de sua personalidade, de seu poder pessoal e de sua individualidade política é essencial para o bom andamento da política externa.

Conclusões

Em nosso tempo, a política representa mais do que o político; falamos de uma política democrática, nacionalista, socialista, globalista, e assim por diante. Isso significa que não importa quão poderoso seja o estadista moderno, pois ele estará atado a uma norma de ação que é, como tal, mais poderosa do que a sua vontade pessoal (SARTORI, 1962, p. 48).

Juscelino Kubitschek, como um democrata ocidental e desenvolvimentista, dificilmente poderia mudar seu modo de pensar sobre o Estado Democrático de Direito, a bipolaridade sistêmica e a economia de mercado que eram contemporâneas ao seu mandato. Por sua vez, Jair Bolsonaro, como um autointitulado democrata, conservador, americanista e antiglobalista, estaria, de igual forma, impedido de se desvincular do pensamento que rege o ideário em apreço.

Nessa linha de raciocínio, é possível construir uma tipologia na base da qual o Estadista puro está em um extremo, e o idealista em outro, significando que o primeiro despreza ideais, enquanto o segundo cuida unicamente desses mesmos ideais e os persegue a qualquer custo. Mas o estadista puro e o estadista idealista não passam de construções hipotéticas e toda a política é uma mistura de idealismo e realismo. Não há, então, política pura, porque ninguém ingressa na ação política se não for impulsionado por crenças e ideais.

É justamente nas frestas que afloram da fricção entre o idealismo e o realismo na política que aparecem os espaços que o estadista deve preencher com os elementos da sua personalidade. A política pode representar mais do que o político no mundo contemporâneo, mas o papel do estadista continua fundamental na condução da estratégia e da política externa de uma nação, e o hábil manejo de sua personalidade pública nos meandros da tensão entre o realismo e o idealismo na política é uma ação necessária para dissipar a subserviência e tentar garantir a ascendência estratégica do seu país sobre os demais.

Juscelino Kubitschek e Jair Bolsonaro, estadistas idealistas extremos, perseguiram a todo custo, nas relações com Antônio de Oliveira Salazar e Donald Trump respectivamente, as convicções que acreditavam acertadas e, com isso, olvidando o fato de que a política deve ser ao mesmo tempo idealista e realista, descuraram da imposição de suas próprias personalidades políticas e se tornaram vulneráveis e subservientes.

A razão ou ciência necessária para governar um Estado não reside propriamente na filosofia moral, mas em uma prudência muito próxima da astúcia e da phronésis grega – a sabedoria empírica. Um chefe de Estado não pode pura e simplesmente misturar emoções – sejam sentimentos de simpatia ou de antipatia – às suas soluções de política externa; pelo contrário, ele deve centrar a sua consciência em reflexões profundas sobre o contexto mundial e saber tirar delas os elementos necessários para fortalecer as posições de seu país.

Essa é a grande lição que a análise das personalidades em tela deixa para a política externa brasileira, altiva e avessa a vassalagens: a de que os estadistas devem ser dotados de forte poder pessoal, individualidade e equilíbrio para a condução satisfatória dos destinos da nação.

Referências bibliográficas

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Artigos

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Capítulos de livros

ARANOVICH, Patrícia Fontoura. Notas sobre as relações entre fim e meios em Maquiavel. In: SALATINI, Rafael; DEL ROIO, Marcos (Orgs.). Reflexões sobre Maquiavel. Marília: Oficina Universitária. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.

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